Juremir Machado da Silva*
Conto sobre encontros intemporais
Tenho
comigo há muito tempo que a única questão importante é o próprio tempo.
Aprendi também que o tempo é uma grande ilusão. Nem ele nem nós
passamos. Ficamos para sempre em cada instante. Os intervalos entre dois
momentos não alteram o que somos. Mesmo quando mudamos, sei que posso
ser entendido, continuamos os mesmos. Tínhamos 17 anos, cabelos longos,
ideias loucas, sonhos gigantescos, sorrisos francos, desejos nem sempre
confessados, planos costurados em duplas por critérios de afinidade não
eletiva, mera química do acaso que, aos poucos, transformou-se em
sólidas e definitivas amizades maduras.
– Bateu?
– Não ouviu?
– Não.
– Ficou surdo? Bateu como sempre.
– Já?
– Passou rápido o tempo.
Era
a última aula. Queimamos os cadernos na frente da escola. Não fizemos
isso por ódio ao colégio, que amávamos e no qual gostaríamos de ficar
eternamente, como ficamos, mas para terminar com um gesto de rebeldia.
Era assim que gostávamos de ser vistos. Uns correram para os carros dos
pais. Algumas meninas se foram com os namorados. Outros, como se eu,
hesitaram antes de partir. Fomos caminhando sem pressa, apesar da fome,
até a esquina, de onde vimos o prédio em toda a sua grandeza. Era um
adeus. A melancolia era tanta e tão imprópria para nossa idade que
corremos. Nunca mais seríamos da mesma família. Havia ainda a formatura.
Mas nem todos compareceriam.
O
tempo passou. Enfim, em pequenos grupos, fomos nos reencontrando.
Caminho pela praça na manhã de sábado. De longe, vejo a silhueta da
colega. Lá está ela sentada no banco que me parece o de sempre, os
cabelos mais curtos, ela que os tinha muitos longos. Em seguida, chega a
outra colega, com o mesmo jeito, o mesmo sorriso, ela mesma. Estamos
ali, os três, juntos, alegres, felizes, cheios de história para contar e
de luminosidade. Uma aura. Tudo parece igual: a praça, as ruas, os
prédios, as árvores, os monumentos. Os carros, porém, são diferentes,
como se apenas a tecnologia não parasse no tempo. Estamos mais velhos.
Mesmo assim, somos exatamente os mesmos.
As
nossas vozes mudaram um pouco, sinalizando talvez que falamos muito.
Mesmo assim, deixam escapar tons, ritmos e vibrações jamais esquecidos.
Em cada olhar, vê-se uma fagulha que nunca se apagou. Somos nós. Temos
pouco tempo e muita pressa em lembrar o que fomos e ainda somos, pois o
tempo jamais conseguirá extinguir as chamas daquilo que nos faz ser o
que somos e não outra coisa nem outros. Cada um sabe que o futuro começa
na rodoviária e que o passado se afunda como uma raiz definindo a nossa
identidade. Então cada um conta o que pensou, o que viveu, o que
sentiu, o que experimentou, o que sonhou.
O
tempo não existe mais. Nunca passou de uma miragem, de uma convenção ou
de um fluxo natural. Entre a partida e o reencontro, um mero lapso de
tempo, um intervalo e algumas realizações, vitórias e derrotas: novas
cidades, apartamentos divididos, novos amigos, amores, faculdades,
diplomas, viagens, empregos, casamentos, filhos, doenças, separações,
recuperações, empregos, comemorações, netos, apostas, cálculos,
rompantes, aposentadorias, álbuns, essas coisas da vida, simples,
adoráveis ou cruéis dadas a todos em proporções diferentes. Enquanto
estamos na praça, juntos, não temos de pensar nos quarenta anos
passados. Somos nós mesmos e parece que nos vimos um dia antes.
Por um momento, pensei ouvir músicas de fundo, como se
tivéssemos direito a trilhas musicais sussurradas pelos pássaros.
Soavam ingênuas (“eu sou rebelde porque o mundo quis assim”),
reveladoras (“caía
a tarde feito um viaduto”) ou divertidas e metaforicamente estimulantes
(“In the navy/Yes, you can sail the seven seas”. Fiquei imaginando esse
conto e já não sei se o vivi naquele instante ou o resgatei do passado.
Tenho cada vez mais dúvidas sobre a realidade da realidade, que me
parece uma construção narrativa, uma teia que se vai tecendo
inconscientemente e nela ficando preso.
Como
se explica isso? Não sei. Um ano suplantou o outro, quarenta vezes,
inverno e verão, sem nos tornar desconhecidos. Tentei, depois, imaginar
essa sequência traduzida em festas de Natal, Ano Novo, carnavais, finais
de campeonato, copas do mundo, novelas, essas tantas maneiras de tentar
marcar o tempo como se ele fosse real. Comecei a pensar que somos os
mesmos e múltiplos no tempo, que, numa espécie de realidade paralela,
ainda estamos vivendo o que já se foi, como num filme exibido sem parar
no próprio local da filmagem.
– Bateu?
– Não ouviu?
– Não.
– Ficou surdo? Bateu como sempre.
– Já?
– Passou rápido o tempo.
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* Jornalista. Escritor. Prof. universitário. Cronista do Correio do Povo
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/um-lapso-de-tempo-1.399934 Imagem da Internet
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