Leandro Karnal*
O anonimato representa a dor que no passado deveria ser o medo da fome ou da guerra
Sala
de espera, aeroporto de Orlando: nossa família, exausta após todo o
processo de deslocamento e procedimentos de segurança, disputava as
poucas poltronas disponíveis. Uns buscam água, outros conferem mensagens
e todos concordam que as férias apresentam ônus de cansaços.
De repente, como um raio de eletricidade no céu azul, os mais novos
identificam uma revelação bombástica: Shawn Mendes está na sala! A frase
chegou logo aos meus ouvidos. Ignorante incorrigível, pergunto: quem é?
Pior, estando distraído quando a notícia surgiu, confundi o som e
soltei: Shaolin? Não! Olham para mim entre piedade e irritação:
S-H-A-W-N M-E-N-D-E-S. Agora sei o nome correto da presença ilustre,
ainda que não faça a mais vaga ideia de quem seja. Ator? Pelo Mendes
parece ser alguém de ascendência lusitana. Canadense! Corrigem-me com
redobrada raiva! Ele tem zilhões de seguidores! É um sucesso mundial!
Instigado pela divisão juvenil Karnal, levanto-me e vejo um rapaz
magro, alto, cercado por um segurança e um possível empresário em um
canto da sala de espera. Ao redor, muitos tentam fotos e o guardião
parrudo ao lado dele libera apenas para algumas crianças. Simpático, ele
recebe pessoas e troca escassas palavras. Uns tremem, outros exultam
por terem dito seu nome ao que, agora sei, é um cantor muito famoso.
Uma senhora brasileira tentou e não conseguiu um autógrafo. Olha para
mim, desolada, e me diz: não consegui com ele, você tira uma foto
comigo? Sorrio como um prêmio de consolação resignado. Sinto-me como o
antigo Hotel Glória do Rio, que, apesar das suas virtudes, hospedava
aqueles que não conseguiam uma vaga no Copacabana Palace... Veio também à
memória uma aluna famosa pelos deslizes sociais. Em um evento festivo,
ela me apresentou a um conhecido. Para facilitar a conversa, afirmou que
eu era famoso e ele não. Vendo a cara de desolação do jovem, ela
consertou de forma magistral: “Mas... você é bonito”. Conseguiu ofender o
feio e o anônimo com duas curtas frases...
Minha secretária não
se conforma. Pergunta de novo se eu não conheço e eu pergunto a ela, na
defensiva, quem foi Hector Berlioz. Ela diz que não sabe e eu faço
aquela cara de “ema, ema, ema: cada um com seus pobrema...”. Não suponha
o zeloso leitor e a diligente leitora que é um manifesto do tipo: nada
sei de cultura pop. Pelo contrário! Conheço e acompanho muita coisa,
porém, em geral, quando escuto música, quase sempre procuro autores de
um repertório que conheço.
Faço workshop pessoal como um
exercício de compreensão. E se Elis Regina entrasse naquela sala,
ressuscitada de alguma forma? Talvez eu tremesse e tentasse me aproximar
ou, talvez, mais barroco teatral, beijaria os pés da voz mais cativante
que já ouvi.
O que a fama apresenta? Talvez, ela dê um
significado superior à existência medíocre que geralmente levamos. A
prima Luísa (de Eça) recebe um bilhete com elogios românticos do sedutor
Basílio. A jovem se derrete em suspiros. As frases eu li no autor
português, todavia a memória vem pela música Amor I Love You que Marisa
Monte interpreta de forma brilhante (outra que eu tremeria ao encontrar)
e Arnaldo Antunes declama sobre a infeliz portuguesa: “Sentia um
acréscimo de estima por si mesma. E parecia-lhe que entrava enfim numa
existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu
encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase e a alma se cobria de
um luxo radioso de sensações!”. Um dia ainda escreverei desse jeito...
Encontrar alguém famoso provoca o efeito “prima Luísa” em muita gente.
Fornece assunto, conecta com um gosto, dispara seus likes nas redes,
torna o momento único, comunga com algo maior e provoca uma espécie de
comunhão com a celebridade. Nunca teremos certeza se nossas vidas valem a
pena, se somos dignos de algo ou se deixaremos algum legado. A resposta
a tais dúvidas vira um sim grande (e fátuo) ao lado da celebridade.
Para continuar com meu exercício de compreensão do interesse pelo quase
Shaolin, lembrei-me, em 1981, da emoção que senti ao ficar frente a
frente com o papa João Paulo II em Porto Alegre. Eu era uma espécie de
“prima Luísa mística” naquela ocasião. Soubesse então, como católico
devoto, que ele seria declarado santo, eu teria levitado ou entrado em
colapso completo!
A celebridade nos faz entrar na existência
superior e retira, por alguns instantes, nossa consciência do charco
modorrento dos fatos. Depois, sou livre para criar intimidade na
narrativa: “Eu estava com meu amigo Mendes...”. Qual Mendes? Bradam os
circunstantes. “O Shawn, claro” e então narro o encontro com relances
dramáticos e certo ar blasé. No resto do tempo, só nós estamos no meio
de nós e lá ficamos checando mensagens e lendo sobre gente famosa... O
anonimato representa a dor que no passado deveria ser o medo da fome ou
da guerra. E, por um instante, o cantor de regata branca com segurança
ao lado parece interessado e nos tornamos, subitamente, interessantes.
Boa semana com ou sem celebridades para nós.
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*Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,ele-esta-no-meio-de-nos,70003207143 23/02/2010
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