A ideia de que o mundo é um palco (ou uma espécie de Carnaval) é
verdadeira. Representamos diariamente em casa, no trabalho, com amigos, a cada
contexto. E assim nos relacionamos com outras pessoas que fazem outro tanto,
gerindo as suas próprias personagens e representações. Máscaras servem para
orientar expectativas e impressões. Para nos sentirmos melhor connosco. Daí
todos sermos tantos-em-um, com o que isso tem de mau e bom.
Texto de Ana Pago
Nenhum homem é uma ilha isolada, proclamou o poeta inglês John Donne,
ciente de que todos somos seres que precisam do convívio com outros seres como
de pão para a boca. Também somos bastante mais complicados do que as plantas,
sempre a questionar o que vamos dar de nós e o que queremos receber dos outros,
pelo que a dada altura é natural começarmos a acreditar que só seremos aceites
se agirmos, falarmos e pensarmos como a maioria, adotando máscaras diferentes
conforme o ambiente social. Mas como interagimos com elas postas? Podemos
viver de máscaras o tempo todo? Qual o perigo de usá-las? E, sobretudo, o que
resta de nós se as tirarmos?
“Persona significa o mesmo que máscara e é um termo que parece
vir do grego persono, ‘soar através’, que se relaciona com as máscaras
gregas que representavam personagens no teatro”, sustenta o psicólogo Vítor
Rodrigues, autor d’O Livro da Apreciação (ed.
Farol). O psiquiatra Carl Jung popularizou a visão de que todos apresentamos personas
ou máscaras sociais, ou seja, representamos papéis face aos outros ligados com
o que pensamos ser uma apresentação aceitável de nós mesmos perante o mundo.
Para o
psicólogo Vítor Rodrigues, usamos as nossas máscaras sempre que o medo de
sermos mal vistos se sobrepõe à necessidade de sermos genuínos.
“Jung falou na máscara social como um compromisso entre indivíduo e
sociedade sobre o que um ser humano devia parecer ser”, lembra o
psicoterapeuta, familiarizado com os receios de nos apresentarmos como somos,
as manifestações de poder e resistência que assumimos, o querermos sentir-nos
melhor connosco e enfrentar situações que nos sãodesagradáveis – no fundo, tudo
o que nos influencia a representar. “Usamos as nossas máscaras sempre que o
medo de sermos mal vistos ou agredidos pelo que desejamos, apreciamos, pensamos
e sentimos se sobrepõe à necessidade de sermos genuínos”, diz.
A própria sociedade dá muitas vezes sinais contraditórios: políticos
corruptos a vencer eleições sob uma falsa aparência de honestidade; outros honestos
a esconderem que o são para evitar perseguições; muita gente a mostrar nas
redes sociais o que aparenta ser mais popular e menos suscetível a censuras. Lá
está: uma pessoa adapta-se e é desejável que o faça. “Apesar de ser evidente
para os psicólogos que o hábito precoce de usar máscaras sociais pode levar-nos
a criar um reduto de segurança em que já nem nós sabemos bem quem somos,
identificando-nos com essas personas que nos protegem das expectativas e
censuras dos outros.” Torna-se difícil viver sem máscaras de algum tipo,
admite Vítor Rodrigues.
Também o filósofo Jean-Jacques Rousseau dizia que o homem que vive em
sociedade traz consigo uma máscara de artificialidade que se sobrepõe à sua
verdadeira natureza, observa a professora Custódia Martins, do Instituto de
Educação da Universidade do Minho, considerando que o próprio se apresentava
como o protótipo do homem que conseguiu preservar a memória dessa essência,
razão por que foi mal-amado pelos seus pares. À educação caberia resgatar os
princípios essenciais da existência humana que a sociedade nos condiciona a
esquecer: “Viver em comunidade é diferente de o homem se alienar na
sociedade porque ignora ou rejeita a sua natureza, acreditando encontrar na
vontade de todos a vontade geral”, diz a investigadora em educação.
Posturas
de poder como as que usamos num cargo de chefia, na vida pública ou em reuniões
de trabalho moldam a mente.
Máscaras são uma força poderosa. Além das muitas que começamos a
encarnar em crianças por pressões do exterior (o que é aceitável na rua, entre
miúdos, pode não o ser em casa com adultos), disfarçar-se num sentido literal
permite a quem usa a máscara ser a personagem com que se identifica e
exteriorizar comportamentos. “Deixe o seu corpo transmitir a informação de que você
é poderoso, merecedor aos olhos dos outros, e vai acabar por se tornar alguém
mais presente, motivado e autêntico”, confirma a psicóloga social
norte-americana Amy Cuddy, professora da Harvard Business School e autora do best-seller
O Poder da Presença.
Segundo uma investigação conjunta efetuada por psicólogos das
universidades da Pensilvânia, Minnesota e Michigan, EUA, publicada em 2016 na
revista Child Development, crianças dos 4 aos 6 anos disfarçadas das
suas personagens favoritas – Batman, Rapunzel, Dora a Exploradora, Bob o
Construtor e outras –, longe de se distraírem com facilidade, eram mais
determinadas a desempenhar tarefas aborrecidas do dia-a-dia do que outras
crianças não mascaradas – um dos pontos mais construtivos das máscaras é
justamente este de nos despir de bloqueios interiores para enfrentarmos o mundo
com maior confiança.
Numa outra pesquisa da Universidade de Hertfordshire, Reino Unido, a
psicóloga inglesa Karen J. Pine apurou que a roupa que vestimos afeta os nossos
processos mentais e perceções, especialmente se for roupa de super-herói. Para
demonstrá-lo, pediu aos seus alunos que fizessem exames dando a alguns deles
camisolas de Super-Homem, ao passo que outros vestiam camisolas azuis lisas e
os restantes roupa normal. Conclusão: os Super-Homens achavam-se superiores e
mais atraentes, além de se sentirem capazes de levantar mais pesos do que
alguma vez tinham sonhado.
Adaptarmo-nos
e responder às várias situações sociais com que nos deparamos não é o mesmo que
fingir.
Anos de estudos comprovam que posturas de poder como as que usamos num
cargo de chefia, na vida pública ou em reuniões de trabalho moldam a mente, com
consequências ao nível da autoestima, da autoconfiança e de alterações na
química corporal que se traduzem numa melhor performance. “Mudam o
que acontece dentro do nosso sistema endócrino e do sistema nervoso autónomo”,
explica a investigadora Amy Cuddy de Harvard, falando num aumento de
produção da testosterona e na redução de cortisol (a hormona do stress)
que nos deixam capazes de enfrentar o que quer que seja: “O modo como cada um
conduz o corpo afeta a forma como pensa, sente e se comporta.”
Na verdade, estamos sempre a passar mensagens à nossa volta sem termos
consciência disso, sublinha Raquel Guimarães, diretora da Fashion School no
Porto, para quem o mais difícil no processo comunicacional passa por conciliar
aquilo que queremos transmitir – o nosso desejo de existir e sermos
reconhecidos, a necessidade de identificação com o outro – com o que o mundo
realmente percebe sobre nós – um olhar exterior pelo qual o sujeito modifica o
comportamento e vai valorizando aspetos da sua identidade. “Projetamos uma
imagem nossa a cada instante e essa comunicação não-verbal inclui
microexpressões, o vestuário, a atitude e a linguagem corporal, tudo
integrado”, enumera a especialista, com a noção de que a ideia que
construímos de nós é baseada em grande parte no que apropriamos diante dos
outros.
Seja como for, não é fingir: é responder adequadamente às várias
situações sociais, adaptando-nos a elas. Nem se trata de ser várias pessoas:
estamos é condicionados pelos filtros morais e sociais que usamos consoante o
contexto. Uma terapeuta que é extremosa em casa não pode assumir as dores dos
seus pacientes em consulta, por exemplo. Tal como um funcionário repreendido
pelo chefe de manhã não o imagina capaz de ter dormido na caminha da filha
nessa mesma noite para a sossegar. “Em todo o caso, o preço de nos escondermos
de nós mesmos e dos outros costuma ser uma impressão de pouca confiança e certa
falta de energia”, avisa o psicólogo Vítor Rodrigues. É preciso gostar-se muito
do Carnaval para querer viver eternamente mascarado.
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