terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Que máscaras são estas que todos usamos?



A ideia de que o mundo é um palco (ou uma espécie de Carnaval) é verdadeira. Representamos diariamente em casa, no trabalho, com amigos, a cada contexto. E assim nos relacionamos com outras pessoas que fazem outro tanto, gerindo as suas próprias personagens e representações. Máscaras servem para orientar expectativas e impressões. Para nos sentirmos melhor connosco. Daí todos sermos tantos-em-um, com o que isso tem de mau e bom.

Texto de Ana Pago

Nenhum homem é uma ilha isolada, proclamou o poeta inglês John Donne, ciente de que todos somos seres que precisam do convívio com outros seres como de pão para a boca. Também somos bastante mais complicados do que as plantas, sempre a questionar o que vamos dar de nós e o que queremos receber dos outros, pelo que a dada altura é natural começarmos a acreditar que só seremos aceites se agirmos, falarmos e pensarmos como a maioria, adotando máscaras diferentes conforme o ambiente social. Mas como interagimos com elas postas? Podemos viver de máscaras o tempo todo? Qual o perigo de usá-las? E, sobretudo, o que resta de nós se as tirarmos?

Persona significa o mesmo que máscara e é um termo que parece vir do grego persono, ‘soar através’, que se relaciona com as máscaras gregas que representavam personagens no teatro”, sustenta o psicólogo Vítor Rodrigues, autor d’O Livro da Apreciação (ed. Farol). O psiquiatra Carl Jung popularizou a visão de que todos apresentamos personas ou máscaras sociais, ou seja, representamos papéis face aos outros ligados com o que pensamos ser uma apresentação aceitável de nós mesmos perante o mundo.

 
Para o psicólogo Vítor Rodrigues, usamos as nossas máscaras sempre que o medo de sermos mal vistos se sobrepõe à necessidade de sermos genuínos.

“Jung falou na máscara social como um compromisso entre indivíduo e sociedade sobre o que um ser humano devia parecer ser”, lembra o psicoterapeuta, familiarizado com os receios de nos apresentarmos como somos, as manifestações de poder e resistência que assumimos, o querermos sentir-nos melhor connosco e enfrentar situações que nos sãodesagradáveis – no fundo, tudo o que nos influencia a representar. “Usamos as nossas máscaras sempre que o medo de sermos mal vistos ou agredidos pelo que desejamos, apreciamos, pensamos e sentimos se sobrepõe à necessidade de sermos genuínos”, diz.

A própria sociedade dá muitas vezes sinais contraditórios: políticos corruptos a vencer eleições sob uma falsa aparência de honestidade; outros honestos a esconderem que o são para evitar perseguições; muita gente a mostrar nas redes sociais o que aparenta ser mais popular e menos suscetível a censuras. Lá está: uma pessoa adapta-se e é desejável que o faça. “Apesar de ser evidente para os psicólogos que o hábito precoce de usar máscaras sociais pode levar-nos a criar um reduto de segurança em que já nem nós sabemos bem quem somos, identificando-nos com essas personas que nos protegem das expectativas e censuras dos outros.” Torna-se difícil viver sem máscaras de algum tipo, admite Vítor Rodrigues.

Também o filósofo Jean-Jacques Rousseau dizia que o homem que vive em sociedade traz consigo uma máscara de artificialidade que se sobrepõe à sua verdadeira natureza, observa a professora Custódia Martins, do Instituto de Educação da Universidade do Minho, considerando que o próprio se apresentava como o protótipo do homem que conseguiu preservar a memória dessa essência, razão por que foi mal-amado pelos seus pares. À educação caberia resgatar os princípios essenciais da existência humana que a sociedade nos condiciona a esquecer: “Viver em comunidade é diferente de o homem se alienar na sociedade porque ignora ou rejeita a sua natureza, acreditando encontrar na vontade de todos a vontade geral”, diz a investigadora em educação.

Posturas de poder como as que usamos num cargo de chefia, na vida pública ou em reuniões de trabalho moldam a mente.

Máscaras são uma força poderosa. Além das muitas que começamos a encarnar em crianças por pressões do exterior (o que é aceitável na rua, entre miúdos, pode não o ser em casa com adultos), disfarçar-se num sentido literal permite a quem usa a máscara ser a personagem com que se identifica e exteriorizar comportamentos. “Deixe o seu corpo transmitir a informação de que você é poderoso, merecedor aos olhos dos outros, e vai acabar por se tornar alguém mais presente, motivado e autêntico”, confirma a psicóloga social norte-americana Amy Cuddy, professora da Harvard Business School e autora do best-seller O Poder da Presença.

Segundo uma investigação conjunta efetuada por psicólogos das universidades da Pensilvânia, Minnesota e Michigan, EUA, publicada em 2016 na revista Child Development, crianças dos 4 aos 6 anos disfarçadas das suas personagens favoritas – Batman, Rapunzel, Dora a Exploradora, Bob o Construtor e outras –, longe de se distraírem com facilidade, eram mais determinadas a desempenhar tarefas aborrecidas do dia-a-dia do que outras crianças não mascaradas – um dos pontos mais construtivos das máscaras é justamente este de nos despir de bloqueios interiores para enfrentarmos o mundo com maior confiança.

Numa outra pesquisa da Universidade de Hertfordshire, Reino Unido, a psicóloga inglesa Karen J. Pine apurou que a roupa que vestimos afeta os nossos processos mentais e perceções, especialmente se for roupa de super-herói. Para demonstrá-lo, pediu aos seus alunos que fizessem exames dando a alguns deles camisolas de Super-Homem, ao passo que outros vestiam camisolas azuis lisas e os restantes roupa normal. Conclusão: os Super-Homens achavam-se superiores e mais atraentes, além de se sentirem capazes de levantar mais pesos do que alguma vez tinham sonhado.

Adaptarmo-nos e responder às várias situações sociais com que nos deparamos não é o mesmo que fingir.

Anos de estudos comprovam que posturas de poder como as que usamos num cargo de chefia, na vida pública ou em reuniões de trabalho moldam a mente, com consequências ao nível da autoestima, da autoconfiança e de alterações na química corporal que se traduzem numa melhor performance. “Mudam o que acontece dentro do nosso sistema endócrino e do sistema nervoso autónomo”, explica a investigadora Amy Cuddy de Harvard, falando num aumento de produção da testosterona e na redução de cortisol (a hormona do stress) que nos deixam capazes de enfrentar o que quer que seja: “O modo como cada um conduz o corpo afeta a forma como pensa, sente e se comporta.”

Na verdade, estamos sempre a passar mensagens à nossa volta sem termos consciência disso, sublinha Raquel Guimarães, diretora da Fashion School no Porto, para quem o mais difícil no processo comunicacional passa por conciliar aquilo que queremos transmitir – o nosso desejo de existir e sermos reconhecidos, a necessidade de identificação com o outro – com o que o mundo realmente percebe sobre nós – um olhar exterior pelo qual o sujeito modifica o comportamento e vai valorizando aspetos da sua identidade. “Projetamos uma imagem nossa a cada instante e essa comunicação não-verbal inclui microexpressões, o vestuário, a atitude e a linguagem corporal, tudo integrado”, enumera a especialista, com a noção de que a ideia que construímos de nós é baseada em grande parte no que apropriamos diante dos outros.

Seja como for, não é fingir: é responder adequadamente às várias situações sociais, adaptando-nos a elas. Nem se trata de ser várias pessoas: estamos é condicionados pelos filtros morais e sociais que usamos consoante o contexto. Uma terapeuta que é extremosa em casa não pode assumir as dores dos seus pacientes em consulta, por exemplo. Tal como um funcionário repreendido pelo chefe de manhã não o imagina capaz de ter dormido na caminha da filha nessa mesma noite para a sossegar. “Em todo o caso, o preço de nos escondermos de nós mesmos e dos outros costuma ser uma impressão de pouca confiança e certa falta de energia”, avisa o psicólogo Vítor Rodrigues. É preciso gostar-se muito do Carnaval para querer viver eternamente mascarado.

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