Um dos laboratórios conceituais mais significativos da obra de Michel Foucault foi dedicado ao estudo das
metamorfoses da concepção de sexo no Ocidente.
O comentário é do sociólogo italiano Massimiliano Panarari, professor da
Universidade LUISS Guido Carli, em Roma, e da Universidade Luigi Bocconi, em
Milão, publicado por La Stampa, 31-01-2020. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o artigo.
Originalmente, o filósofo havia pensado nisso como um estudo daquilo que
ele considerava como o dispositivo biopolítico da sexualidade
na era moderna (entre os séculos XVI e XIX), para depois escolher, em vez
disso, fazer uma genealogia histórica do “sujeito desejante” através da análise
de alguns textos paradigmáticos da cultura greco-romana. Um canteiro de obras
aberto, mas que permaneceu incompleto devido à sua morte prematura em 1984.
Recentemente, foi publicado também em italiano “Le confessioni
della carne” [As confissões da carne] (Ed. Feltrinelli, 426 páginas), o
quarto volume da sua incompleta “História da sexualidade” (cuja
publicação havia iniciado em 1976), que, a partir do universo greco-romano
clássico, transporta o leitor para o mundo cristão. Um livro que estava “quase
pronto”, mas não terminado, assim que saiu do arquivo de Gallimard, após
mais de 30 anos de interrupção da publicação dos seus textos que haviam
permanecido inéditos. É uma experiência intelectual fascinante, como todos os trabalhos
foucaultianos.
Em um cenário temporal posterior, o fio condutor continua sendo o mesmo
dos livros anteriores dessa obra planejada em vários volumes, justapondo os
processos de constituição do sujeito na antiguidade. Acompanhados e
reconstruídos nestas páginas, passo a passo, com a releitura dos Padres do
cristianismo dos primeiros séculos (dos séculos II a IV d.C.) mediante uma
abordagem hermenêutica (mas de matriz “desconstrutiva e desconstrucionista”,
por assim dizer).
Também nesse livro, vemos em ação, assim, o Foucault do debate serrado entre genealogia
e arqueologia dos saberes, com livros e pensamentos nos quais entrevia a
estruturação de uma doutrina e de um aparato de preceitos que reorientavam e
curvavam a liberdade dos indivíduos.
Em algumas das suas lições no Collège de France, de fevereiro de
1978, o filósofo começara a delinear as especificidades do contexto da
“governamentalidade pastoral”, fundamentada em uma série de “atos de verdade”
(predominantemente em torno a si mesmos), que se articulavam através de uma
série de práticas de obediência.
É a perspectiva que guiará os seus apontamentos e as suas anotações que
confluíram de maneira quase orgânica neste quarto volume da “História da
sexualidade”. Graças à qual ele evidenciava o processo de translação, em
certos aspectos sem solução de continuidade, nos Padres da Igreja, de toda uma
série de preceitos que provinham do paganismo. Que, nos dois primeiros séculos
da era cristã, acaba se sujeitando, precisamente, a uma governamentalidade de
tipo público.
Para os filósofos gregos e romanos, que a haviam elaborado inicialmente,
ela permanecia predominantemente destinada à arte de viver e às “técnicas de
si” do indivíduo. A desconstrução foucaultiana, assim, havia levado à
subversão de uma convicção muito enraizada: a de uma moral dominante de
tolerância em relação à diversidade das condutas sexuais na era antiga.
Por meio da hermenêutica textual das “confissões da carne”, o
célebre professor de História dos Sistemas no Collège de France
evidenciou, em vez disso, como as raízes da ideia da sexualidade para
fins procriativos, da proibição da homossexualidade e da exaltação de
temperança (e, portanto, da continência) encontram-se nas escolas e nas seitas
filosóficas greco-romanas, e especialmente no estoicismo.
As regras da carne, portanto, já estão codificadas pela filosofia
antiga, mas a sua disciplina da existência se desenvolve em um quadro
racionalista e de formação espiritual voluntária, que o cristianismo
definiria como livre arbítrio. E o indivíduo, portanto, não era absolutamente
obrigado a se submeter a isso, enquanto a patrística converteu essas
tecnologias de si, com base na “antropologia negativa” de São Paulo –
segundo o qual a maldade, de fato, se abriga dentro de nós e, consequentemente,
a anulação do prazer se torna o caminho exclusivo para combatê-la – no pilar da
“arte de viver cristãmente”. Edificada sobre a dimensão pública da vigilância
e sobre a figura do pastor como conselheiro espiritual a quem se deve
prestar contas de todos os aspectos da esfera privada, através da definição de
práticas e regras (do batismo à penitência) que configurarão um “regime”, como Foucault
o chama no rastro dos médicos antigos, a ser seguido de perto.
Assim, o cristianismo – primeira religião do mundo antigo a gerar
uma Igreja, como ressalta o filósofo francês – dará origem à disciplina
penitencial e à da ascese monástica, que orientarão fortemente o sujeito
ocidental, estabelecendo uma conexão entre o conceito de mal e o de verdade.
Aqui se situa também a nova moral sexual cristã, fruto da justaposição e
estratificação de um certo conjunto de tratados (esquecido) dos primeiros
séculos, que vai da doutrina do matrimônio de Clemente de Alexandria à
arte cristã da virgindade (de São Cipriano e dos bispos Basílio de
Ancira e Metódio de Olimpos), até a categorização da libido por Santo Agostinho. E, em
particular, em Clemente de Alexandria, o filósofo identificava os dois
principais âmbitos destinados a orientar a ética cristã: o tema da virgindade e
o da concupiscência.
Foucault nos faz ler em contraluz
que é como se o cristianismo tivesse inventado o sujeito do
inconsciente, tão distante daquele sempre presente a si mesmo, que o amadíssimo
universo cultural tardo-pagão quisera construir.
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FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/596071-foucault-como-o-sexo-se-tornou-poder
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