sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

PROJETO DE BOLSONARO PARA CULTURA RETOMA CONCEITOS DE ERA NACIONALISTA

Em conversa com Regina Duarte sobre a Secretaria Nacional de Cultura, Bolsonaro 
disse que a política cultural deve seguir o desejo da ‘maioria’ da população, 
a seu ver ‘conservadora e cristã' 
— Foto: Marcos Corrêa/PR


Por Ana Paula Sousa

Na transmissão pela internet do dia 16 de janeiro, quando o ex-secretário Nacional de Cultura Roberto Alvim anunciou o Prêmio Nacional das Artes, Jair Bolsonaro disse que, enfim, o Brasil teria uma “cultura de verdade”, “uma cultura para a maioria”. Alvim, depois de um vídeo no qual parafraseava o ideólogo nazista Joseph Goebbels (1897-1945), foi substituído por Regina Duarte. A troca não muda, porém, a visão de cultura do presidente.

Na conversa que teve com a atriz, ainda antes de ela dizer “sim”, o presidente reiterou o discurso pautado pela ideia de que a política cultural deve seguir o desejo da “maioria” da população brasileira, a seu ver “conservadora e cristã”. Segundo o presidente, quem quiser “filme gay” pode fazer, desde que com seu próprio dinheiro. Antes, ele manifestara o desejo de ver filmes sobre “heróis nacionais”. Procurada pelo Valor, a assessoria de imprensa disse que Regina, por ora, não tem dado entrevistas porque aguarda a publicação de sua nomeação no “Diário Oficial”.

“O conceito de cultura, no lulopetismo e no bolsonarismo, é paradoxalmente elitista. É um conceito restritivo"
-  Antônio Risério –

Ainda que de forma superficial e enviesada, as declarações de Bolsonaro guardam em si dois conceitos-base da política cultural: a definição do que é cultura - em geral, e brasileira, em particular - e a discussão sobre o papel do Estado no apoio a criadores, produtores e instituições.

Para além das posições polêmicas, como as do maestro Dante Mantovani, presidente da Fundação Nacional para as Artes (Funarte), que atrelou o rock à “indústria do aborto” e ao “satanismo”, existe um certo projeto de cultura no governo. Apesar de não ter uma política que o sustente e de ser, na prática, irrealizável, esse projeto tem muito a dizer sobre o papel que a esfera cultural desempenha no jogo político contemporâneo.

 
O apoio do Estado à cultura tem sido, na opinião do artista 
pernambucano Antonio Nóbrega, historicamente elitista 
— Foto: Silvia Costanti / Valor

A primeira pergunta a ser feita para se compreender o discurso bolsonarista é, justamente, o que seria uma “cultura de verdade, feita para a maioria”. Definir o conceito de cultura é, nas palavras do sociólogo Renato Ortiz, uma tarefa “exaustiva e inútil”. Segundo ele, professor-titular do Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, ao tentarem levar a cabo tal feito, na década de 1950, dois antropólogos encontraram 164 significados do termo. Imagine-se hoje.

O mais razoável, portanto, para refletir sobre os significados dos embates em curso, é tomar por base uma ideia geral de cultura, ligada à produção artística e à criação. Ortiz, teórico inaugural dos conceitos de mundialização e diversidade no Brasil, interpreta as falas do governo a partir de dois princípios: o conservadorismo e a repressão.

“A diversidade é um empecilho a esse ideal [conservador] porque o diverso é a minoria, é o que desconstrói a ideia de maioria"
— Renato Ortiz –

O eixo conservador é aquele que valoriza a tradição e recupera o tema clássico da construção da identidade nacional a partir de um ideal de religiosidade e de família que desconsidera, por exemplo, as religiões de matriz afro ou o Carnaval - que, apesar de ser uma tradição, não é adequado aos costumes conservadores. “Bolsonaro recupera o passado do Integralismo e mesmo da ditadura militar (1964-1985), quando tínhamos a valorização da família e da identidade nacional. A diversidade é um empecilho a esse ideal porque o diverso é a minoria, é o que desconstrói a ideia de maioria”, afirma Ortiz.

O sociólogo pondera, no entanto, que esse projeto não tem a menor possibilidade de ser bem-sucedido. “Primeiro, porque o presidente faz isso no momento da globalização, no qual o Estado não tem o monopólio sobre os costumes e no qual o conceito de nação - entendida como uma instância capaz de integrar as pessoas no seio de uma mesma totalidade - desfez-se. Depois, porque é impossível disciplinar a área cultural.” 

 
Nos anos 1990, Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi criaram o Cine 
Mambembe, que exibia filmes pelo país. ‘
Em cada canto do Brasil, era uma narrativa 
que gerava maior ou menor identificação’, diz Laís 
— Foto: Divulgação 
 
Justamente ao perceber que o Estado não tem a hegemonia para impor o que deseja, o governo entrou numa espiral de antagonismo com o setor cultural e, em meio ao conflito, tenta lançar mão de atitudes repressivas. “A cultura é um terreno de lutas e disputas. É um terreno não só da produção de filmes, peças etc., mas da construção de identidades.”

Esse movimento está muito ligado às “guerras culturais”, teoria usual no discurso conservador. Cunhada nos anos 1990, essa ideia, segundo o filósofo Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciência e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo, se refere a pautas morais, que surgiram como reação aos movimentos feminista, gay e negro. No Brasil, ela foi trazida à luz pelo escritor Olavo de Carvalho, guru do presidente.

“A leitura do Bolsonaro sobre a cultura é a de que existe uma elite, nas artes e nos meios de comunicação, que propaga ideias que estão em desacordo com o que deseja o povo”, afirma Ortellado. A pauta identitária, ligada aos direitos das minorias, contrapõe-se ao sonho de uma “cultura nacional”.

Vídeo: República ! Direitos (Bloco 5) – Pablo Ortellado – Filósofo e pesquisador da USP

Nada disso, segundo Ortellado, pode ser entendido como política cultural. “Estamos sempre no terreno do que, em inglês, chamaríamos de ‘politics’ [política, no sentido mais geral ], e jamais da ‘policy’ [política pública]. O que ouvimos é apenas um discurso populista, distorcido e paranoico.”

A distância entre discurso e prática ficou evidente nos ataques à Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, e na posterior reformulação do mecanismo. “A Rouanet, muito falada durante a campanha eleitoral, juntou duas coisas: a ideia de corrupção e a de favorecimento das elites culturais. Essa ideia de que a lei foi usada para cooptar artistas para o petismo não tem sentido algum, mas colou”, diz Ortellado. “Acontece que o governo não conseguiu mudá-la. Fez alterações pontuais, de impacto reduzido, porque, de fato, existe um limite de ação.”

O primeiro ano de governo mostrou que a suposta “revolução na cultura”, pregada por Alvim, não tem sustentação sequer financeira. De um lado, não cabe ao governo decidir o destino dos recursos da Lei Rouanet, cuja lógica é deixar o poder decisório nas mãos das empresas - ou seja, há limites concretos à imposição dos “filtros” desejados por Bolsonaro. De outro lado, o dinheiro que o governo tem para investimento direto seria suficiente para produzir um único musical como “O Fantasma da Ópera”.

O que também chama atenção no discurso bolsonarista sobre a cultura é a reverência à arte clássica e um elitismo passadista, que supervaloriza a produção de matriz eurocêntrica em detrimento das raízes populares. “Entendo a cultura popular brasileira como aquela caudatária de ritmos, narrativas, danças, cantos, cosmogonia, procedimentos, valores etc., predominantemente oriundos das culturas indígenas, africanas e luso-populares”, afirma o pernambucano Antonio Nóbrega, artista múltiplo envolvido com o universo da cultura popular, diretor do Instituto Brincante. “O sincretismo dessas culturas, ao longo de mais de quatro séculos, edificou nosso caudaloso imaginário cultural”, diz

A exclusão do imaginário popular das políticas públicas voltadas à cultura não é, contudo, uma exclusividade bolsonarista. O apoio do Estado à cultura tem sido, na opinião de Nóbrega, historicamente elitista. “Basta você examinar o aparelhamento cultural das instituições públicas e privadas brasileiras: orquestras sinfônicas, quartetos de cordas, companhias de dança clássica e contemporânea. Onde está a instituição brasileira que subsidie um grupo de choro, de frevo, de pesquisa em dança brasileira de matriz popular?”

O antropólogo Antonio Risério, que ocupou uma secretaria no Ministério da Cultura no primeiro mandato de Lula e é autor do livro “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária” (Topbooks, 2019), compara os dois governos.

“O conceito de cultura, no lulopetismo e no bolsonarismo, é paradoxalmente elitista. É um conceito restritivo, contemplando uma clientela preferencial, que é o contingente artístico-intelectual”, afirma Risério. “Uma política pública para a cultura deve partir de uma perspectiva mais generosa: cultura é a soma dos atos técnicos e expressivos nos quais se inscreve a criatividade de um povo. Não tem nada a ver com a celebração de celebridades, sejam elas Chico Buarque ou Dedé, dos Trapalhões.”

Na visão da cineasta Laís Bodanzky, hoje à frente da Spcine, empresa municipal de São Paulo dedicada ao audiovisual, uma política pública deve, antes de tudo, ser feita para todos. “O que nos guia é a Constituição, então o direito de todos deve ser respeitado. Todos devem ter acesso e todos devem ter voz. Acredito que, além disso, a política tem de buscar a diversidade”, pontua. Na Spcine, Laís implantou uma política afirmativa que estabelece metas a serem alcançadas. Uma delas é ter mais mulheres negras na direção de filmes.

Quando questionada sobre a ideia de maioria, ela volta no tempo e retoma o aprendizado que teve com Cine Mambembe, projeto que tocou, em meados dos anos 1990, ao lado do roteirista Luiz Bolognesi. A dupla colocou um projetor de filmes 16 mm no porta-malas de um carro e foram exibir produções pelo Brasil. De Caraíva (BA) a Carolina (MA), Laís viu o quão falho é o conceito de maioria.

“Em cada cidade era um o filme preferido; em cada canto do Brasil, era uma narrativa que gerava maior ou menor identificação”, rememora Laís. Hoje, à frente de um órgão público, ela guarda da experiência uma outra lição: “Uma política pública só deve pensar em maioria no que diz respeito ao acesso à cultura. Que a maioria da população tenha acesso a um leque de opções que reflita a diversidade que marca o nosso país”.

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