Por José Alvaro Cardoso*
A condição de independência do Banco Central do Brasil (BCB), formalizada em 2021, deve ser compreendida no contexto de conforto absoluto no qual vivem os bancos no Brasil, desde há muito tempo. Pouca gente sabe que, também no ano de 2021, foi aprovada a Lei 14.185/2021, que autoriza o Banco Central do Brasil (BCB) a receber depósitos voluntários remunerados das instituições financeiras. O objetivo anunciado daquela lei foi instrumentalizar o Banco Central no controle da chamada liquidez (disponibilidade de dinheiro), a fins de controle do estoque da dívida pública.
Os depósitos no Banco Central são um instrumento de controle da liquidez, visando manter os níveis de circulação de moeda, garantindo o funcionamento da economia, sem gerar inflação por excesso de meio circulante, por exemplo. Existem dois tipos de depósitos: o feito à vista (advindos de depósitos em dinheiro) e o a prazo (de aplicações financeiras). Pelos depósitos feitos a prazo os bancos são remunerados, recebem uma contrapartida do Banco Central, pela entrega do recurso. Os depósitos compulsórios são exigidos pelo BCP nas duas modalidades de depósito, definindo um percentual dos recursos que ficarão obrigatoriamente depositados, tanto nos recursos à vista, quanto nos depositados a prazo. O que a lei aprovada em 2021 fez foi possibilitar legalmente a remuneração dos depósitos voluntários a prazo.
Até então o principal mecanismo do BCB para controlar a liquidez da economia eram as Operações Compromissas, através das quais a autoridade monetária central vende aos bancos e investidores títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional com esse objetivo. Cada título emitido pelo Tesouro Nacional, através dessas operações, aumenta o estoque da dívida pública. Esse foi um dos principais argumentos dos defensores da Lei 14.185/2021. A Lei teoricamente possibilita reduzir os valores da dívida pública, na medida em irá trocar as operações compromissadas (que requerem a emissão de títulos públicos) por depósitos. Com a nova metodologia o Brasil poderá “limpar” valores da dívida pública total devido ao estoque de títulos que o BC tem de usar para praticar as operações compromissadas, aproximando os dados contábeis da dívida de conceitos internacionais.
A Auditoria Cidadã da Dívida (Associação sem fins lucrativos que busca realizar auditorias da dívida pública brasileira), vem denunciando a Lei do “Depósito Voluntário Remunerado”, como mais uma mamata oferecida aos bancos pelo BCB, totalmente sem limites ou parâmetros. Segundo a Auditoria Cidadã, o Banco Central tem recebido, além do depósito compulsório, grande parte da sobra de caixa dos bancos e tem remunerado esses valores por meio de uma irregularidade, feita mediante o abuso das “Operações Compromissadas”, que no Brasil já chegaram a 24% do PIB.
Segundo a Auditoria, esse esquema, conhecido também como “bolsa-banqueiro”, custou quase R$ 3 trilhões ao Tesouro Nacional em 10 anos. A economista Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional daquela organização, chama a atenção para que, em março de 2020, quando o Banco Central disponibilizou R$1,2 trilhão de liquidez aos bancos, e o dinheiro ficou empoçado porque a economia estava “morta”, o BCB chegou a remunerar essas instituições financeiras sobre esse valor parado em seus caixas. Ou seja, enquanto a economia real afundava, o Banco Central remunerava dinheiro parado no caixa dos bancos, que ele mesmo havia emprestado.
Essa manobra foi realizada sem a existência de um banco central “independente”. Para a Auditoria Cidadã, a Lei que foi aprovada em 2021 é um prêmio aos bancos que atuam no Brasil, pois as operações de remuneração do dinheiro que sobra no caixa dos bancos, até então eram realizadas de forma abusiva, através das chamadas Operações Compromissadas. Esta era uma ação ilegal dos bancos, que foi legalizada através da Lei 14.185/2021.
O dinheiro existente nos caixas dos bancos pertence aos correntistas (pessoas físicas, empresas privadas, estatais, órgãos governamentais), estando em aplicações financeiras, ou não. Em uma situação “normal” os bancos deveriam emprestar esses recursos à sociedade, em troca de juros compatíveis com a realidade, disponibilizando recursos para consumo e investimentos, cumprindo assim uma função essencial do sistema financeiro que é a intermediação do crédito.
Uma parte dos recursos é destinada aos Depósitos Compulsórios, mecanismo que exerce um certo controle da chamada alavancagem, isto é o empréstimo do mesmo recurso várias vezes, que é uma das fontes das crises financeiras. Antes da aprovação da Lei 14.185/2021, o Banco Central favorecia largamente os bancos com as tais Operações Compromissadas, o que era ilegal. A lei veio resolver esse problema da ilegalidade e possibilitar uma grande mamata, a remuneração diária do dinheiro em caixa dos bancos, sem a necessidade de esses trabalharem para emprestar o dinheiro em caixa, o que deveria ser papel das instituições bancárias.
Tais operações são feitas também em outros países. O problema é que o Brasil é, disparado, o país com o maior volume dessas operações no mundo, chegando a 24% do PIB. Com o detalhe impressionante de que o país que ocupa o segundo lugar nessas operações, as Filipinas, tem 3% do PIB destinado a esse objetivo. Ou seja, o nível dessas operações no Brasil não se compara com qualquer outro país. Os dados divulgados pela Auditoria Cidadã têm como fonte informações apuradas pelo IFI (Órgão Fiscal Independente), do Senado Federal, com a finalidade de analisar e acompanhar as contas públicas do país.
A esse respeito chamou a atenção matéria do jornal Valor Econômico (“Para analistas, risco político adiciona prêmio aos ativos”, de 10/1/2023), jornal insuspeito de posições de esquerda, na qual um investidor de títulos da dívida pública brasileira, admite que o Brasil remunera com juros de padrão “bastante alto para os padrões dos mercados emergentes”. É certo que o investidor mencionado foi eufemístico nas suas afirmações, o que é normal, afinal de contas tem que disfarçar um pouco. Mas na realidade o Brasil é uma verdadeira galinha dos ovos de ouro à disposição de banqueiros, especuladores e outros tipos que circulam pelo planeta.
Segundo o levantamento referente a dezembro último, realizado pela Infinity Asset (gestora de recursos) entre 40 países analisados, o Brasil tem a taxa de juros mais elevada (8,16%), seguido por México (5,39%), Chile (4,66%), Hong Kong (3,12%) e Colômbia (2,39%). A principal razão imediata desta posição, que o Brasil ocupa há muitos anos com pequenas variações, são as taxas de juros explosivas. Atualmente a taxa básica de juros, a Selic, está em 13,75%, supostamente para conter uma inflação, que nada tem a ver com demanda. Claro, este argumento é apenas a tentativa de ocultar esse mecanismo cruel de subtração de toda uma população em benefício de banqueiros.
Na pesquisa mencionada acima, a média de juros reais entre os 40 países listados é de juros negativos (-2,16%), mostrando o nível da monstruosidade da política praticada pelo Banco Central Brasileiro. Estão sempre inventando “razões técnicas” para manter os maiores juros reais do planeta, que carreiam lucros exorbitantes aos banqueiros, simultaneamente, em que mais da metade da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar.
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