Elisabetta Rasy conta a história de uma mulher judia que conseguiu crescer espiritualmente apesar das perseguições e da deportação para os campos de extermínio.
Para Jean Améry, o escritor judeu austríaco que sobreviveu aos campos de concentração nazistas, e que se suicidou em 1978, a experiência do campo de concentração tinha representado a aniquilação, a derrota do espírito. Que diferença da surpreendente convicção vital da judia Etty Hillesum e de seu inabalável crescimento espiritual testemunhado nos famosos diários escritos durante os anos da ocupação alemã na Holanda, antes firmemente "livre" entre às pesadas restrições em que vive em Amsterdã, ciente do horror mas "cheia de felicidade", depois, novamente e cada vez mais, grata a Deus, no campo de Westerbork, onde seu único desejo é trazer conforto aos outros.
O pensamento torna-se ainda mais claro com a leitura do belo livro de Elisabetta Rasy, Dio ci vuole felici (Deus nos quer felizes, Etty Hillesum ou da juventude, em tradução livre, HarperCollins), porque afunda as mãos na exuberância da "garota" engolida por Auschwitz pouco antes de completar trinta anos.
O encontro entre Rasy, muitos de seus romances e ensaios dedicados a mulheres ousadas e criativas, e Hillesum se dá por um processo de identificação. Naturalmente não pelas discriminações, nem muito menos pela prisão e morte que Etty sofreu nas mãos do Terceiro Reich (em Westerbork “ergue-se um muro entre mim e ela” escreve Rasy, quase intimidada por poder abusar da sua memória), mas precisamente pelo espírito livre, inquieto, irreverente de Hillesum, sempre indomável na autodescoberta e no sentido da existência, em que se reconhece, desenvolvendo com ela "um surpreendente sentido de intimidade" desde que a leu pela primeira vez, em 1985, quando despreocupação, dúvidas e certezas, alegrias e infelicidades se confundiam "numa mistura de paixões no tortuoso caminho que tentamos percorrer para chegar a nós mesmos" durante a juventude, como Hillesum.
E de fato é em um estado de espírito semelhante, em escuta contínua de si mesma, de seus próprios pensamentos, daqueles alheios e dos amados livros, e muito de seu pulsante erotismo, envolto em contradições e curiosidade, que Etty se encontra em 1941 debruçando-se nos os quartos/estúdio de Julius Spier, de Berlim, aluno de Carl Gustav Jung, emigrado para a Holanda por causa das leis raciais, e depois criador de uma espécie de paraciência, a psicoquirologia, ou seja, a interpretação da alma através da leitura das mãos, um "mago" para alguns, um mestre sem dúvida para Etty, um charlatão para outros.
A tarefa que Hillesum atribui a S. (como sempre chama Spier no Diário) é “desatar o novelo emaranhado em que estava aprisionado o seu coração”, uma atitude libertadora perante o amor entrelaçada por Rasy com a sua própria vivência e com aquela de Katherine Mansfield, Edith Warthon, Virginia Woolf: agora fora da difícil família de origem – assim como nos anos mais fáceis anos 1960 e 70, muitas mulheres em movimento em direção à consciência e a ser livres farão – a lição aprendida, laboriosamente construída por Etty, é que corpo e mente são um só e não importa se descobri-lo comporte uma descida ao inferno, o essencial e encontrar a própria alma "enterrada pelas obrigações atávicas de uma boa criação feminina".
Também Rasy (a quem a revista Il Giannone agora dedica um número inteiro) viveu “amores promissores e ameaçadores" em sua juventude, "idade de fronteira", idade todo-poderosa, como escreveu outro autor atormentado e corajoso, Joseph Conrad, lembra Rasy. Tudo o que Etty fazia era arriscado, viver em uma comuna, querer se tornar escritora e sentar em sua escrivaninha sentindo-a similar "ao mundo no primeiro dia da criação", tendo dois relacionamentos ao mesmo tempo, e tendo tido muitos outros antes (em década de 1930! Em uma família de classe média), circulando por Amsterdã de bicicleta com os alemães nas esquinas, sentindo o céu acima e ao redor apesar de tudo. A premissa interna para ela é “inventar uma forma experimental de ser garota”, viver à sua maneira, tomando a onda de mudança que atravessa a feminilidade ao longo de todo o 1900, encontrando-se consigo mesma. Por isso Rasy se reflete nela.
Muitas perplexidades sobre Etty Hillesum, como ela poderia ser tão feliz, não sentir o peso das perseguições, aspirar tanto naquela escuridão ao amor, a uma carícia, a um eros feliz? Muitos se perguntaram isso. Mas Rasy continuamente nos lembra de como Etty estivesse plenamente ciente da vontade nazista de eliminar o povo judeu. Escreveu-o: “aceito esta nova certeza” e acrescentou: “Não me preocuparei mais com os meus medos... Acho a vida igualmente rica de significado”, “Vou pôr as coisas em ordem e todos os dias me despedirei”. Ela não sabia e não queria odiar. Rasy diria a ela para fugir, como tantos outros fizeram. Ela queria viver o destino do povo judeu: não se escondeu. Era uma acrobata. No final sentia Deus em todas as coisas, e se dirigia a Ele como a si mesma: "Eu te ajudarei meu Deus", dizia. A sua luminosidade é por vezes ofuscante: Rasy ilumina-nos também.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/625783-etty-e-o-sonho-do-amor
Nenhum comentário:
Postar um comentário