2 Jan 2023
|Este livro ainda será lido daqui a 100 anos.
O padre Tolentino Mendonça está convencido do futuro de Jesus de Nazaré, de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI, cujo segundo volume é hoje posto à venda em vários países – Portugal incluído. A previsão do biblista não se funda na tiragem recorde da primeira edição: 1,2 milhões de exemplares, para já em sete línguas (22 países dentro de poucos meses). A edição mais pequena é a portuguesa (15 mil). Em Itália, foram impressos 400 mil exemplares, na Alemanha e na Polónia 200 mil, 150 mil em Inglaterra, 100 mil em França e outros tantos em Espanha.
Não é por essa razão. Nem pelo formato electrónico em que o livro ficará disponível – em Portugal, a Princípia também pretende editá-lo nesse formato. Nem, sequer, porque Bento XVI responderá a perguntas sobre Jesus num programa a emitir a 22 de Abril, Sexta-Feira Santa.
O futuro assegurado ao livro é, antes, porque Jesus de Nazaré – Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, propõe um “Jesus real” por contraponto ao “Jesus histórico” que a investigação tentou caracterizar nos últimos 200 anos. Ou por sugerir uma hermenêutica da fé em contraste com uma leitura a partir da História. Mas a proposta de Ratzinger não pode ser tomada como um novo cânone, avisa Tolentino Mendonça.
Outro exegeta bíblico, o padre Joaquim Carreira das Neves, também não duvida de que o livro é um marco. Mas pensa que Ratzinger vai por um caminho “perigoso”: “Um exercício como o dele pode levar ao fundamentalismo”, diz.
Palavras duras? Ratzinger utiliza o método canónico de leitura da Bíblia, em que “todos os textos têm o mesmo valor”, sublinha. Desligados do contexto cultural, político ou religioso da época ou desinseridos de qualquer género literário (expressão que Ratzinger nunca utiliza), os textos são lidos apenas na sua lógica interna. “Isto tem consequências: se eu acabar com a noção de pecado original, que não está na Bíblia, cai o baralho de muitas coisas que a Igreja diz”, exemplifica Carreira das Neves.
O pecado original é referido pelo autor em Jesus de Nazaré: “A morte de Jesus é subtraída à linha do género de morte que deriva do pecado original do Homem”, escreve. Carreira das Neves contesta: “Como é que há ‘pecado original’, a partir da narrativa mítica da Criação, se Adão e Eva não são pessoas individuais mas corporativas, a viverem no Éden, sem liberdade? Pode haver pecado consciente sem liberdade consciente?”
Que Jesus é, então, o de Ratzinger? Para o Papa, como diz a doutrina católica, Jesus é Deus, veio ao mundo para expiar o pecado humano, não na perspectiva de um Deus cruel mas de um Deus “como lugar de reconciliação” que carrega o sofrimento humano. Por isso sofreu, morreu e ressuscitou, como previsto no Antigo Testamento.
Quase no final, entende-se plenamente o que Ratzinger pretende: a afirmação da ressurreição de Jesus como centro da fé cristã. Essa é a novidade que o escritor Pedro Mexia encontra na obra. Não no enunciado, mas na forma escolhida pelo autor.
Para Ratzinger a ressurreição não é da ordem histórica, porque abre para uma outra lógica: “A essência da ressurreição está precisamente no facto de ela romper a História e inaugurar uma nova dimensão (…). Neste sentido, é verdade que a ressurreição não é um acontecimento histórico do mesmo género que o nascimento ou a crucificação de Jesus. É algo novo.”
O escritor coloca-se, como católico, na perspectiva de São Paulo, quando o “apóstolo dos gentios” escreve: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé.” E diz: “Sem a ressurreição, a Igreja seria uma organização não-governamental e o cristianismo não teria qualquer poder transformador se não tivesse algo mais que uns preceitos morais.”
No que Ratzinger diz sobre a ressurreição, Mexia foi especialmente tocado “pelo facto de as pessoas não reconhecerem” Jesus. “Não é um morto que regressa à vida, mas alguém que vive uma nova realidade. Há quem diga que a ressurreição é só uma metáfora, mas Ratzinger propõe que ela foi algo tão novo que, mesmo quem antes vira Jesus, não entendeu logo o que se passou.”
As referências à ressurreição são o melhor exemplo de que “o que se discute neste livro são os verdadeiros fundamentos da fé”, diz Pedro Mexia. Nisso está de acordo também Manuel Clemente, historiador e bispo do Porto: Ratzinger fala “dos temas cruciais do cristianismo, das grandes questões a que não se pode escapar.”
Em busca do rosto de Jesus
Neste segundo volume do seu Jesus de Nazaré, Ratzinger entra em alguns dos temas fundamentais do cristianismo. O subtítulo – Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição – aponta o tempo da acção: a última semana da vida de Jesus, com episódios como a entrada em Jerusalém antes da celebração da Páscoa, a Última Ceia com os apóstolos, a prisão, o processo, a crucificação e a morte de Jesus. O livro culmina tratando a ressurreição e a ascensão de Jesus.
No primeiro volume, o teólogo-Papa tratara a “vida pública” de Cristo: do baptismo à transfiguração, passando pelo Sermão da Montanha, a escolha dos discípulos, a mensagem das parábolas ou dos discursos de Jesus. Está prometido um terceiro volume, sobre as narrativas da infância, “prova de fogo” do trabalho de Ratzinger: os textos dos evangelhos sobre o tema são hoje considerados pelos exegetas, os investigadores do texto bíblico, apenas narrativas simbólicas com intenção catequética – uma das perspectivas que Ratzinger rejeita na sua abordagem.
Tal como no primeiro tomo, o autor insiste que esta é uma reflexão pessoal na busca do rosto do “Senhor Jesus”. Recusa a ideia de que a sua obra seja uma “vida de Jesus” ou uma biografia. Antes pretende fazer um “tratado teológico sobre os mistérios da vida de Jesus”, ilustrando “a figura e a mensagem” de Cristo.
Ratzinger insiste que, em termos de método, “a interpretação histórico-crítica já deu o que de essencial tinha para dar”. E que o “Jesus histórico”, tal como é apresentado pela exegese, “é demasiado insignificante no seu conteúdo para ter podido exercer tão grande eficácia histórica”.
Utilizando o método hermenêutico da fé, ou método canónico, Ratzinger toma os textos do Antigo Testamento para confirmar que tudo o que Jesus viveu já estava previsto nas Escrituras. Deixa de lado questões polémicas, como a de saber se havia ou não mulheres na Última Ceia. Um tema sobre o qual alguns dos exegetas citados por Ratzinger não têm dúvidas.
John Meier, um dos maiores biblistas actuais, autor de Um Judeu Marginal, diz que Jesus “considerava e tratava” como “discípulas” as mulheres que o acompanhavam. E Joachim Gnilka escreve, no seu Jesus de Nazaré: “Não se pode excluir que as discípulas, que tinham vindo com ele para Jerusalém, também se encontrassem presentes” na Última Ceia.
As mulheres são a grande desilusão de Pedro Mexia, em relação ao livro de Ratzinger. “Soube-me a pouco a referência às mulheres junto da cruz”, diz.
Ratzinger aproveita algumas deixas para se referir a debates actuais. A propósito da traição de Judas, fala na “ruptura da amizade” que chega à Igreja – alusão à pedofilia ou às divergências internas? Contesta a violência com motivação religiosa, para pôr de lado a dimensão política de Jesus. Diz que Deus é quem purifica verdadeiramente, mas “a devoção do século XIX tornou de novo unilateral o conceito de pureza, reduzindo-o cada vez mais à questão do regramento no âmbito sexual”, inquinando a relação do cristianismo com o corpo.
A promoção da justiça é o papel do Estado, escreve, para acrescentar que, sem a verdade, assistimos à “mentira ideológica” das ditaduras. E os judeus, reafirma, não foram os culpados da morte de Jesus, antes a aristocracia do Templo de Jerusalém – um enunciado que a Igreja Católica repete há 50 anos, apesar de, na semana passada, a afirmação ter soado a “novidade” em comentários à pré-publicação de excertos.
“Há uma grande serenidade na abordagem dos temas”, diz D. Manuel Clemente. Na visão do bispo do Porto, o actual Papa “integra os dados da exegese”, aproveitando sempre “algum pormenor”, mesmo de quem discorda. Por isso, esta talvez seja a “apologética desejável”, diz: estamos perante um “livro racional mas existencial, em que o racional coincide com o envolvimento pessoal do crente que escreve”.
Resistência a Deus
É o Jesus da tradição que ali está, no qual “os acontecimentos ganham sentido”, diz o bispo. Esse Jesus não molestará ninguém, “mesmo que não seja crente”. O Jesus de Ratzinger, resume Clemente, “é a irrupção de Deus no mundo, abrindo a nossa humanidade através de um novo estado que é a ressurreição”. E que traduz o “grande ganho da afirmação de Cristo como centro da Igreja”, feita no último século.
É o Papa ou o teólogo quem escreve? O debate começa na assinatura do livro: Joseph Ratzinger/Bento XVI. Mesmo se nos prefácios dos dois volumes o autor sublinha o carácter pessoal da obra, o Vaticano sugeriu que os bispos poderiam apresentar publicamente o livro. “O que se pergunta é se os exegetas têm o direito de falar do Jesus histórico, do Jesus da fé e do Jesus da Igreja. Para Ratzinger, este assunto não interessa”, critica Carreira das Neves.
Este exegeta, que se prepara para publicar um livro sobre São Paulo, destaca a qualidade da obra de Ratzinger e a sua “impressionante humildade” académica. Mas cita o que considera erros de análise: a omissão da única referência histórica à conversão de São Paulo, feita pelo próprio numa das cartas, por contraste com a adopção do relato de São Lucas no livro bíblico dos Actos dos Apóstolos como autêntico; e os dois relatos da Ascensão de Jesus: um que diz que ela se deu no dia da ressurreição, o outro que o situa 40 dias depois.
As divergências podem levar à confusão, lamenta com mágoa o professor jubilado da Universidade Católica: “Perguntar-se-á quem tem razão, se os professores exegetas e teólogos ou o teólogo Ratzinger-Bento XVI. É natural que a balança penda para Ratzinger como Papa da Igreja Católica.”
Tolentino Mendonça diz ao contrário: “Um Papa não perde a liberdade de expressão teológica.” Mas essa descida do líder da Igreja deve ser um “diálogo entre iguais”, como o Papa referia no prefácio do primeiro volume.
A obra é um “momento fulgurante” e um “acto de coragem” do pensamento ratzingeriano, diz ainda o biblista, autor de A Leitura Infinita. Mas a crítica de Ratzinger omite conclusões da chamada “terceira vaga” de estudos sobre Jesus, segundo a qual “Jesus era um sábio à luz do judaísmo, um judeu marginal, um camponês do Mediterrâneo”. Ratzinger afasta demasiado depressa “o horizonte político em que Jesus viveu”. E, se esse ambiente não explica tudo o que foi Jesus, sem ele Jesus e o seu grupo não podem ser compreendidos.
A pergunta que fica é se é possível “desligar Jesus” do contexto civilizacional em que viveu. O Jesus do Papa, diz Tolentino Mendonça, pode parecer “demasiado construído” e Jesus “continua a ser um enigma, uma pergunta”. O método histórico-crítico tem de ser redimensionado, mas “não abandonado”, admite.
Pedro Mexia descobre um Jesus que enfrenta uma “resistência a Deus” no sofrimento – expressão do próprio Ratzinger – e de cujo sacrifício faz parte também uma dimensão de júbilo: “Cristo morre por algo e, do morrer, faz parte outra narrativa, a da ressurreição.” Sobre o debate acerca da historicidade, diz que só se pode ser “historiador até à porta do túmulo, a partir daí é o salto no escuro”.
Na conclusão do livro, escreve Ratzinger: “No gesto das mãos que abençoam, exprime-se a relação duradoura de Jesus com os seus discípulos, com o mundo. Ao partir, ele eleva-nos acima de nós mesmos e abre o mundo a Deus. Por isso os discípulos puderam transbordar de alegria quando voltaram de Betânia para casa. Na fé, sabemos que Jesus, abençoando, tem as suas mãos estendidas sobre nós. Tal é a razão permanente da alegria cristã.”
Fonte: https://setemargens.com/jesus-tem-futuro-na-versao-de-ratzinger/?utm_term=Jesus+tem+futuro.+Na+vers%3F%3Fo+de+Ratzinger&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
*Jornalista
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