sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

União e reconstrução

Por Ian Kisil Marino*

Proposta de marca do governo Lula vaza na web e divide opiniões 
 Logo do governo Lula. (Foto: Reprodução)
12 de janeiro de 2023

“Hoje nossa mensagem ao Brasil é de esperança e de reconstrução”. Essas palavras deram a tônica da mensagem de Luiz Inácio Lula da Silva em sua primeira fala pública como presidente empossado do Brasil, em 1º de janeiro de 2023. Reconstrução. A palavra pode significar muitas coisas, e a fala de Lula frente ao Congresso Nacional menciona muitas delas: reconstrução da soberania nacional, das florestas, da indústria nacional, da dignidade, da felicidade… O que une todos esses sentidos é a remissão, ao mesmo tempo, ao passado e ao futuro: enquanto construir implica fazer algo novo, o prefixo “re” sugere que este algo de alguma forma já existiu. Ao dizer que pretende “reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos”, Lula olha para frente e para trás ao mesmo tempo, se comprometendo junto ao seu governo a “dirigir todos os nossos esforços” para “reerguer este edifício de direitos e valores nacionais”.

Reconstrução é uma das palavras-chave do novo governo brasileiro, colorindo não só os discursos do presidente como o slogan do novo governo, ao lado da palavra “união”. Neste breve ensaio, procurarei refletir sobre um sentido específico do compromisso expresso nas ideias de união e reconstrução: a composição entre os tempos passado, presente e futuro que nelas está implícita. O material dessa reflexão são algumas das primeiras falas públicas de Lula e de alguns ministros e ministras.

Falar em reconstrução não é um acaso, especialmente em se tratando de um governo liderado por um personagem cuja história inclui o retorno, vinte anos depois, ao púlpito de presidente democraticamente eleito do Brasil. Após uma década marcada pela esforçada campanha de difamação por grande parte da imprensa nacional, pela atuação desqualificada dos comandantes da Operação Lava Lato que culminou na sua prisão antes das eleições de 2018, o próprio Lula se reconstruiu. Agora, a promessa é reconstruir o Brasil.

“Uma nação se expressa verdadeiramente pela alma de seu povo”, afirmou Lula. Que alma é essa? O presidente diz que “a alma do Brasil reside na diversidade inigualável da nossa gente e das nossas manifestações culturais”. Ainda assim, deve haver algo em comum que aglutine toda essa pluralidade que compõe o país. Lula retoma, então, a famosa ideia que até propaganda já virou: “compartilhamos uma mesma virtude, não desistimos nunca”. Em seu discurso de posse, o novo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, também lembrou dos “séculos de luta de um povo que não se resigna”. Uma nação que sofre, mas não desiste nunca é uma nação forte. Mas isso vale para todos os brasileiros e brasileiras? O presidente e o ministro sabem que não. Os dois mencionam enfaticamente a situação da população negra, dos indígenas, das mulheres, da comunidade LGBTQI+, das crianças e dos adolescentes, dos moradores de rua, dentre outros do povo brasileiro que incorporam essa alma brasileira que sofre, mas não se resigna. Ao mesmo tempo, Lula aponta a desigualdade, lembrando criticamente das elites cujo jeito vai muito mais na direção de subir o vidro do carro blindado para se isolar da pobreza e lucrar como acionistas de empresas públicas. Ainda assim, a figura do brasileiro que não desiste nunca se firmou, de alguma maneira, na nossa imaginação nacional, como se ela fizesse parte da personalidade de qualquer pessoa nascida no país, sem distinção de raça, de classe, de gênero, ou qualquer que seja.

O historiador Evaldo Cabral de Mello tem uma frase famosa em que diz: “o Brasil fez-se império antes de se fazer nação”.[ii] Com isso, ele quer dizer que a Independência brasileira, em 1822, implicou mais a criação de um Estado nacional independente, com nome próprio, do que a criação de uma nação. As comemorações ocorridas em 2022 pelo bicentenário dessa Independência, entretanto, não trataram friamente de um país sem alma, mas de uma nação digna de ser celebrada, embora sem consenso sobre o que exatamente deveria ser celebrado. Desfiles militares com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro celebravam uma nação fundada na ideia da família tradicional brasileira, marcada por uma suposta disciplina e pela fé em um Deus cristão. Em outros espaços, entretanto, celebrava-se a pluralidade religiosa, a resistência contra a escravidão, a luta contra o extermínio de comunidades indígenas e o combate ao patriarcado.

Em janeiro de 2023, a presença de brasileiros e brasileiras na esplanada dos ministérios, em Brasília, também se dividiu em dois sentidos bastante conflitantes: a alegria e o pacifismo dos apoiadores de Lula na posse, no dia 1º, e a raiva e a violência dos golpistas que depredaram os prédios do governo, no dia 8. Em 2022, comemorou-se o Brasil, mas as ideias de nação que conduziram essas comemorações não foram nem de perto homogêneas. Em 2023, o sentido das ocupações de Brasília foi mais que heterogêneo, mas diametralmente oposto. Mas o que isso tem a ver com a tão mencionada reconstrução?

Frente à multidão que o ouvia no calor de Brasília no dia 1º de janeiro, Lula afirmou: “Não existem dois Brasis. Somos um único povo, uma grande nação, somos todos brasileiros e brasileiras”. Aqui, ele se referiu às eleições. Lula venceu por pouco mais de 2 milhões de votos de diferença. 49,1% dos eleitores não o quiseram como presidente. O país está dividido, e as implicações dessa divisão ficariam mais claras do que nunca uma semana depois, no dia 8, quando uma parcela dos derrotados invadiu violentamente a Praça dos Três Poderes. “Juntos somos fortes, divididos seremos sempre o país de um futuro que nunca chega”, disse o presidente. Para o futuro chegar, pensa Lula, teremos que superar a divisão, teremos que pensar em um só Brasil. Indo um pouco além, Silvio Almeida mencionou em seu discurso que o novo governo não deve atuar somente pensando no presente, já que “o nosso passado e o nosso futuro também estão em jogo”. Reconstrução é passado e futuro ao mesmo tempo. Para pensar no futuro, o atual governo entende que deve olhar para o passado. Um país dividido, com duas ou mais imagens do que é o Brasil, é fruto de interpretações diferentes do nosso passado, o que dificulta a possibilidade de imaginar um futuro em comum. A visão do novo governo envolve celebrarmos juntos um mesmo Brasil. Envolve união, a outra palavra-chave do momento.

Umas das explicações mais famosas para a ideia de nação foi dada pelo historiador Benedict Anderson. Segundo ele, uma nação é uma “comunidade imaginada”. Não conhecemos todos os membros da nossa nação, mas imaginamos ter algo em comum com nossos conterrâneos, por isso somos uma comunidade imaginada.[v] “Algo em comum” e “união” não são equivalentes, mas dialogam. Em um outro trabalho bastante famoso, os historiadores Eric Hobsbawn e Terence Ranger falaram de “invenções das tradições” como forma de moldar as nações.[vi] O futebol, o carnaval, a feijoada, a caipirinha e o samba são algumas das famosas tradições que começaram a inventar o “comum” da nacionalidade brasileira, de meados do século XIX em diante.[vii] Não podemos achar, entretanto, que essas tradições representam fielmente a diversidade cultural, os gostos e o jeito de ser de todo mundo que nasceu e que nasce no Brasil. Nem todo mundo gosta de futebol ou de carnaval, e não por isso deixam de ser brasileiros. Além disso, essas tradições muitas vezes representam imposições de determinados gostos e culturas sobre outras que, minoritárias ou não, também representam o Brasil. A qualificação de muitos elementos da cultura de populações do Nordeste como regional, por exemplo, e inclusive o gentílico “nordestino”, que não tem par a altura na gramática brasileira, são provas de que a ideia de nação não é necessariamente democrática ou representativa, mas muitas vezes o contrário.[viii]

Mas quando falam de reconstrução e união, os representantes do novo governo querem reafirmar essa ideia de nação, muitas vezes pautada em estereótipos, imposições e silenciamentos? Não exatamente, por isso que Lula destaca a “diversidade inigualável da nossa gente e das nossas manifestações culturais”. No entanto, quando se fala de construir um futuro em comum, deseja-se, sim, alguma dose de sincronia.

As nossas ideias de passado, presente e futuro estão tão naturalizadas que às vezes não pensamos de onde elas vieram. No entanto, essas nossas percepções sobre o tempo têm a sua história e, não por acaso, elas dialogam muito com a própria história da formação das nações que hoje conhecemos, na virada do século XVIII para o século XIX. Foi ali que a chamada “civilização ocidental” começou a solidificar as ideias de passado, presente e futuro como temporalidades separada e cronologicamente orientadas de forma linear e progressiva. Por um lado, a ascensão do capitalismo como modelo econômico inseparável de uma economia mundo cada vez mais globalizada acabou exigindo alguma dose de precisão, sincronia e universalização na contagem do tempo, e o avanço técnico que permitiu a popularização dos relógios por todos os cantos ajudou nesse processo. Além disso, parte da ideia que sustentou a criação das nações envolveu o tempo. Uma nação deveria comungar de uma mesma experiência temporal, ter um passado em comum e um presente em comum, para, então, poder sonhar com um futuro em comum.[x] De certo modo, a própria crença na política e na democracia depende disso: deve-se crer que a política é o espaço, no presente, em que podemos construir o futuro. Como disse o historiador alemão Reinhardt Koselleck, esse processo de construção da moderna concepção do tempo molda o nosso “horizonte de expectativas”, abre caminho ao futuro como algo que nós mesmos construímos.[xi]

Mas, voltando ao Brasil de agora: o novo governo pensou em tudo isso quando criou a ideia do combo “união e reconstrução” para seu logo? Bem, talvez não nesses termos, mas, implicitamente, sim. Quando se percebe que a possibilidade de reconstrução não combina com a ideia de um país dividido, a união que se almeja não é a da identidade nacional pautada em estereótipos, palavras de ordem e no uso da camisa da seleção brasileira de futebol. A união necessária para reconstruir, de certo modo, se refere ao compartilhamento de uma percepção do tempo mais ou menos comum. Todos têm que viver o presente para imaginar o futuro juntos. O país tem que estar na mesma página, e os acontecimentos do início de 2023 mostra que, claramente, não estamos.

Mas quando o Brasil parou de viver em sincronia, se é que alguma vez já o fez? “O passado que nos lança em direção ao futuro”, disse Silvio Almeida em seu discurso de posse. Mais adiante, ele mencionou como o Brasil “não enfrentou a contento os horrores da escravidão”, tema também lembrado por Lula, que falou em “vencer o atraso de mais de 350 anos de escravidão”, “enterrar a trágica herança do nosso passado escravista”, além de mencionar uma “dívida histórica” com os indígenas. Sonia Guajajara, empossada no Ministério dos Povos Indígenas, também comentou em entrevista sobre a missão de “começar uma reparação histórica”, considerando a “invisibilidade e a negação de direitos aos povos indígenas”. Mas por que falar do passado se o lema do novo governo pretende ser o futuro? O Ministro dos Direitos Humanos responde: “presente, passado e futuro são entremeáveis, indissociáveis”. A expectativa de reconstrução requer a luta pela união no presente, mas parece haver um entendimento de que não é possível fazer isso sem olhar para o passado. Em outras palavras, parece haver o entendimento de que o Brasil precisa acertar as contas com a sua história.

O que gerou essa divisão na sociedade brasileira, que a faz ter visões tão conflitantes sobre o que é o Brasil, o que é ser brasileiro, e, assim, sobre a impossibilidade de viver unidos no presente em busca de um futuro em comum? Já há alguns anos historiadores e humanistas vêm debatendo essa questão, que muitos dizem ser um fenômeno global que vem ganhando força desde as últimas décadas do século XX. As hipóteses explicativas são muitas, complexas e complementares.[xii] Alguns apontam que as comunidades nacionais se enfraqueceram em um mundo globalizado, junto à competitividade neoliberal que fragilizou a vivência de experiências em comum, gerando um mundo mais individualista e dessincronizado. Outros dizem que a aceleração tecnológica, junto ao ritmo de trabalho neoliberal, impulsionou um afã constante pelo presente, gerando uma constante ansiedade de se manter atualizado que não dá espaço para uma imaginação de um futuro em comum. Uma terceira hipótese aponta que o acúmulo de experiências violentas, como a escravidão, o holocausto as ditaduras militares latino-americanas, contribuiu para a multiplicação de grupos de pessoas cuja experiência do tempo é marcada pelo trauma, por um passado que não passou, impossibilitando a comunhão de um presente sincrônico que dê espaço para pensar em um futuro em comum. Outros ainda citam como as falhas em construir políticas de memória, história, ensino, e reparação sobre traumas contribuem para o surgimento de comunidades de memórias mais ou menos isoladas, que se estranham em uma vivência marcada por tensões e disputas sobre o passado, o presente e o futuro.

Quando se fala da escravidão, do massacre contra os indígenas, quando se aponta que representantes do governo Bolsonaro “tentaram extinguir a Comissão de Mortos e Desaparecidos” da Ditadura Militar brasileira, a menção aos passados sensíveis e traumáticos é bastante clara. É isso que justifica Silvio Almeida dizer que a missão do novo governo é “não esquecer”. É isso que o faz afirmar um comprometimento com “memória, verdade e justiça”. Reconstrução implica que algo foi destruído, e o “projeto de destruição” operado pela gestão de Bolsonaro, como chamou a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, não se limitou ao desmatamento, às queimadas e à precarização do ensino, da pesquisa, da infraestrutura, e do cuidado pelos direitos humanos. A nossa relação com o passado, através da história e da memória, também foi atacada, e o comprometimento com a reconstrução e a união deve inevitavelmente passar por aí.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, participa da cerimônia de posse 
da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. (Foto: Agência Brasil)

Quando Silvio Almeida fala que “transparência é fundamental” e Lula menciona que a Lei de Acesso à Informação e o Portal da Transparência “voltarão a ser cumpridos”, eles apontam para um governo anterior que se pautou nas sombras, no “obscurantismo” como disse Lula, impondo sigilos sobre informações de interesse público. Quando o ministro dos Direitos Humanos diz que o novo governo deve “jamais aceitar o silenciamento e a injustiça”, ele o faz por reconhecer que no governo anterior houve “vozes caladas”, além de “políticas descontinuadas” no que se refere ao registro, à preservação e ao acesso à história. Se iniciamos a década de 2010 no sentido de acertar as contas com os traumas da Ditadura, a partir da Comissão Nacional da Verdade e da Lei de Acesso à Informação, o movimento de 2016 em diante andou na direção oposta. O atual governo deve reagir.

Não é a primeira vez que Lula fala do passado como forma de, também, falar do presente e do futuro. Em um belo ensaio publicado durante as eleições, o historiador Piero Detoni refletiu sobre como a constante menção ao passado dos dois primeiros mandados por Lula foi muito mais que uma estratégia eleitoral, mas uma experiência ética de resgate de uma justa memória para setores do Brasil que viram seus direitos e as suas histórias serem agredidas durante os dois últimos governos brasileiros. “Lula mobiliza, em um ato de lembrança, a metáfora do sonho, fazendo ela se movimentar muldirecionalmente para todas as temporalidades da história brasileira”, menciona Detoni, que, depois, completa: “Lula enfrenta, nessa campanha, os esquecimentos impostos, os esquecimentos operados como projeto, os esquecimentos comandados”.[xiii] Agora eleito, Lula segue se movimentando pelos tempos, imbuído de vencer esse projeto de destruição da história.

No meio de seu discurso ao povo em frente ao Palácio do Planalto, Lula foi interrompido. “SEM ANISTIA! SEM ANISTIA! SEM ANISTIA!”, gritava a multidão em uníssono. As palavras que ecoaram no país todo, considerando a transmissão do discurso em rede nacional, falavam, novamente, do passado, do presente e do futuro. Por um lado, lembra-se da Lei da Anistia de 1979, que concedeu perdão e liberdade a presos políticos que combateram o regime ditatorial de então, mas também incluiu, astutamente, governantes e agentes da repressão ligados às violações de direitos humanos e aos crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado contra seu próprio povo. A Lei da Anistia gerou impunidade, criou um buraco traumático na nossa história, dividiu a nação, repetindo, a seu modo, a maneira como se lidou com a escravidão e o extermínio indígena.

Ao gritar “SEM ANISTIA”, os presentes na posse de Lula se referiam também, e mais diretamente, ao passado recente, que arrisca ainda ser presente: a pandemia do novo coronavírus, cujas respostas dadas pelo governo de Bolsonaro resultaram em milhares de “órfãos da covid”, como disse Silvio Almeida, lembrando os mais de 700 mil mortos no país. A expectativa é que a anistia não se repita, que haja justiça e responsabilização sobre o horror da pandemia, amplificado pela negação da ciência, pelo sadismo e pela elaboração de mentiras e políticas de Estado cujo resultado foi a morte de seu próprio povo. O risco é que a nação se sinta novamente injustiçada, e portanto dividida, considerando o trauma e a sensação de uma história mal resolvida, como muitos dos testemunhos da pandemia nos permitem já hoje perceber.[xv]

Capa da edição 186, Le Monde Diplomatique Brasil. (Ilustração: Ivan HP)

Quando Lula afirma que quer converter o grito de “ditadura nunca mais” em “democracia para sempre”, e que “as responsabilidades por esse genocídio hão de ser apuradas e não devem ficar impunes”, ele parece estar em harmonia com o povo ali presente: pensando no futuro, mas entendendo tacitamente que para isso é necessário agir, no presente, com relação ao passado. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse que a “paz verdadeira é fruto da Justiça para todos e para todas”, além de mencionar o “tribunal da história” em seu discurso de posse. A fala do ministro dos Direitos Humanos harmoniza com essa ideia: “Não há paz sem memória e não há paz sem justiça”. Pois, é necessário guardar memórias, fazer história e criar justiça.

O desafio é enorme. Exige “coragem”, como disse Silvio Almeida. Lutar pela história, pela memória e pela justiça em um cenário de divisão e tensão tão claras é certamente difícil. Mas sem isso, é impossível combater as raízes que sustentam acontecimentos como o terror de 8 de janeiro em Brasília, operado por opositores extremistas. Trata-se de um “bom combate”, porque representa justamente o único caminho para reconstruir e unir o Brasil. “É um desafio civilizatório”, resumiu Lula. É fundamental que as primeiras palavras proferidas deixem claro o entendimento de que esta é uma “pauta institucional, não moral”, como disse Silvio Almeida. Não se pode deixar esquecer. É necessário encarar os traumas e tratar as feridas, e um país marcado pela colonização, a escravidão e uma infeliz presença da violência e do autoritarismo tem muitas delas. É preciso paciência e persistência, para organizar os arquivos, escrever a história e dividi-la entre nós, de forma transparente e justa.

Por enquanto, as palavras expressas por Lula e pelos ministros recém-empossados nos primeiros dias de 2023 são apenas palavras, que começam aos poucos a se converter em ações. Mais palavras, acompanhadas de ações concretas, surgiram em reação aos fatos de 8 de janeiro. Investigar, responsabilizar punir criminosos contra a democracia é essencial, mas não é tudo. O caminho para a materialização da reconstrução e da união é mais longo, envolve lutar pela história. Entretanto, essas palavras cumprem, por ora, uma função essencial, expressa em uma outra, que aparece na frase de Lula que abriu o ensaio: esperança.

Ian Kisil Marino é historiador e professor. Pesquisador do Centro de Humanidades Digitais-Unicamp e do Leibniz-Institut für Europäische Geschichte.

Discursos citados:

CIDA GONÇALVES. Discurso de posse ao Ministério das Mulheres. 3 de janeiro de 2023. Vídeo na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=bdBCVbCRAvM. Acesso: 5 de janeiro de 2023.

FLÁVIO DINO. Discurso de posse como ministro da Justiça e da Segurança Pública. 2 de janeiro de 2023. Transcrição na íntegra: https://www.gov.br/mj/pt-br/centrais-de-conteudo/discursos-do-ministro/discursos-do-ministro. Acesso: 4 de janeiro de 2023.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA. Discurso de posse frente ao Congresso Nacional. 1 de janeiro de 2023. Transcrição na íntegra: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/discurso-do-presidente-lula-congresso-na-integra/. Acesso: 4 de janeiro de 2023.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA. Discurso de posse frente ao Palácio do Planalto. 1 de janeiro de 2023. Transcrição na íntegra: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/01/posse-lula-integra-discurso-rampa-faixa.htm. Acesso: 4 de janeiro de 2023.

SILVIO ALMEIDA. Discurso de posse como ministro dos Direitos Humanos e Cidadania. 3 de janeiro de 2023. Transcrição na íntegra em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/leia-a-integra-do-discurso-de-silvio-almeida-somos-a-vitoria-dos-nossos-antepassados/. Acesso: 4 de janeiro de 2023.

SONIA GUAJAJARA. “Ministério traz indígenas para alto escalão do governo, diz Sonia Guajajara”. CNN Brasil. 30 de dezembro de 2022. Entrevista na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=vFnDGbCc99Y. Acesso: 5 de janeiro de 2023.

 

Notas e referências:

[i] Wikimedia Commons. File:Brazilian Government’s logo (Luiz Inácio Lula da Silva – 2023).svg. Acesso: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brazilian_Government%27s_logo_(Luiz_In%C3%A1cio_Lula_da_Silva_-_2023).svg.

[ii] Evaldo Cabral de Mello. “Folha de S.Paulo – + Brasil 501 d.C.: Evaldo Cabral de Mello: Um Imenso Portugal” 28/01/2001.”

[iii] Wikimedia Commons. File:Manifestações populares na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (4976963431).jpg. Acesso: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Manifesta%C3%A7%C3%B5es_populares_na_posse_do_presidente_Luiz_In%C3%A1cio_Lula_da_Silva_(4976963431).jpg.

[iv] Agência Senado. Senadores pedem providências e repudiam violência e vandalismo em Brasília, 8 de janeiro de 2023: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/01/08/senadores-pedem-providencias-e-repudiam-violencia-e-vandalismo-em-brasilia.

[v] Benedict Anderson, Comunidades imaginadas. Edições 70, 2005.

[vi] Eric Hobsbawn e Terence Ranger (org.) A Invenção das tradições. Paz e Terra, 2008.

[vii] Um dos mais famosos estudos sobre a formação da identidade nacional brasileira é o do historiador José Murilo de Carvalho, em: José Murilo de Carvalho, A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. Companhia das Letras, 1990.

[viii] Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro: Durval Muniz de Albuquerque Junior. A invenção do nordeste e outras artes. Cortez, 2009.

[ix] Secretaria de Comunicação Social. Governo Federal do Brasil. Acesso: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/01/silvio-almeida-201cvamos-trabalhar-em-um-brasil-onde-todos-nos-podemos-caber201d.

[x] Uma recente e acessível introdução ao tema pode ser lida no livro: João Paulo Pimenta, O Livro do Tempo. Edições 70, 2021.

[xi] Reinhardt Koselleck, Futuro passado: : contribuição à semântica dos tempos históricos. PUC-RJ, 2006.

[xii] Para adentrar mais a fundo nesse debate, conferir a produção de autores e autoras como Aleida Assman, François Hartog, Berber Bevernage, Harmutt Rosa, Rodrigo Turin, Matheus Pereira e Valdei Araújo.

[xiii] Piero Detoni. Nunca antes na história desse país: Luiz Inácio Lula da Silva e a justa memória. HH Magazine. 14/09/2022. Online: https://hhmagazine.com.br/nunca-antes-na-historia-desse-pais-luiz-inacio-lula-da-silva-e-a-justa-memoria/. Acesso: 5 de janeiro de 2023.

[xiv] Terra. Acesso: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/anistia-a-bolsonaro-tem-poucas-chances-reais-dizem-especialistas,0cf5faa2f6f66ba977981cd64fe80688pv63xip7.html.

[xv] Para um maior aprofundamento sobre as questões envolvendo memórias e arquivos digitais da COVID-19, recomendo a leitura dos artigos: Ian Marino. “Notas preliminares sobre o arquivamento digital da Covid-19”. Ideias, v. 12, n. 00, 2021; Ian Marino e Thiago Nicodemo. “Fake news e arquivos digitais a partir da experiência da covid-19”. Práticas da História, v. 14, 2022; Ian Marino; Pedro Silveira; Thiago Nicodemo. “Arquivo, memória e Big Data: uma proposta a partir da Covid-19”. Cadernos do Tempo Presente / UFS, v. 1; Ian Marino; Paulo Gajanigo; Rogério Souza; Thiago Nicodemo. “Como contar a história da Covid-19? Reflexões a partir dos arquivos digitais no Brasil”. Esboços, v. 28, n. 48, 2021.

Fonte:  https://diplomatique.org.br/uniao-e-reconstrucao-as-perspectivas-para-o-novo-governo-lula/

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