Um mundo só de aéreos, aqueles que vivem nas nuvens, é mais leve, mais emotivo, mais feliz
Existem animais marinhos que dependem do solo oceânico próximo. Assim, habitam áreas mais rasas. Existem os que podem nadar em águas abertas sem nunca tocarem o fundo, flutuando de forma elegante no cosmo aquático, obtendo seus alimentos sem contato com a areia do fundo. Se fossem pássaros, construiriam uma espécie que poderia comer, acasalar e existir flutuando sempre entre as nuvens, sem fazer um ninho.
Entre nós, que não existimos no ar ou no mar, há humanos que raramente dialogam com o lodo do mundo. Vivem no seu universo, obtendo tudo aquilo de que necessitam, sem precisar de chão.
Com certeza, existem na sua família o tio e a tia que os gregos chamariam de “nefelibatas” (vivem nas nuvens). Não queira saber deles o valor do dólar hoje, o preço da passagem de ônibus ou quanto temos de gastar para um pãozinho francês. Essas são angústias banais do solo tosco. Identificam-nas como miudezas dos concretos materialistas. Eles nadam em espaços amplos, sem que os pés toquem a base material.
Os nefelibatas não podem ser confundidos com ricos. Há pessoas abastadas no grupo sim, porém existem os muito atentos aos corais abaixo e aos peixes menores. Os “aéreos” existem em todas as classes sociais e variam de analfabetos a cultos. Não se confundem com os alienados clássicos. Não rejeitam o real; vivem em outro recorte dele.
Muita vez há a confusão com o folgado. Injustiça! O aéreo não acha que os outros devam trabalhar para ele; apenas ignora o peso das rochas, a densidade do lodo ou a abundância do mundo abaixo.
Almoço em família? Quase sempre existe uma proximidade socioeconômica entre os membros. Uma pessoa quer saber quem pagará o churrasco, como será lavada a louça gordurosa que existe após a refeição! Quem pode dirigir após ter bebido um pouco? O nefelibata, pelo contrário, é uma arraia-jamanta imponente que nada-flutua sobre o éter puro. Trata-se de águia majestosa junto a altas esferas. Ele diz que o filé está maravilhoso. A cunhada terrena fala da evolução do preço da carne. “Um roubo! Um absurdo! Viraremos vegetarianos por falta de renda.” O aéreo não ganha mais do que a cunhada; apenas está diante da carne, e ela está boa. Aprecia e elogia. Degusta. Entrega-se ao sabor. Em geral, são mais leves do que os materialistas. Podem até lavar a louça ou fazer parte da vaquinha de amparo ao churrasco. No entanto, devem ser instados a fazê-lo, nunca terão a iniciativa. O mundo não tem preço para eles. Vivem em outra esfera. Não é folgado ou pródigo... apenas ignora o valor tangível do universo.
A harmonia familiar depende muito da variedade do cardume. Gente que nada junto ao barro vê preço em tudo e vive com uma planilha do Excel na retina. O mundo tem custo, o trabalho é um peso, todo encontro gera um relatório financeiro. “Vamos viajar? Sim, mas... em quantas vezes?”
Abriu um novo restaurante? “Podemos ir e não pedir vinho, para baratear. Comeremos sobremesa em casa.”
Como é verdade que “não existe almoço grátis”, a turma do lodo tem tarefas fundamentais na ordem do clã. Porém, pesam como chumbo e possuem memória: “No churrasco, há dois meses, eu (turma do lodo) lavei tudo sozinho. É a vez de vocês!”. O aéreo ignora quem tenha lavado um pires na história universal. Aliás, o que ele teria comido hoje pela manhã? Ele vive para a imensidão bela das marés densas e contempla, com alegria poética, o albatroz acima. Assim, por definição, ele é mais tranquilo. Há prazer em conversar com ele.
Se estivéssemos no mundo antigo, o tio generoso com tudo é ar; seus opostos seriam terra. Para quem cultiva a ideia de que astros marcam a personalidade, os aéreos, com frequência, são aquarianos e geminianos. Seus antípodas seriam taurinos e capricornianos, habitualmente.
Em termos profissionais, os nefelibatas estão mais próximos dos arquitetos e das suas indagações: “A curva é bela? Há harmonia de linhas?”. Os concretos dialogam com a engenharia: “A fadiga de materiais compromete a estrutura do prédio? Quem pagará?”.
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Um mundo só de aéreos é mais leve, mais emotivo, mais feliz e um tanto quanto mais perigoso...
Vamos à praia? Os leves gritam “Oba!” Os outros planejam o melhor horário, o custo, se o carro está revisado, abastecido e se há protetor solar suficiente para a superfície de peles expostas dos banhistas.
Uma família, um escritório (ou até mesmo um grupo de alunos fazendo um trabalho de escola) só podem atingir eficiência e harmonia se houver boa distribuição de pessoas diferentes. Aéreos para as ideias amplas (com a “insustentável leveza do ser”); concretos para trazer as datas, materiais, distribuição de tarefas e todo o custo do solo.
Talvez uma terceira categoria seja interessante para o quadro do equilíbrio: são os salmões, que nascem no córrego singelo e migram para o alto oceano, para voltarem, num dia, ao berço. Sem eles, os rasos não ouviriam falar do oceano abissal; sem o cardume dos salmões, o mar aberto não conheceria a singeleza do riacho.
Bem, se eu trabalhasse em Recursos Humanos, daria preferência aos salmões. Tenho esperança em quem lava louça... ouvindo Bach.
* Historiador e doutor em História Social pela USP. Membro da Academia Paulista.
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/a-insustentavel-leveza-do-ser/
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