Anselmo Borges*
Tive
uma vez um breve encontro com ele em Roma. A impressão que me ficou: um
pessoa agradável, afável, reservada e tímida. E pude aperceber-me
também da importância decisiva que tinha para ele o que se pode chamar a
“pastoral da inteligência”, isto é, a reflexão sobre o diálogo entre a
razão e a fé.
Joseph
Ratzinger também teve o seu momento de rebeldia e de progressismo, no
Concílio Vaticano II, como aqui expliquei em múltiplas crónicas,
concretamente em 2020, em cinco textos sobre “Bento XVI. Uma vida”. Não
se deve esquecer o que, imagino, foi para ele, mais tarde, um
escândalo: defendeu a possibilidade de pôr fim à lei do celibato
obrigatório e ordenar como padres homens casados exemplares bem como de
recasados poderem aceder à comunhão. Chegou a dizer nas aulas, em
Tubinga: “em Roma, como sabem, não se faz boa Teologia”.
Durou
pouco tempo este posicionamento. A sua orientação teológica agostiniana
— Santo Agostinho não tinha em muito boa consideração o mundo —
inclinava-o mais para uma visão conservadora, místico-espiritual da
Igreja. A mudança teve como ponto decisivo o medo dos excessos de 1968,
com as transformações que então se puseram em marcha nos domínios da
concepção da autoridade, da sexualidade, do radicalismo ateu de
estudantes de Teologia, da “ditadura do relativismo”...
Reconhecido
pela sua inteligência brilhante e uma rara cultura — dialogou com
grandes intelectuais ateus e agnósticos, incluindo o filósofo Jürgen
Habermas —, foi mais um intelectual e um professor do que um pastor,
gestor. As circunstâncias fizeram com que ele, essa figura afável,
tímida, honesta e íntegra deixasse a vida académica, se tornasse
arcebispo de Munique, seguisse para Roma como “inquisidor”, condenando
muitas dezenas de teólogos, o seu maior pecado, participasse no
retrocesso em relação ao Concílio, a ponto de o seu colega como perito
conciliar, talvez o maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner,
terminar os seus dias com a mágoa da entrada no “inverno da Igreja”.
Não creio que o desejasse, mas acabou por ser eleito Papa — aquando da
eleição, lembrou-se, disse-o ele, da guilhotina.
Não
era um teólogo inovador, mas deixa uma obra teológica importante,
nomeadamente, três encíclicas: a primeira, para dizer que a verdadeira
“definição” de Deus é que é Amor; a segunda, para convocar os cristãos e
todos os homens à esperança; a terceira é sobre “a caridade (o amor) na
verdade”. Nela, condena as posições neoliberais, cujo único objectivo é
o lucro; reafirma a doutrina essencial de que a economia e o
desenvolvimento só são verdadeiros se estiverem ao serviço do Homem todo
e de todos os homens; que, em ordem ao seu correcto funcionamento, a
economia precisa da ética, “uma ética amiga da pessoa”; que, para
conseguir o governo da economia mundial, o desarmamento, a segurança
alimentar e a paz, a salvaguarda do meio ambiente e a regulação dos
fluxos migratórios, “urge a presença de uma verdadeira Autoridade
política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder
efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o
respeito dos direitos”.
Ideia
nuclear foi a do diálogo entre a fé e a razão. A fé, sem a razão, é
cega e intolerante; a razão, sem a abertura à transcendência, pode
enlouquecer. No cristianismo, acolhe-se a fé, dando lugar à descoberta
do “Deus que é Razão criadora e ao mesmo tempo Razão-amor”. Aí está o
vínculo indissolúvel entre Razão, Verdade e Bem.
Na
Sexta-Feira Santa de 2005, ainda cardeal, declarou: “quanta porcaria na
Igreja! A traição dos discípulos fere mais Jesus”. Referia-se
certamente ao escândalo da pedofilia — removeu cerca de 400 padres
culpados de abusos contra menores —, à figura sinistra do padre Maciel,
fundador dos Legionários de Cristo, ao que se passava na Cúria. Quando
assumiu funções como Papa, foi exemplar, pondo Maciel fora da vida
pública, pedindo perdão às vítimas da pedofilia e tomando medidas
drásticas e consistentes para que os crimes não se repitam.
Não
conseguiu reformar a Cúria nem pôr termo às intrigas, ao carreirismo,
às lutas pelo poder, aos escândalos, desde a corrupção à lavagem de
dinheiro no Banco do Vaticano, ao Vatileaks. Sem forças “no corpo e no
espírito”, abdicou, “em consciência e plena liberdade”, para que outro
lhe sucedesse.
Foi
talvez a lição maior de Ratzinger enquanto Papa. Houve quem o
criticasse, também dentro da Igreja e pensando em João Paulo II: que não
se desce da Cruz e que dessacralizou o papado. Mas, afinal, o Papa é
mais do que um homem? Não se trata tão-só de um cristão que leva consigo
a específica missão gigantesca de ser sinal e promotor de unidade entre
os cristãos e a Humanidade?
Este
foi o seu testamento: abandonou pacificamente o poder. Porque na
Igreja, como aliás no mundo em geral, é preciso escolher entre o poder
como dominação e a força do serviço. O Deus cristão não se revela como
Poder-Dominação, mas Força Infinita de criar, no Amor. Bento XVI leu e
recomendou que todos os Papas lessem a famosa carta de São Bernardo ao
Papa Eugénio III: “Não pareces um sucessor de Pedro, mas de
Constantino.”.
Retirou-se
para o Mosteiro Mater Dei, no Vaticano, afirmando sempre, contra alguns
cardeais opositores, que agora o Papa era Francisco, que na homilia do
funeral, se despediu, citando-o: “Ser pastor quer dizer amar, e amar
quer dizer também estar dispostos a sofrer.” E agora? (continua).
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 14 de janeiro de 2023
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/bento-xvi-o-papa-que-abdicou-1410217
Nenhum comentário:
Postar um comentário