quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Elena Ferrante descreve sua jornada como leitora e escritora

 Por Ubiratan Brasil

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Livro ‘As Margens e o Ditado’ traz quatro ensaios inéditos em que a autora de identidade desconhecida relata a dura, mas prazerosa descoberta da escrita

Não é novidade o fascínio que a escritora italiana Elena Ferrante desperta em uma legião de leitores pelo mundo com sua ficção que apresenta um senso rigoroso de tempo e espaço, sem lugar para nostalgia ou sentimentalismo. Autora de obras como a Tetralogia Napolitana, ela já vendeu milhares de exemplares no planeta.

Tampouco é recente a notícia de que Elena Ferrante não passa de um pseudônimo de alguém misterioso que prefere o anonimato. Diversas especulações já foram levantadas para revelar sua verdadeira identidade, mas nada foi definido. Mas, ao preferir que a obra supere a persona, ela dá o devido valor à sua escrita, o que torna cada lançamento um fato extraordinário.

Margherita Mazzucco, Gaia Girace e Federica Sollazzo na segunda temporada da série italiana A Amiga Genial, baseada na obra de Elena Ferrante
Margherita Mazzucco, Gaia Girace e Federica Sollazzo na segunda temporada da série italiana A Amiga Genial, baseada na obra de Elena Ferrante 

É o que acontece agora com a chegada de As Margens e o Ditado, livro que certamente vai testar a fidelidade de seus leitores ao apostar na não ficção - trata-se da reunião de quatro ensaios em que Elena fala sobre a própria jornada como leitora e escritora e oferece um raro olhar sobre as origens de seus caminhos literários. O livro, que tem a chancela da Intrínseca, chega nesta semana às livrarias.

São três palestras e um ensaio. As primeiras têm uma origem pré-pandemia, quando Ferrante foi convidada a escrever três textos que seriam lidos ao público em Bolonha, Itália. A proposta era desafiadora, pois ela poderia tratar de qualquer assunto que pudesse interessar a uma ampla audiência e as matérias deveriam ser escritas para serem transmitidas oralmente. A covid, porém, modificou drasticamente a rotina do planeta, obrigando as pessoas a ficar em casa. Com isso, o evento foi logicamente cancelado.

Ferrante, no entanto, já havia escrito os textos, que foram proferidos tardiamente, no fim de 2021, e com a atriz Manuela Mandracchia interpretando o pseudônimo da autora - lembre-se que não se sabe nada sobre ela, nem mesmo se realmente é uma mulher. É por isso que o ensaio, composto para o encerramento da Conferência sobre Dante, também foi lido por outra pessoa, a estudiosa e crítica Tiziana de Rogatis. Ambas apresentações podem ser apreciadas em vídeos na internet.

Influências

As palestras e o ensaio são uma pequena joia. De uma forma clara, Ferrante revela suas principais influências, as lutas da juventude e a formação intelectual. Ponto de partida para atingir o ápice desse livro: sua reflexão sobre como a tradição literária excluiu sistematicamente a voz das mulheres ao longo dos séculos.

“Eu lia muito, e tudo o que me agradava quase nunca era escrito por mulheres. Das páginas, parecia sair uma voz masculina, e aquela voz me ocupava, eu tentava imitá-la de todas as maneiras”, conta, na palestra A Caneta e a Pena (leia mais no trecho abaixo). A partir daí, Ferrante se recorda da poderosa influência que recebeu de outras autoras (como Virginia Woolf, Emily Dickinson e Gertrude Stein) para propor uma fusão do talento feminino.

Como bem observou Molly Young, no jornal The New York Times, Ferrante concebe o escritor, com um aceno para Virginia Woolf, como uma “pluralidade hipersensível toda concentrada na mão que tem a caneta”, e menos uma entidade corporificada do que uma enxurrada de “pura sensibilidade que se alimenta do alfabeto”.

Essa noção começou a ser esboçada quando ela era ainda adolescente e colecionava cadernos com seus escritos. “Eu pensava: tudo o que estimula casualmente o nascimento de uma narrativa está lá fora, esbarra em nós e vice-versa, nos confunde, se confunde”, observa, na palestra Água-Marinha. “A escrita tinha, essencialmente, olhos: o tremor da folha amarela, as partes reluzentes da cafeteira, o anular da minha mãe com a água-marinha que emanava uma luz celeste.”

Capa do livro As Margens e o Ditado, de Elena Ferrante
Capa do livro As Margens e o Ditado, de Elena Ferrante Foto: Editora Intrínseca

Após a descoberta de sua potencialidade como escritora, veio a terrível constatação de suas falhas: “Em poucos anos, passei a ter a impressão de não saber mais escrever. Nenhuma página estava à altura dos livros que me agradavam”. Diante de uma batalha inglória, Ferrante testa seus limites (como na questão da narração em primeira pessoa), até chegar a uma lição definitiva: renda-se à sua ambição de reproduzir, na gramática e na sintaxe, o “turbilhão de detritos” que constitui a realidade.

TRECHO

Não me lembro de um dia ter pensado, quando menina, que uma voz estranha habitava em mim. Não, nunca senti esse mal-estar. As coisas se complicavam, porém, quando eu escrevia. Eu lia muito, e tudo o que me agradava quase nunca era escrito por mulheres. Das páginas, parecia sair uma voz masculina, e aquela voz me ocupava, eu tentava imitá-la de todas as maneiras. Ainda por volta dos treze anos – só para me ater a uma lembrança nítida –, quando eu tinha a impressão de que escrevia bem, parecia que tinha sido alguém a me dizer o que deveria ser escrito e como. Algumas vezes, aquele alguém era do sexo masculino, mas invisível. Eu nem sabia se ele tinha a minha idade, se já era adulto ou então velho. De um modo mais geral, devo confessar, eu imaginava me tornar homem, mas, ao mesmo tempo, permanecendo mulher. Ainda bem que essa impressão sumiu quase totalmente no fim da adolescência. Digo “quase” porque, se a voz masculina foi embora, permaneceu em mim um obstáculo residual, a impressão de que era justamente o meu cérebro de mulher que me freava, que me limitava, como uma lentidão congênita. Escrever já era, por si só, difícil, e ainda por cima eu era mulher e, portanto, nunca conseguiria fazer livros como os dos grandes escritores. A qualidade da escrita daqueles textos, sua potência, acendia minhas ambições, me ditava intenções que pareciam estar muito além das minhas possibilidades.

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/elena-ferrante-descreve-sua-jornada-como-leitora-e-escritora/

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