segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Sem punição a Bolsonaro, culto a personalidade e desinformação permanecem, diz historiadora da extrema direita

 Por André Duchiade

Participantes de atos golpistas em Brasília saem presos do Palácio do Planalto  
Participantes de atos golpistas em Brasília saem presos do Palácio do Planalto Ueslei Marcelino

O ataque aos Três Poderes por extremistas de direita apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro despertou um interesse sobre o Brasil nos Estados Unidos como poucas vezes se viu. O motivo para isso é a semelhança entre as invasões em Brasília e os episódios do dia 6 de janeiro de 2021 no Capitólio. Para a historiadora da Universidadede Nova York Ruth Ben-Ghiat, os dois casos são ligados por um roteiro comum: em ambos, massas radicalizadas devotas a um líder carismático foram instigadas a não acreditar na lisura do processo eleitoral e a achar que a violência poderia vir a ser necessária. Ben-Ghiat é uma renomada estudiosa do fascismo, do autoritarismo e de ameaças à democracia ao redor do mundo. Seu último livro, “Strongmen: From Mussolini to the Present” (W.W. Norton & Company, sem tradução) examina como líderes contrários à democracia liberal se valem da corrupção, da violência, da propaganda e do machismo para permanecer no poder, e como a resistência a eles se desenvolveu ao longo de um século.

     

A historiadora da Universidade de Nova York Ruth Ben-Ghiat, especialista em fascismo e extrema direita — Foto: Divulgação

A historiadora da Universidade de Nova York Ruth Ben-Ghiat, especialista em fascismo e extrema direita — Foto: Divulgação

As cenas em Brasília a surpreenderam?

Sim e não. Porque Bolsonaro já vinha plantando em seus seguidores a ideia de que a violência poderia vir a ser necessária se ele perdesse mesmo antes mesmo das eleições. Em junho de 2022, disse que “se necessário, iremos para a guerra”. Há um manual dessas pessoas para darem um golpe de Estado e se manterem no poder. Primeiro você desqualifica o sistema eleitoral. Também há um culto à personalidade. Então você é todo poderoso e mantém as pessoas leais a você. E o que Bolsonaro conseguiu fazer, mesmo saindo do país, foi deixar as pessoas em estado de agitação, para que tivessem o acampamento e assim não perdessem a esperança. Por isso tudo eu não me surpreendi.

Quais são as principais regras deste manual?

A primeira regra é que, como ainda se está em uma democracia e é possível perder a eleição, é necessário passar anos, desde o minuto em que assume o cargo, se preparando para o caso de derrota. Então tanto Trump quanto Bolsonaro passaram anos tentando minar o sistema eleitoral. E você tem que poder se passar por vítima, dizer que, se perdeu, não foi uma derrota verdadeira, apenas fraude eleitoral. Número dois, você tem que ter um culto à personalidade que você constrói com seus seguidores. Eles são tão leais a você que, se você disser a eles que foi roubado e corre perigo, eles permanecerão leais a você mesmo depois que você se for. Vejamos o caso de Trump, as pessoas seguem leais mesmo muito tempo depois. E, finalmente, é necessário desde antes mesmo da eleição plantar a ideia de que a violência pode ser necessária.

Uma diferença entre o Brasil e os outros países é o grau de apoio à extrema direita entre as Forças Armadas. O quão preocupante é?

Bolsonaro deu aos militares brasileiros mais poder do que tinham desde a ditadura. Isso Ele permitiu que os militares tivessem um prestígio e um papel na política, também em cargos como a chefia de estatais. Isso é extremamente perigoso.

No que diz respeito a um prazo mais longo, o que esperar da extrema direita? Existe alguma lição que o Brasil deva tirar dos EUA sobre para onde a extrema direita vai a seguir?

É difícil fazer comparações, porque nos EUA só há dois partidos. O que houve foi que o Partido Republicano se radicalizou completamente. Os extremistas entraram no partido, e agora pessoas que destruíram janelas no ataque em 6 de janeiro concorrem a cargos eletivos. Mas o que vai ser paralelo é o que podemos chamar de uma estratégia de tensão, na qual há uma violência de baixo nível, ataques a redes elétricas, ameaças de bomba e coisas assim. O objetivo é provar que a democracia não funciona; associá-la ao crime e à anarquia. É o que faz a Fox News o tempo todo. No Brasil, onde a criminalidade é alta, deve ser ainda mais forte, para tentar fazer com que os conservadores da classe média e os empresários pensem que Lula é um fracasso e precisamos ter algo diferente. Portanto, prevejo uma estratégia de propaganda e crimes e terrorismo doméstico de baixo nível para criar uma sensação de crise e anarquia associada a Lula e a Biden.

Muitos apoiadores muito fiéis a Bolsonaro foram eleitos para o Congresso e cargos regionais. Qual papel esses atores institucionais desempenham na manutenção da radicalidade e extremismo?

Basicamente eles desestabilizam as normas democráticas. Como correlato à vitória de Lula só ser por 2%, em quase metade dos estados brasileiros há governadores apoiadores e aliados de Bolsonaro. Nos EUA há pessoas assim como o governador do Texas, Greg Abbott, que há alguns meses fez uma declaração chamando Biden de presidente interino. Essas pessoas continuam na posição de resistência extremista ao democrata que está no poder. Então isso é muito perigoso. E por isso fiquei extremamente feliz em ver a suspensão imediata do governador de Brasília por 90 dias.

Alguns destes políticos, como o governador da Flórida, Ron DeSantis, tem uma agenda tão extremista quanto a de Trump, mas são muito mais polidos em sua forma de falar. No Brasil temos candidatos a figuras equivalentes. Quais são os limites entre uma direita autoritária e o conservadorismo dentro das normas democráticas?

Há duas coisas em questão aqui. Em primeiro lugar, alguém como Trump ou Bolsonaro são, ambos, muito ultrajantes. E são artistas, fazem um teatro do extremismo. Eles usam muito isso para distrair a imprensa; por exemplo, quando surgiram suspeitas de corrupção, Bolsonaro disse a um repórter que ele tinha cara de homossexual. E então todo mundo ficou com raiva, e deixou de lado as denúncias. Trump costumava fazer isso. Essas pessoas ultrajantes inserem um extremismo no sistema, e o sistema e o sistema pode criar um apetite por pessoas igualmente extremas, mas mais disciplinadas e quietas. Este é Ron DeSantis. Ele é esperto demais para dizer que iria afogar um filho homossexual tal como Bolsonaro. No entanto, aprova leis totalmente homofóbicas. Além disso, essas pessoas empurram tudo para a direita, toda a discussão pública, e normalizam uma espécie de extremismo. E isso é particularmente preocupante no caso dos EUA, porque só temos dois partidos, e, literalmente, os extremistas antigovernamentais são agora os congressistas.

A radicalização entre a sociedade brasileira se disseminou muito Há algum precedente histórico bem sucedido de desradicalização de massas?

É muito difícil. Quando alguém tem esse tipo de poder, que sabe tão habilmente como manter, é muito difícil fazer com que as pessoas se desvencilhem. Meus estudos mostram que a única coisa que pode fazer isso são processos penais. Mesmo se vierem depois, como no caso de Pinochet, que acabou morrendo e nunca foi para a cadeia. Mas foi processando-o e expondo sua corrupção que levou as elites empresariais e as elites católicas chilenas a finalmente acordarem ee dizerem “ele não é o homem puro que eu pensava”. Então, processos penais são uma das únicas coisas que podem causar esse desengajamento. Algumas pessoas não querem fazer isso, porque dizem que vai causar violência. Mas já estamos tendo violência, tivemos o 6 de janeiro com Trump, houve violência agora no Brasil. Se não houver punição, o culto à personalidade permanece, assim como a desinformação.

Mas estas bases radicalizadas já não estão bem sedimentadas e podem mudar de líder?

O líder é a âncora. É claro, há quem vota nas causas que ele defende; por exemplo, os evangélicos, que podem até não gostar desses caras, mas acham importante o que fazem. É um pouco mais complexo, mas o homem forte é a pessoa que mantém tudo junto. Essas figuras são capazes de levar as pessoas sem nada em comum exceto a lealdade a eles — gangsters, donas de casa e crentes — ao redor da mesma coalizão. O homem forte funciona como a cola que agrega todos, e, uma vez que aderem a eles, não importa o que façam, porque os apoiadores foram envenenados contra a imprensa e seguirão leais. Houve uma pesquisa que mostrou infelizmente que 40% da população no Brasil acha que a eleição não foi justa. Esse é o poder da propaganda. É o poder da personalidade.

O Judiciário está agindo de forma muito dura aqui no Brasil, e tomando algumas medidas que possivelmente suspendem liberdades civis provisoriamente. Qual deve ser o papel do Judiciário nesse cenário de crise?

Senão reprimissem instantaneamente de forma tão dura, a tentativa iria continuar. Os EUA mostram o que acontece se você não fizer isso. Aqui há Trump, Steve Bannon, [o ex-general] Michael Flynn. Todos esses criminosos estão trabalhando 24 horas por dia, 7 dias por semana para destruir a democracia americana. Inclusive estou muito feliz em ver que vão investigar mais de 100 empresas, negócios que ajudaram os manifestantes. Porque sempre há uma ampla gama de pessoas. Sempre há pessoas em empresas e instituições financeiras. Há toda uma configuração de pessoas que estão ajudando esses bandidos lá na ponta.

Há alguma lição que Lula possa tirar de Biden?

Biden tem feito muito, muito bem ao seguir em frente para fazer as coisas para as quais foi eleito. Foi muito importante que, durante o ataque, na primeira entrevista coletiva, Lula citou o clima, porque o ambientalismo é uma grande parte do que ele foi eleito para fazer. Ele deveria fazer mais disso. Obviamente, o fato de ele ter feito isso mesmo no meio da crise significa que ele tem bons instintos. Porque é muito importante mostrar que o governo está firme e também tem outras prioridades, não apenas se tornará uma máquina de vingança.

Fonte: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/01/sem-punicao-a-bolsonaro-culto-a-personalidade-e-desinformacao-permanecem-diz-historiadora-da-extrema-direita.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria 16/01/2023

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