Além de punição a golpistas, especialistas sugerem lições em escolas, campanhas e maior proximidade das instituições com a população para preservar sistema representativo liberal
A destruição das sedes dos três poderes, uma semana atrás, em Brasília, deixou uma tarefa a ser cumprida além do conserto dos bens vandalizados: como resgatar o apreço de uma fatia da sociedade pela democracia liberal consagrada na Constituição.
Especialistas consultados por GZH sustentam que o desprezo de uma parte da população pelas instituições é um fenômeno difícil de ser combatido, mas apontam medidas capazes de reduzir o nível de apoio a extremistas dedicados a impor seu ponto de vista por meio de violência ou sabotagem. Além das punições previstas em lei, a receita inclui educação sobre estruturas e princípios democráticos, campanhas de esclarecimento sobre o funcionamento do sistema representativo, maior transparência e proximidade das instituições com a população, despolitização dos quartéis e vigilância sobre o mau uso das redes sociais.
Uma pesquisa da AtlasIntel indicou que 75,8% dos brasileiros desaprovam de forma geral a invasão dos palácios. Quando questionados se o ataque seria justificado ao menos em parte, porém, 38% se mostraram tolerantes em algum grau com a quebradeira. Organizador do livro Democracia e Confiança - Por Que os Cidadãos Desconfiam das Instituições Públicas, o cientista político e professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) José Álvaro Moisés sustenta que não basta punir os conspiradores envolvidos nos ataques para proteger a República de futuros complôs:
– Precisamos investir na educação política da população, pelo menos a partir do Ensino Médio, com disciplinas que expliquem como funciona a democracia, a importância do Legislativo, do Executivo, do Judiciário e a relação disso com os direitos consagrados na Constituição.
Moisés defende também ações de efeito imediato, como campanhas de divulgação promovidas por governos, partidos e poderes para aproximar realidades hoje apartadas: o cotidiano da população e os gabinetes de autoridades.
– Os partidos podem lançar campanhas de formação política e esclarecimento. Da mesma forma, os parlamentos, o Judiciário, o Executivo precisam fortalecer programas para as pessoas conhecerem seu funcionamento e visitarem (suas dependências). Só com um envolvimento mais direto a sociedade vai perceber os benefícios de cada um e o que implicaria a sua destruição – observa o professor da USP.
A missão não é simples. O cientista político da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Peres observa que o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes reflete uma insatisfação com a democracia que não se limita ao Brasil e também se vê em países com um nível educacional mais elevado a exemplo de Estados Unidos e Alemanha. Enquanto os americanos testemunharam a invasão do Capitólio por uma multidão de extrema-direita em 6 de janeiro do ano passado, a polícia alemã descobriu em dezembro uma trama em curso para atacar o parlamento e derrubar o governo.
– A democracia representativa liberal está em crise em vários países porque houve uma retomada, com força, do tradicionalismo em nível mundial. A isso se juntam outros fatores como a ascensão de igrejas com ideologia política e das redes sociais. A internet permite que pessoas frustradas, desencaixadas socialmente, que estavam isoladas, se juntem – avalia Peres.
No caso brasileiro, o desafio é ampliado pela frágil tradição democrática. Desde 1926, apenas seis presidentes foram eleitos pelo voto popular e conseguiram concluir seus mandatos: Gaspar Dutra (1946-1951), Juscelino Kubitschek (1956-1961), FHC (1995-2002), Lula (2003-2010), Dilma (primeiro mandato apenas, de 2011 a 2014) e Jair Bolsonaro (2019-2022). Um complicador, segundo o professor da UFRGS, é a recorrente atuação política dos militares.
O percentual da população brasileira que se declara de fato autoritária e antidemocrática fica em torno de 10% a 15%
JOSÉ ÁLVARO MOISÉS Professor da USP
– Temos, tradicionalmente, militares que interferem na política ou agem como tutores dos civis. A impressão é de que temos uma sociedade refém dos militares. Parte não gosta, mas outra parte, sim – afirma Peres.
A sinalização, mesmo velada, de membros das Forças Armadas de que poderiam atuar politicamente estimula os anseios golpistas dessa fração de brasileiros. Por isso, o cientista político da UFRGS afirma que o governo civil precisa adotar uma postura clara de comando sobre a caserna. A despeito dos obstáculos, José Álvaro Moisés lembra que o apoio à democracia ainda é largamente majoritário no país:
— Minhas pesquisas de cultura política indicam que o percentual da população brasileira que se declara de fato autoritária e antidemocrática fica em torno de 10% a 15%. Mas devemos lembrar que essa parcela existe e adotar medidas de contrapartida.
Mesmo líderes da direita, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, se opõem à tentativa de negar o resultado das urnas – ele criticou os estragos feitos no Distrito Federal e colocou tropas à disposição para ajudar a proteger Brasília. O desafio, ainda sem uma resposta definitiva, é como convencer os extremistas e quem os tolera. Peres lembra que muitos se veem como defensores da "verdadeira" democracia contra valores liberais interpretados como ameaças à tradição ou à família – a exemplo de direitos dos homossexuais respaldados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Há ainda, um certo desencanto com as conquistas sociais que o sistema democrático brasileiro legou até o momento.
– Outra questão é o que fazer com essa crise de representatividade da democracia, em que há pessoas que não se sentem representadas. Olham para o Judiciário e veem juízes com altos salários e distantes da sociedade. Olham para o Congresso e não veem benefícios para a população. Populações carentes não têm acesso à democracia no sentido de direitos individuais, já que conhecem o Estado apenas na forma da polícia que chega atirando –analisa Paulo Peres.
Melhorar as condições de vida da população é outro tema de casa das instituições brasileiras para seguirem funcionando sem sobressaltos.
Medidas para fortalecer a democracia
Veja algumas ações, na avaliação de especialistas, para revalorizar as instituições democráticas no país
Educação
Incluir nas escolas, pelo menos a partir do Ensino Médio, lições sobre o funcionamento dos três poderes, as relações entre eles, de que forma garantem direitos individuais e que prejuízos sua eliminação traria à sociedade. Para reduzir o risco de que isso seja percebido como "doutrinação" por esses mesmos setores mais extremados, segundo o cientista político José Álvaro Moisés, a melhor saída é focar no que diz o texto constitucional.
Campanhas
Promoção de campanhas públicas de esclarecimento, por parte de órgãos oficiais e da sociedade civil, sobre a importância da democracia liberal e seus pressupostos: respeito aos resultados das urnas, aos direitos das minorias, ao sistema de pesos e contrapesos que limita o excesso de um poder sobre o outro, entre outros fundamentos das modernas sociedades democráticas.
Transparência e proximidade
Investir em maior transparência no funcionamento dos diferentes poderes — em termos de gastos e retorno para a sociedade — e ampliar a proximidade entre as instituições, nos diferentes níveis de governo, e a população. Isso envolve ações que aumentem o contato entre Executivo, Legislativo e Judiciário e a população. Isso exige maior facilidade de acesso às dependências e aos eventuais serviços oferecidos pelas instituições.
Presença do Estado
Embora envolva medidas por vezes de custo elevado e de longo prazo, o Estado precisa se fazer cada vez mais presente, principalmente em áreas desatendidas, por meio de iniciativas que ampliem acesso a benefícios garantidos pela Constituição como educação, saúde, segurança, entre outras áreas fundamentais.
Punição a crimes virtuais
O uso das redes sociais para divulgação de mentiras e organização de atos antidemocráticos deve levar à identificação e punição dos responsáveis nas esferas cível e criminal. Medidas como bloqueios de contas são uma opção, mas, como esse tipo de medida sempre pode ser contornada pelo uso de outros perfis, especialistas defendem a responsabilização com base no código penal ou civil.
Corte de financiamento
A investigação sobre fontes de financiamento para atos antidemocráticos é um passo importante para dificultar a mobilização e a organização de grupos antidemocráticos e as tentativas de angariar mais adeptos, mediante o bloqueio e eventual imposição de multa ou indenização.
Despolitização dos quartéis
A tradição de envolvimento dos militares na política brasileira é fonte frequente de instabilidade e estímulo a mobilizações populares em busca de intervenção das Forças Armadas. A despolitização das forças em busca de um modelo mais profissional, como o americano, é outra medida recomendada.
Fontes: José Álvaro Moisés, Paulo Peres, Paulo Rená
Mau uso das redes sociais exige punição e maior empenho de plataformas, diz especialista
A utilização de redes sociais para proliferar mentiras sobre o sistema eleitoral brasileiro, desacreditar a democracia e organizar manifestações golpistas reforçou, nos últimos meses, o debate sobre como coibir o uso da internet contra as instituições do país.
Se de um lado há quem defenda o banimento virtual de quem descumpre a lei, por outro há preocupações com exageros no cerceamento a direitos civis e à liberdade de expressão. Gestor da elaboração da minuta do marco civil da internet no país, o doutorando em Direito na Universidade de Brasília (Unb), Paulo Rená, defende um outro caminho.
O especialista sustenta que medidas como o bloqueio de contas por tempo indeterminado pode não ser efetivo ou ter efeitos indesejados.
– A pessoa bloqueada pode criar uma outra conta para si mesma ou falar por meio de outra pessoa. Nesse caso, acabaríamos estimulando o surgimento de mais um perfil extremista com grande popularidade – avalia Rená.
Uma outra saída seria suspender a conta de um usuário que atente contra a democracia de forma preventiva, mas por tempo determinado – para evitar um dano iminente ou enquanto se investiga melhor a eventual má utilização da ferramenta, por exemplo. Mas a melhor punição, na opinião do especialista, viria pela aplicação das leis penais ou civis já existentes.
– Nossa legislação já é suficiente para coibir ações envolvendo discurso de ódio, formação de quadrilha, há vários institutos eleitorais, penais e civis disponíveis. Falta apenas maior maturidade no uso dessas ferramentas (para delitos virtuais). O mais comum, ainda, é o enquadramento como crime contra a honra, geralmente em benefício de alguma autoridade e utilizada por quem tem poder para calar quem não tem – opina Rená.
Se em cada cidade brasileira houver um nazista, nas redes (sociais) passam a formar um contingente de quase 6 mil nazistas
PAULO PERESProfessor da UFRGS
O especialista avalia que outras medidas como retirada de financiamento público ou privado de canais que ataquem princípios democráticos pode auxiliar. No final do ano passado, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou ao governo federal que suspendesse a aplicação de verbas públicas em sites que divulgam notícias falsas ou têm qualquer vínculo com atividades ilegais. Rená lembra, porém, que o fluxo de dinheiro pode ser mantido de forma dissimulada por grupos com interesses ocultos.
Em sua avaliação, além do esforço do poder público, deve ser feito um apelo para que as grandes plataformas adotem uma postura mais diligente para tirar do ar rapidamente mensagens ou vídeos específicos que sejam claramente ilegais – como já fazem com outros conteúdos proibidos pelas regras de uso que as próprias empresas geralmente impõem, como o veto a materiais envolvendo sexo ou nudez.
– Nesses casos envolvendo sexo, por exemplo, as plataformas removem muito rapidamente ou nem deixam subir. Não vemos o mesmo dinamismo para intervir em convocações golpistas ou de terror – sustenta.
Ainda não há uma receita comprovadamente eficaz em aplicação no Brasil ou em qualquer outro país para esse tipo de problema. A tentativa de rastrear o autor original de uma mensagem ilegal tem se mostrado cada vez mais difícil, já que muitas vezes um conteúdo migra de uma plataforma para outra. Nessa transposição, fica quase impossível retomar a trilha percorrida.
– Há fatores envolvidos nessa questão das redes sociais que são muito difíceis de controlar, e ainda não sabemos onde vão dar. Se em cada cidade brasileira houver um nazista, nas redes passam a formar um contingente de quase 6 mil nazistas – observa o cientista político Paulo Peres.
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