Por Leonardo Neiva 13 de Janeiro de 2023
Um dos livros mais aguardados dos últimos tempos, autobiografia do príncipe Harry escancara novo capítulo das desavenças cada vez mais públicas da família real
Já discutimos aqui na Gama o fascínio que narrativas sobre famílias reais despertam na população do mundo todo, virando material para séries e filmes como “The Crown” (2016-) e “A Rainha” (2006). Mas o que dizer de quando uma verdadeira novela se descortina à frente do mundo todo dia? É com essa sensação que o mundo observa o conflito crescente do príncipe Harry em relação ao restante de seus familiares da realeza. Depois do casamento com a ex-atriz Meghan Markle – evento acompanhado por cerca de 3 bilhões de pessoas –, a relação foi degringolando até a renúncia de Harry a suas funções oficiais e ao papel de membro sênior da família real britânica, em 2020, com o casal deixando a Inglaterra de vez para viver na Califórnia.
Com a morte da Rainha Elizabeth II (1926-2022), em setembro de 2022, os conflitos entre o casal, o irmão William e o pai, Rei Charles III, se tornaram mais públicos do que nunca. E, após a estreia do documentário da Netflix “Harry & Meghan” (2022), em que os dois contam a jornada do casal desde que se conheceram até o afastamento da família real, agora é a vez de Harry publicar sua autobiografia, com uma versão ainda mais completa dos fatos pelo seu ponto de vista.
Desde o anúncio, “O que Sobra” (Objetiva, 2023) foi alvo de especulações para todos os lados. Agora publicado, programas e sites de fofoca pelo mundo finalmente podem revirar página após página atrás de intrigas quentes em mais um capítulo dessa longuíssima história real. Será que Meghan e Kate Middleton brigaram mesmo por conta do vestido de dama de honra da princesa Charlotte, filha de Kate? E Harry e William chegaram a sair no soco em determinada ocasião? As respostas para essas e outras perguntas que ninguém nem chegou a formular se encontram nas mais de 500 páginas da obra, um prato cheio para um público que vai de fãs de “The Crown” a fofoqueiros de plantão.
Por meio segundo, cogitei desistir, dar uma caminhada sozinho pelo jardim, ou retornar para a casa, onde todos os meus primos estavam bebendo e compartilhando histórias sobre o vovô.
Então, enfim, eu os vi. Lado a lado, vindo em minha direção, eles estavam carrancudos, quase ameaçadores. Além do mais, pareciam totalmente alinhados. Meu estômago embrulhou. Em geral estariam discutindo por uma questão qualquer, mas agora pareciam estar sintonizados — em conluio.
Uma ideia me passou pela cabeça: espera aí, esse encontro é para darmos um passeio… ou travarmos um duelo?
Levantei do banco de pedra, dei um passo titubeante em direção a eles, esbocei um sorriso vacilante. Eles não retribuíram. Agora meu coração estava realmente surrando o meu peito. Respira fundo, eu disse a mim mesmo.
Afora o medo, eu estava extremamente alerta e sentia uma vulnerabilidade intensíssima, que já tinha sentido em outros momentos importantes da minha vida.
Ao andar no encalço do caixão da minha mãe.
Ao voar rumo ao meu primeiro combate militar.
Ao dar uma palestra em meio a um ataque de pânico.
Havia essa mesma sensação de embarcar em uma jornada e de não saber se estava pronto para ela, apesar de também ter certeza de que não poderia dar meia-volta. Que o Destino já estava selado.
Ok, mamãe, pensei acelerando o passo, lá vamos nós. Me deseje sorte.
Nós nos encontramos no meio do caminho. Willy? Pai? Oi.
Harold.
Morno de doer.
Mudamos de direção, formamos uma fila, atravessamos a pontezinha coberta de hera.
A maneira como simplesmente descambamos nessa marcha síncrona, a maneira como, sem dizer nada, adotamos os mesmos passos regulares e cabeças abaixadas, além da proximidade daqueles túmulos — como não lembrar do funeral da mamãe? Disse a mim mesmo para não pensar naquilo, para pensar no farfalho agradável causado pelos nossos pés e no fato de que nossas palavras voavam como nuvens de fumaça ao vento.
Britânicos que somos, Windsor que somos, começamos a bater papo sobre o clima, viagens, esportes. Trocamos ideias a respeito do funeral do vovô. Ele tinha planejado tudo, até o mínimo detalhe, relembramos entre sorrisos pesarosos.
Em geral estariam discutindo por uma questão qualquer, mas agora pareciam estar sintonizados — em conluio
Conversa fiada. A mais fiada. Abordamos todos os assuntos secundários e fiquei esperando que entrássemos no principal, perguntando-me por que estava demorando tanto, e também como meu pai e meu irmão conseguiam transparecer tanta calma.
Olhei ao redor. Já tínhamos percorrido um bom caminho. Eu me dei conta de que já estávamos no meio do jazigo real, mais afundados em cadáveres do que o príncipe Hamlet. Parando para pensar… eu mesmo já não tinha pedido para ser enterrado ali? Horas antes de partir para a guerra, o Palácio disse que eu tinha que escolher, por escrito, o local onde meus restos mortais deveriam ser sepultados. Caso o pior aconteça, Vossa Alteza Real… a guerra é uma coisa incerta…
Eram várias as alternativas. A Capela de São Jorge? O jazigo real em Windsor, onde vovô acabara de ser acomodado?
Não, eu tinha escolhido aquele lugar ali porque os jardins eram encantadores e porque parecia pacato.
Com nossos pés quase no rosto de Wallis Simpson, meu pai se lançou em uma pequena palestra sobre este personagem aqui, aquele primo real ali, todos os duques e duquesas outrora eminentes, os lordes e as damas que atualmente moram sob o gramado. A vida inteira um estudioso de história, ele tinha montes de informações a nos transmitir, e parte de mim pensou que poderíamos ficar horas ali, e que talvez houvesse uma prova no final. Felizmente, ele se interrompeu, e seguimos por outra ponte, por um gramado, chegando a uma bela ilhota de narcisos.
Foi ali, enfim, que fomos ao assunto que interessava.
Tentei explicar meu lado na situação. Não estava na minha melhor forma. Para começo de conversa, ainda estava nervoso, lutando para controlar as emoções, ao mesmo tempo que me esforçava para ser sucinto e preciso. Além do mais, tinha jurado que não deixaria aquele encontro virar mais uma discussão. Mas logo descobri que a escolha não cabia a mim. Papai e Willy tinham seus próprios papéis a interpretar, e chegaram prontos para a briga. Sempre que tentava dar uma nova explicação, entabulava uma nova linha de pensamento, era interrompido por um deles ou pelos dois. Willy, em especial, não queria escutar nada. Depois de me calar várias vezes, ele e eu passamos a nos atacar, dizendo as mesmas coisas que dizíamos havia meses — havia anos. A briga ficou tão acalorada que papai levantou as mãos. Chega!
Ele se pôs entre nós, erguendo os olhos para nosso rosto corado: Por favor, meninos, não transformem meus últimos anos de vida em uma desgraça.
A voz dele estava rouca, frágil. Soava, para ser sincero, velha.
Pensei no vovô.
De repente, minha energia evaporou. Olhei para Willy, olhei de verdade, talvez pela primeira vez desde que éramos meninos. Absorvi tudo: seu olhar bravo tão familiar, que sempre foi o normal em suas interações comigo; sua calvície alarmante, mais avançada do que a minha; sua famosa semelhança com a mamãe, que vinha se dissipando com o passar do tempo. Com a idade. Em certos aspectos, ele era meu espelho, em outros, meu oposto. Meu adorado irmão, meu arqui-inimigo, como isso tinha acontecido?
Olhei para Willy, (…) seu olhar bravo tão familiar, que sempre foi o normal em suas interações comigo; sua calvície alarmante, mais avançada do que a minha
Senti um cansaço extremo. Queria ir para casa, e percebi que agora “casa” era um conceito complicado. Ou talvez tivesse sido sempre assim. Apontei para os jardins, a cidade, a nação, e disse: Willy, esta aqui deveria ser a nossa casa. A gente ia viver aqui pelo resto da vida.
Você foi embora, Harold.
Fui, e você sabe o porquê.
Não sei.
Não sabe…?
Não sei, sinceramente.
Eu me recostei. Não acreditava no que estava ouvindo. Uma coisa era discordar de quem era a responsabilidade e da possibilidade de que as coisas tivessem sido diferentes, mas se declarar totalmente ignorante quanto às razões para eu ter fugido da minha terra natal — da terra pela qual eu havia lutado e estava disposto a morrer –, minha pátria? Essa palavra tão carregada de sentidos. Declarar não saber por que minha esposa e eu tínhamos tomado a medida extrema de pegar nosso filho e sair correndo, deixando tudo para trás — casa, amigos, móveis? Estava falando sério?
Olhei para as árvores: Você não sabe!
Harold… Eu não sei, sinceramente.
Eu me virei para o meu pai. Ele me fitava com uma expressão que dizia: Eu também não sei.
Uau, pensei. Talvez eles não saibam mesmo.
Espantoso. Mas talvez fosse verdade.
E se não sabiam por que eu tinha ido embora, talvez simplesmente não me conhecessem. Nem um pouco.
E talvez nunca tivessem conhecido.
E para ser sincero, talvez eu também não.
A ideia me causou calafrios, e senti uma solidão terrível.
Mas também me motivou. Pensei: Preciso contar para eles.
Como vou contar para eles?
Não tenho como. Demoraria muito tempo.
Além do mais, está claro que não estão no estado de espírito certo para ouvir.
Não agora, pelo menos. Não hoje.
Meu adorado irmão, meu arqui-inimigo, como isso tinha acontecido?
E portanto:
Pai? Willy?
Mundo?
Lá vamos nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário