Marco Antonio Carvalho Teixeira e Guilherme Casarões*
Os ataques minaram a possibilidade do surgimento de uma oposição bolsonarista robusta e civilizada dentro do jogo democrático, gerando consequências imediatas que enfraquecem o líder e os seus seguidores
O bolsonarismo, movimento capitaneado por Jair Bolsonaro, é um fenômeno político recente. De caráter personalista e antissistema, ocupou o vazio gerado pela onda de desqualificação da atividade política que abateu os partidos e suas lideranças na esteira dos movimentos de 2013 e, nos anos seguintes, pelo modus operandi da operação Lava Jato. De maneira falaciosa, foi colocado como uma promessa da ainda enigmática “nova política” no Brasil.
Beneficiado pela demonização ao PT, pela prisão de Lula, pelo declínio do PSDB e de seus líderes e pela ausência de alternativas de expressão nacional, Jair Bolsonaro acabou corporificando os anseios ligados a dois sentimentos que afloraram ao longo da última década: o antipetismo e a negação da política institucional. Venceu as eleições presidenciais de 2018 com um discurso baseado na eliminação da esquerda, no combate à corrupção, no armamentismo irrestrito da população, na exaltação dos valores cristãos e no resgate de um “patriotismo” difuso e excludente.
O grande paradoxo do movimento liderado pelo então inexpressivo deputado Jair Bolsonaro é sua relação com a institucionalidade político-partidária. Bolsonaro e seus aliados ocuparam os espaços de poder em 2019 a partir de um amálgama das novas direitas que ascenderam no país, mas sem capacidade de estruturar uma força organizada que orientasse as relações entre Executivo e Legislativo.
Liberais de vários matizes se encantaram com as promessas reformistas de Paulo Guedes. Militares e forças policiais, que já se identificavam com o discurso punitivista do ex-capitão, viram-se contemplados pelos cargos e novos espaços políticos que se abriram. Representantes de alas predatórias do agronegócio apostaram na desregulamentação ambiental e na expansão das armas para civis. Evangélicos, há tempos demandando mais voz na política, aderiram ao projeto moralista e majoritarista pancristão. Lavajatistas embarcaram na retórica vazia do combate à corrupção. Todos, no limite, unidos de maneira frágil em torno de uma agenda de destruição burocrática e esvaziamento das capacidades estatais.
Avesso à negociação política, com enormes dificuldades de conviver com as mais variadas diferenças étnicas e sociais, e preso a dogmas movidos pela exclusão do outro, o governo Bolsonaro teve dois momentos bastantes distintos na sua relação com o Congresso. No primeiro, entre o início de seu mandato e fevereiro de 2021, desprezou os partidos e montou uma coalizão parlamentar ancorada nos segmentos que o apoiaram: agronegócio, evangélicos/religiosos, mineração e outros, sem ponderar que os instrumentos de governabilidade nas duas Casas legislativas, como as mesas diretoras e as comissões, são construídos com base no tamanho das bancadas partidárias.
Por esse caminho, viu os interesses do governo obstruídos no Parlamento pela sua incapacidade de negociar e pela ausência de interlocutores capazes de dialogar com seus pares, abrindo uma frente de guerra sobretudo na Câmara dos Deputados, simbolizada nos ataques a Rodrigo Maia, que foram constantemente perpetrados por seus apoiadores nas redes sociais. Atacar instituições e suas lideranças quando estas não se alinhavam com o governo foi uma prática quase que cotidiana do chamado bolsonarismo fundamentalista – se é que ainda dá para dizer que o grupo ainda se divide entre moderados e mais radicais.
O segundo momento ocorreu com a sucessão das mesas diretoras na Câmara e no Senado. O bolsonarismo negociou com partidos estruturados como o PP e o PL, se alinhou a Arthur Lira e derrotou Baleia Rossi, candidato apoiado por Rodrigo Maia na Câmara. No Senado, esteve ao lado da grande articulação que elegeu Rodrigo Pacheco. Com isso, mesmo mantendo dificuldades no Senado, já que Pacheco não dependeu apenas dos governistas para presidir a Casa, Bolsonaro conseguiu ao menos evitar a abertura de processos de impeachment na Câmara. Conseguiu, ademais, na véspera das eleições de 2022, aprovar em tempo recorde a PEC do reajuste do auxílio emergencial, algo que se tornou seu principal trunfo para buscar o voto dos mais pobres.
Movido pela expectativa de sua reeleição em 2022, Jair Bolsonaro vislumbrava apoiar a permanência de Arthur Lira no comando da Câmara. Lira, afinal, foi tido como um aliado extremamente leal, característica primária do bolsonarismo. No Senado, o projeto era eleger alguém mais afinado com o governo, uma vez que os futuros embates com o Supremo, inclusive por meio de possíveis propostas de mudança na composição do órgão ou em relação a estabelecer mandatos para os ministros, passariam obrigatoriamente pela Casa. Aliás, falando em STF, o bolsonarismo esperava o triunfo eleitoral para emplacar mais dois ministros identificados com os valores do grupo e assim diminuir os vetos ao governo na Corte.
‘Sem o criador, as criaturas, sobretudo aquelas que prezam e tem apreço pela democracia, vão buscar outros caminhos, e isso já está ocorrendo muito rapidamente’
Todavia, ao ser derrotado, o bolsonarismo ficou à deriva. De um lado, alguns, incluindo Arthur Lira, foram a público parabenizar o vencedor e refazer seus planos dentro da ordem democrática e frente à nova conjuntura política. De outro, a parcela mais fundamentalista foi protestar de forma violenta, obstruindo rodovias e acampando em quartéis, promovendo atos de vandalismo como os de 12 de dezembro e 8 de janeiro, retomando teses conspiratórias de fraude eleitoral para tentar impedir a posse do vencedor. Isso minou a possibilidade do surgimento de uma oposição bolsonarista robusta e civilizada dentro do jogo democrático, gerando duas consequências imediatas que enfraquecem o líder e os seus seguidores.
A primeira é que Arthur Lira será reeleito presidente da Câmara sem o compromisso com o bolsonarismo e praticamente alinhado com o novo governo. Do mesmo modo, Rodrigo Pacheco, que terá o senador bolsonarista Rogério Marinho como seu competidor, vai continuar à frente do Senado sem nenhum compromisso com o bolsonarismo e fortalecido pela sua posição crítica frente aos ataques de 8 de janeiro, que, além de emudecer o bolsonarismo radical no Parlamento, enfraqueceu qualquer projeto político de curto prazo desse grupo.
A segunda consequência é para o líder e pode ser letal para seus projetos políticos na arena institucional. Ao optar por se calar frente ao resultado e também diante dos atos de vandalismo de seguidores, Jair Bolsonaro deixou em aberto várias teses sobre sua conduta. Uma delas era de que, ao não condenar os atos de violência publicamente, ele acabava por estimulá-los a seguir promovendo desordem.
Por fim, a descoberta de uma chamada “minuta do golpe” na residência do seu ex-ministro da Justiça Anderson Torres, preso em decorrência das investigações dos ataques às instituições em 8 de janeiro, pode acelerar processos judiciais contra Bolsonaro e torná-lo inelegível. Sem o criador, as criaturas, sobretudo aquelas que prezam e têm apreço pela democracia, vão buscar outros caminhos, e isso já está ocorrendo muito rapidamente.
No cenário de hoje, há pouco, ou quase nada, a se esperar de uma oposição bolsonarista democrática e propositiva no Congresso. O espaço para uma alternativa de oposição ao PT está novamente aberto. Vendo a lealdade personalista ao ex-presidente se esvair, na medida em que se tornou um fardo político e até mesmo judicial, tudo indica que o bolsonarismo foi picado pelo seu próprio veneno.
Marco Antonio Carvalho Teixeira é cientista político e professor da FGV EAESP, onde coordena o Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas.
Guilherme Casarões é cientista político, professor da FGV EAESP e coordenador do Observatório da Extrema-Direita.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2023/A-oposi%C3%A7%C3%A3o-bolsonarista-ap%C3%B3s-o-8-de-janeiro?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo
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