Roberto Romano durante conferência na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros no IHU
(Fotos: Ricardo MAchado/IHU)
A política, ressalta Romano, é o jogo das paixões. No fundo, o que mobiliza politicamente os sujeitos é muito menos as racionalidades e muito mais os afetos.
Ao contrário do dilema shakespeariano sobre o ser, que partia de uma dúvida existencial do âmago do sujeito, a contemporaneidade impôs um elemento novo à questão: a coragem. “Quem tem coragem de ser indivíduo? Como pode existir coragem em uma sociedade absolutamente violenta com pobres, negros, homossexuais e mulheres? Vivemos em um sistema de dominação que nos instiga às paixões mais tristes”, provoca o professor e pesquisador Roberto Romano,
diante de uma plateia de mais de 80 pessoas na noite da segunda-feira,
26-9-2016, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
Roberto Romano apresentou a conferência Reinvenção do espaço público e político: o individualismo atual e a possibilidade de uma democracia da igualdade e dos afetos. O evento integra a programação da quarta edição do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum.
A transmutação do infame em normal
Dono de um discurso teoricamente preciso, Roberto Romano, não poupa expressões fortes quando se trata de descrever o comportamento social. “As pessoas têm horror a políticos e à política, mas quase se masturbam quando veem o Big Brother Brasil - BBB. As pessoas têm gozo quando um sujeito é eliminado do reality show. É a sublimação da fofoca. O BBB desperta as paixões horríveis, que transforma em normal o infame” critica.
Democracia spinoziana
Se o desafio de construção de uma sociedade democrática no século XVII era grandioso, nem mesmo todo processo moderno de civilização nos quatro séculos posteriores foi capaz de facilitar tal tarefa, dado que o verniz de nossas democracias não resiste a poucas décadas. “O regime democrático para Spinoza
é aquele que dispensa salvadores. É a força dos peixes pequenos unidos
contra o peixe o grande. Se não se tem força física para opor a força
física do tirano, infelizmente, não se pode mudar nada. A pressuposiçao da uniao dos corpos individuais
é fundamental para a democracia”, explica Romano. “A democracia como
aquele lugar onde todos se entendem e conversam tranquilamente não
existe. Em uma democracia os homens continuam desejando o mando, tendo
inveja, tendo ódio. O que ocorre é que há a possibilidade de se unir
indivíduos para relativizar essa paixões”, complementa.
Paixões e Política
Para Spinoza a democracia era o único sistema político natural. Ele partia de uma visão teológica, muito particular à época, para justificar a existência política humana. “Se Deus
é uma substância infinita com infinitos atributos, nós só conhecemos
dois deles: a extensão (o corpo) e o pensamento. Portanto, para Spinoza qualquer um que quisesse controlar os pensamentos e os corpos estaria indo contra Deus”, esclarece Romano.
O argumento de Spinoza vinha a calhar em um momento que, apesar do Renascimento e do princípio da fratura entre Estado e religião, a Inquisição
ainda fazia suas vítimas. Além disso o filósofo propôs uma leitura da
política que permanece original nos dias atuais. “Nós não podemos pensar
a política como se reuníssemos uma série de pensamentos. A política é uma reunião de corpos,
corpos que têm desejos, afetos. Essas paixões pessoais não podem ser
extraídas de nossos corpos e quando nos reunimos em sociedade”, avalia.
“É irrealista que a política seja fundada no pensamento e que possamos
ignorar que somos corpos que desejam. Se esquecermos esses aspectos,
fracassamos”, destaca Romano.
“Se não imaginamos os desejos – inveja, ódio, alegria, amor sexual,
vontade de ganho, vontade de poder – estamos pensando em termos
utópicos. Muitas vezes sublimamos esses desejos em coisas bonitas, mas
que não correspondem ao que de fato pensamos. Quando se tem a disputa pelo poder, mesmo o sujeito que se diz apolítico está experimentando coisas”, propõe.
Jogo das paixões
A política, ressalta Romano, é o jogo das paixões. No fundo, o que mobiliza politicamente os sujeitos é muito menos as racionalidades e muito mais os afetos. “A partilha dos afetos que vai formar a multidão de que trata Spinoza
pode ser destrutiva ou construtiva. Podemos transformar o sentimento de
amor em ódio. Nesse sistema, todo indivíduo é pedra fundamental, não
existe possibilidade de se pensar um todo sem as individualiades. Ele é
elemento capital”, descreve o conferencista. “O que assistimos a partir
do século XIX é a emergencia de uma técnica de vida chamada 'individualismo'
e isso se casa muito bem com o capitalismo, mas essa tese não tem nada a
ver com o individualismo proposto por Spinoza”, explica.
Da subversão à domesticação
Na prática o que ocorre nas sociedades marcadas pelo individualismo é
que a união de forças contra o soberano torna-se uma tarefa muito
difícil. “Apenas quando há fatos muito violentos se gera um movimento
social mais coeso, mas logos os indivíduos se separam. A união das
individualidades ocorre, porém, em pequenos grupos em que os indivíduos
se organizam em torno de pautas comuns e a pessoa passa
a assumir a identidade do movimento”, frisa. “A partir do momento em
que as pessoas passam a fazer parte de um movimento – LGBT, negro,
feministas etc – elas precisam se submeter às regras daquela comunidade.
É um movimento que se insurge contra as regras das sociedades impondo novas determinações e quem foge dessas identidades é um traidor”, complexifica Romano.
Ética
De acordo com o professor, quando se fala em ética no Brasil
as pessoas tendem a imaginar que a “ética” é uma coisa boazinha, feita
por intelectuais, mas que a ética vista desde o ponto de vista de Spinoza é capaz de revelar seu caráter conservador, como resultado não de um pensamento puro, mas de costumes. “Há costumes negativos que se tranformam em éticas,
uma forma reiterada de agir que se impõe aos outros e que se acha bom,
mas que para outras pessoas é ruim. Vejamos a o caso da Alemanha
nazista, em que milhões gritavam Heil Hitler e isso era ético”, relembra.
A coragem como liberdade
Ser não é, simplesmente, uma questão de existir biologicamente. Ser
pressupõe a liberdade, que é algo natural à espécie humana, mas ser
livre na vida social exige a coragem de ter liberdade de pensamento. “Falemos o óbvio. Para ter liberdade de pensamento é preciso, primeiro, pensar.
Se você pensa a propaganda, se você pensa o desejo do outro, você não
está pensando”, provoca Romano. “Pensar pode ser capaz de levar alguém à
solidão. Levantar-se contra o senso comum é um trabalho de lucidez muito difícil e muitas vezes mortal. Mas continua sendo a única forma de sermos livres”, provaca Romano.
Quem é Roberto Romano
Roberto Romano
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/560494-a-coragem-da-liberdade-de-ser - 27/09/2016
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