sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Busco sair da solidão vivida entre multidões.

Paulo Ghiraldelli*
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Valter Hugo Mae esteve ontem no evento Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, e soltou essa frase acima, mais ou menos assim, no anfiteatro que o acolheu. O escritor português disse ser solitário. Acredita não conseguir “ir ao outro”. Quer sair da solidão como quem se imagina, eu penso, não propriamente em solidão, mas em solipsismo. Talvez até tome esses dois conceitos indistintamente (foi isso que senti quando citou Wittgenstein). Hugo Mae é jovem, só 45 anos. E já está sozinho!

A literatura diz coisas, a filosofia investiga coisas. Essa diferença é fundamental. Hugo Mae se acredita sozinho. A filosofia é arrogante às vezes, então pode lhe dizer que o que o torna sozinho é a descrição que ele adota, uma narrativa viciada pela modernidade. Só os modernos inventaram de achar que estão no mundo como mônadas e, então, para conviverem, aderem ao ‘clube liberal’. Um lugar que se entra por contrato, adquirindo carteirinha de sócio, ou seja de membro da Sociedade. Os modernos inventaram a ideia de que estão no mundo como selvagens e, por um contrato, aderem ao estado ou o fundam, ou criam a sociedade ou estado-que-não-o-de-natureza. A descrição do homem pela modernidade é uma descrição que o torna sociável pelo trabalho ou pela linguagem. Essa é uma descrição que diz meia verdade.

Hugo Mae está imerso nisso. Inclusive acredita que a “condição animal” deve ser abandonada para que a Humanidade comece. Ventos que são do século XVII e XVIII sopram de Hugo Mae! Nada mais anti-Montaigne que isso! O homem que louvava os animais e que sabia que ficar sozinho era um esforço, algo talvez impossível. Montaigne não tinha a nossa ideia de que a consciência é algo indevassável. Estava ainda não enodoado pela modernidade como a tomamos.

A descrição que vê o homem nascendo como indivíduo centrado em si mesmo de um modo individualístico e, então, pela socialização, vai se abrindo para outros, é um dogma piagetiano de base científica. Mas a ciência às vezes não investiga para além de seu nariz e, não raro, pode fazer-se passar por literatura convincente. Perde para a literatura propriamente dita. Esta, por sua vez, revela desde o início que vai falar antes verdades que a Verdade. Quando apelamos para a filosofia, então o homem pode ganhar mais narrativas que a descrição moderna. Podemos inclusive notar que a narrativa do homem como necessariamente duplo vingou por muito tempo. Ela chegou a tal sucesso que Aristóteles não teve dúvida em chamar o homem de animal político e Agostinho, se pondo contra ele, ainda assim o complementou dizendo que o homem é o animal de família. A narrativa que Peter Sloterdijk põe na jogada desvela melhor as possibilidades do homem, e escapa de condená-lo à solidão de maneira dogmática. É uma narrativa que eu chamo de a descrição do homem como animal que tem mãe (e isso antes de conhecer Hugo, que tem sobrenome Mae e, segundo ele, vocação para tal).

Peter Sloterdijk faz de sua narrativa algo que a intuição de Martin Bubber havia posto na mesa: as crianças possuem instinto para relações – de onde isso vem? Ora, a “teoria das esferas” de Sloterdijk diz que isso é nossa condição desde sempre, filogeneticamente e ontogeneticamente. O primeiro caso passa pelo que ele chama de antropotécnicas, que não vou tocar aqui, o segundo caso exponho de maneira breve: não somos unidades, somos bi-unidades. Ou seja, somos um Cá e um Lá, um Aqui e um Com numa simbiose que depois cria ressonância num ambiente líquido chamado útero. A sinestesia entre feto e placenta, duas coisas que se mantém uma, é o protótipo de nossas relações sociais, nossa vocação para a linguagem e trabalho cooperativo. Está inscrito no corpo, na síntese dos tímpanos, nossa vocação para relações e a fonte do terceiro lema da Revolução Francesa: fraternidade. Somos fruto da viagem de úteros para exo-úteros. Somos resultado da viagem que vai da proteção da biomecenas, a mãe, para as mães postiças como deuses, mecenas e estado ou coisas assim. Somos sempre uma díade, porque se um dia a placenta nos deixa, logo aparece as vozes criadas ainda no útero e nossa capacidade de ouvi-las e tomá-las como daimons, anjos, gêmeos. Junto dessas vozes, surge um terceiro: a voz da mãe. Depois um quarto: a voz do pai. Finalmente irmãos e amigo e, enfim, professores. Forma-se aí um conjunto, uma  bandinha musical. Somos sempre no mínimo díades em meio aquoso sinestético, depois sonoro, eternamente em busca de novas reposições que não interrompam a ressonância. Sloterdijk chega a nos chamar de construtor de esferas, seja, selvagens designers de interiores. Não à toa, todo a antiguidade se fez na proteção da placenta, após sua saída do útero. Foi plantada no sopé de árvores, foi posta junto do seu morto, foi feita bandeira (os egípcios usavam a placenta da qual veio o faraó como bandeira – isso deu origem às nossas bandeiras), foi devorada como alimento e iguaria. Mas a modernidade jogou a placenta fora em nome da higiene, pois o homem moderno, liberal, aquele homem solitário ou, melhor, basicamente solipsista que Descartes imortalizou para os nossos tempos, se tornou o dono da narrativa verdadeira. Foi por essa operação que inventamos a solidão na multidão. Essa narrativa enganou Hugo Mae. Justo Hugo, o Mae! Vira e mexe, nos engana.

Nossa busca para sair da solidão que acreditamos estar se fez a partir do cultivo das cartas, dos livros, do espelho, da TV e, enfim, da Internet. Também servem aí, para o mesmo fim, os eletrodomésticos e o apartamento single equipado. Talvez o mercado e o consumo estejam nisso. Muitas vezes as doenças cumprem essa função. Tudo fazemos para suprir a solidão que, enfim, se tivéssemos a narrativa de Sloterdijk, que é mais condizente conosco, mais abrangente que a liberal (ou mesmo a comunitária), já teríamos abandonado. Teríamos já nos libertado dessa Síndrome-de-Hugo-Mae (que me perdoe o próprio Hugo por essa nomeação). Se tivéssemos prestado atenção no “dois em um” de Sócrates no Hípias Maior, como nos ensinou Hannah Arendt em A vida do espírito, teríamos podido ver a ilusória condição de solidão que dizemos estar, e o quanto essa ilusão nos faz realmente cair em solidão. Uma narrativa que nos diz solitários, quase ou totalmente em solipsismo, nos torna realmente fechados a tudo, como a mosca de Wittgenstein, presa na garrafa. Claro que somos solitários se assim nos descrevemos, sem notar outras possibilidades.

Hugo Mae está na garrafa. Talvez relate experiências de solidão. Mas, com Sloterdijk na mão, talvez comece a relatar experiências de reflexão, da vida em que nos assumimos como somos, ou seja, como díades, como “dois em um”. Duplos em pensamento e duplos na vontade. Aliás, nesse último caso, uma situação clássica de querer e não-querer conjuntamente (nos esquecemos da akrasia?), já nos deveria dar uma pista de que somos no mínimo díades, talvez multidões, e isso na mesma esfera, na mesma intimidade. Aliás, a intimidade é exatamente fruto dessa condição esférica. Não somos duplos ou triplos, como quis Freud. Somos o fruto de algo que é da ordem do mole, do mingau grosso, da sopa uterina. Por isso somos vocacionados para relações, como notou Bubber.
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* Paulo Ghiraldelli 59, filósofo. São Paulo, 01/09/2016
Foto: Valter Hugo Mae.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/hugo-mae.html

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