Paulo Ghiraldelli*
Valter Hugo Mae esteve ontem no evento
Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, e soltou essa frase acima, mais
ou menos assim, no anfiteatro que o acolheu. O escritor português disse
ser solitário. Acredita não conseguir “ir ao outro”. Quer sair da
solidão como quem se imagina, eu penso, não propriamente em solidão, mas
em solipsismo. Talvez até tome esses dois conceitos indistintamente
(foi isso que senti quando citou Wittgenstein). Hugo Mae é jovem, só 45
anos. E já está sozinho!
A literatura diz coisas, a filosofia
investiga coisas. Essa diferença é fundamental. Hugo Mae se acredita
sozinho. A filosofia é arrogante às vezes, então pode lhe dizer que o
que o torna sozinho é a descrição que ele adota, uma narrativa viciada
pela modernidade. Só os modernos inventaram de achar que estão no mundo
como mônadas e, então, para conviverem, aderem ao ‘clube liberal’. Um
lugar que se entra por contrato, adquirindo carteirinha de sócio, ou
seja de membro da Sociedade. Os modernos inventaram a ideia de que estão
no mundo como selvagens e, por um contrato, aderem ao estado ou o
fundam, ou criam a sociedade ou estado-que-não-o-de-natureza. A
descrição do homem pela modernidade é uma descrição que o torna sociável
pelo trabalho ou pela linguagem. Essa é uma descrição que diz meia
verdade.
Hugo Mae está imerso nisso. Inclusive
acredita que a “condição animal” deve ser abandonada para que a
Humanidade comece. Ventos que são do século XVII e XVIII sopram de Hugo
Mae! Nada mais anti-Montaigne que isso! O homem que louvava os animais e
que sabia que ficar sozinho era um esforço, algo talvez impossível.
Montaigne não tinha a nossa ideia de que a consciência é algo
indevassável. Estava ainda não enodoado pela modernidade como a tomamos.
A descrição que vê o homem nascendo como
indivíduo centrado em si mesmo de um modo individualístico e, então,
pela socialização, vai se abrindo para outros, é um dogma piagetiano de
base científica. Mas a ciência às vezes não investiga para além de seu
nariz e, não raro, pode fazer-se passar por literatura convincente.
Perde para a literatura propriamente dita. Esta, por sua vez, revela
desde o início que vai falar antes verdades que a Verdade. Quando
apelamos para a filosofia, então o homem pode ganhar mais narrativas que
a descrição moderna. Podemos inclusive notar que a narrativa do homem
como necessariamente duplo vingou por muito tempo. Ela chegou a tal
sucesso que Aristóteles não teve dúvida em chamar o homem de animal
político e Agostinho, se pondo contra ele, ainda assim o complementou
dizendo que o homem é o animal de família. A narrativa que Peter
Sloterdijk põe na jogada desvela melhor as possibilidades do homem, e
escapa de condená-lo à solidão de maneira dogmática. É uma narrativa que
eu chamo de a descrição do homem como animal que tem mãe (e isso antes
de conhecer Hugo, que tem sobrenome Mae e, segundo ele, vocação para
tal).
Peter Sloterdijk faz de sua narrativa
algo que a intuição de Martin Bubber havia posto na mesa: as crianças
possuem instinto para relações – de onde isso vem? Ora, a “teoria das
esferas” de Sloterdijk diz que isso é nossa condição desde sempre,
filogeneticamente e ontogeneticamente. O primeiro caso passa pelo que
ele chama de antropotécnicas, que não vou tocar aqui, o segundo caso
exponho de maneira breve: não somos unidades, somos bi-unidades. Ou
seja, somos um Cá e um Lá, um Aqui e um Com numa simbiose que depois
cria ressonância num ambiente líquido chamado útero. A sinestesia entre
feto e placenta, duas coisas que se mantém uma, é o protótipo de nossas
relações sociais, nossa vocação para a linguagem e trabalho
cooperativo. Está inscrito no corpo, na síntese dos tímpanos, nossa
vocação para relações e a fonte do terceiro lema da Revolução Francesa:
fraternidade. Somos fruto da viagem de úteros para exo-úteros. Somos
resultado da viagem que vai da proteção da biomecenas, a mãe, para as
mães postiças como deuses, mecenas e estado ou coisas assim. Somos
sempre uma díade, porque se um dia a placenta nos deixa, logo aparece as
vozes criadas ainda no útero e nossa capacidade de ouvi-las e tomá-las
como daimons, anjos, gêmeos. Junto dessas vozes, surge um terceiro: a
voz da mãe. Depois um quarto: a voz do pai. Finalmente irmãos e amigo e,
enfim, professores. Forma-se aí um conjunto, uma bandinha musical.
Somos sempre no mínimo díades em meio aquoso sinestético, depois sonoro,
eternamente em busca de novas reposições que não interrompam a
ressonância. Sloterdijk chega a nos chamar de construtor de esferas,
seja, selvagens designers de interiores. Não à toa, todo a antiguidade
se fez na proteção da placenta, após sua saída do útero. Foi plantada no
sopé de árvores, foi posta junto do seu morto, foi feita bandeira (os
egípcios usavam a placenta da qual veio o faraó como bandeira – isso deu
origem às nossas bandeiras), foi devorada como alimento e iguaria. Mas a
modernidade jogou a placenta fora em nome da higiene, pois o homem
moderno, liberal, aquele homem solitário ou, melhor, basicamente
solipsista que Descartes imortalizou para os nossos tempos, se tornou o
dono da narrativa verdadeira. Foi por essa operação que inventamos a
solidão na multidão. Essa narrativa enganou Hugo Mae. Justo Hugo, o Mae! Vira e mexe, nos engana.
Nossa busca para sair da solidão que
acreditamos estar se fez a partir do cultivo das cartas, dos livros, do
espelho, da TV e, enfim, da Internet. Também servem aí, para o mesmo
fim, os eletrodomésticos e o apartamento single equipado.
Talvez o mercado e o consumo estejam nisso. Muitas vezes as doenças
cumprem essa função. Tudo fazemos para suprir a solidão que, enfim, se
tivéssemos a narrativa de Sloterdijk, que é mais condizente conosco,
mais abrangente que a liberal (ou mesmo a comunitária), já teríamos
abandonado. Teríamos já nos libertado dessa Síndrome-de-Hugo-Mae (que me
perdoe o próprio Hugo por essa nomeação). Se tivéssemos prestado
atenção no “dois em um” de Sócrates no Hípias Maior, como nos ensinou Hannah Arendt em A vida do espírito,
teríamos podido ver a ilusória condição de solidão que dizemos estar, e
o quanto essa ilusão nos faz realmente cair em solidão. Uma narrativa
que nos diz solitários, quase ou totalmente em solipsismo, nos torna
realmente fechados a tudo, como a mosca de Wittgenstein, presa na
garrafa. Claro que somos solitários se assim nos descrevemos, sem notar
outras possibilidades.
Hugo Mae está na garrafa. Talvez relate
experiências de solidão. Mas, com Sloterdijk na mão, talvez comece a
relatar experiências de reflexão, da vida em que nos assumimos como
somos, ou seja, como díades, como “dois em um”. Duplos em pensamento e
duplos na vontade. Aliás, nesse último caso, uma situação clássica de
querer e não-querer conjuntamente (nos esquecemos da akrasia?),
já nos deveria dar uma pista de que somos no mínimo díades, talvez
multidões, e isso na mesma esfera, na mesma intimidade. Aliás, a
intimidade é exatamente fruto dessa condição esférica. Não somos duplos
ou triplos, como quis Freud. Somos o fruto de algo que é da ordem do
mole, do mingau grosso, da sopa uterina. Por isso somos vocacionados
para relações, como notou Bubber.
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* Paulo Ghiraldelli 59, filósofo. São Paulo, 01/09/2016
Foto: Valter Hugo Mae.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/hugo-mae.html
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