sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O QUE É FELICIDADE?

 Paulo Ghiraldell*
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Felicidade é a nossa palavra para aquilo que a Grécia antiga chamava de eudaimonia. Há os que preferem tecer comentários sobre essa tradução, há os que dispensam qualquer reparo. Estou entre os primeiros, mas não por especialidade em idiomas e, sim, por questão de ênfase filosófica.

Eudaimonia vem da junção eu e daimonion, ou seja, bom e daimon. Eudaimonia é, portanto, o bom daimon. Possuir um bom daimon refere-se, no mundo grego, a estar sob os cuidados de um gênio protetor. Mas gênio já não é mais do âmbito grego, e sim do latim. Desse modo, na cultura helênica, ou seja, já no âmbito do terreno greco-latino, há quem faça gênio vir de  “genus”, de modo que isso pode ligar o gênio ao ato de solicitar algo prostrado aos joelhos de alguém. Nesse caso, a dimensão objetiva do daimon ou do gênio se explicita claramente. Pede-se algo bom a quem pode fazer algo bom. Um passo a mais e temos aí o anjo da guarda, a quem se pede, de joelhos (ou ao joelhos) uma graça, uma proteção, uma façanha em proveito próprio ou de entes queridos – uma bondade.

Todavia, sabemos bem que esse  pedido pode ser feito de maneira interiorizada, se já estamos sobe algum influência estóica e, mais ainda e de modo decisivo, sob direção cristã, especialmente na tradição de Agostinho. Pedir algo ao gênio como uma prática de pedir algo a uma instância interna está a um passo de pedir algo a si mesmo. Desse modo, conversar com o gênio é conversar consigo mesmo. Eis que tudo está pronto para vermos a completa subjetivação da palavra. Gênio é, desse modo, uma espécie de propriedade psíquica da personalidade. Pessoas de bom gênio são afáveis, pacíficas, enquanto pessoas de mau gênio podem não ser propriamente maldosas, mas antes irriquietas, iracíveis, briguentas. “Fulano de tal tem um gênio terrível”, dizemos. Também falamos, ou falávamos, “o casamento faliu por incompatibilidade de gênios”. Quando adotamos tal vocabulário estamos no plano plenamente moderno, onde a própria subjetivação já cedeu à popular psicologização.

No nosso mundo atual, quando falamos de felicidade, do mesmo modo de que quando falamos em bom gênio, não pensamos em alguma coisa articulada à prosperidade, mas sim algo proporcionador de um conforto psíquico, uma espécie de mistura de prazer com tranquilidade. Nem Deus, nem deuses, nem a cidade ou grupos étnicos podem estar envolvidos nisso. Felicidade tornou-se um sentimento da ordem do indivíduo e, nesse caso, uma estado da “vida interior”. “Sentimento de  felicidade”, é assim que dizemos, não é? “Você está feliz?”, diz um pai a uma filha, querendo com isso perguntar sobre se o que ela escolheu para si, no campo da vida mais íntima, realmente a satisfaz plenamente.

No mundo moderno a “decadência do homem público” é uma regra. O homem público guarda o falso, ele não explicita nosso eu verdadeiro, refugiado no plano íntimo. É assim que pensamos. Casa-se essa situação, pela via histórica, como o que ocorreu com a felicidade, vista pela linha da alterações semânticas. Assim, ninguém diz “vou ser feliz na política”, mas, antes, diz “vou voltar para casa, quero ser feliz”. A felicidade virou sentimento, e isso é conseguido como algo bom a quatro paredes. Psicologização casada com apologia da intimidade nos dá o reino da felicidade. Estamos aí, portanto, muito longe já da eudaimonia como prosperidade, da cultura helênica.

Quando abordamos a felicidade assim, pela técnica filosófica, tudo muda. Passamos a compreender como exigimos certas condições para sermos felizes que dispensam coisas indispensáveis ao mundo clássico, e que, de certo modo, talvez não fosse o caso de abrir mão. Por que temos que ser felizes somente a quatro paredes? Por que aceitamos a subjetivação e a psicologização da felicidade? Por que não podemos, mesmo sob o domínio de religiões subjetivas, falarmos da felicidade segundo uma ótica mais ampla? Será que realmente somos felizes se somos felizes como fuga, como busca de esconderijo, como exclusão da vida política e social? Temos mesmo que depositar as condições de felicidade no prazer sexual (nem sempre com a esposa ou marido, mas sempre na esfera criada pela intimidade) e na vida com os filhos, e também com a esposa (ou marido)? Não podemos recriar, em outro patamar, a noção de felicidade? Essa noção da felicidade como sentimento pessoal é o nosso máximo? Estamos ou não sendo pequenos ao falarmos que queremos ser felizes, se a felicidade ficou nesse pequeno espaço prometido do lar burguês?

A filosofia não dá conselhos para a felicidade. Não hoje em dia. Isso faziam as filosofia antigas. A filosofia, contemporaneamente, quanto a felicidade, tornou-se um lugar de indagação sobre possibilidades e impossibilidades que, ao meu ver, estão em aberto. Quem promete felicidade, hoje em dia, é terapeuta de boteco, escritor de autoajuda, midiagogo que reitera o senso comum e ideólogo propagandeador de restolhos de doutrinas política.
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Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 08/09/2016
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/o-que-e-felicidade.html

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