Paulo Ghiraldell*
Felicidade é a nossa palavra para aquilo que a Grécia antiga chamava de eudaimonia.
Há os que preferem tecer comentários sobre essa tradução, há os que
dispensam qualquer reparo. Estou entre os primeiros, mas não por
especialidade em idiomas e, sim, por questão de ênfase filosófica.
Eudaimonia vem da junção eu e daimonion, ou seja, bom e daimon. Eudaimonia
é, portanto, o bom daimon. Possuir um bom daimon refere-se, no mundo
grego, a estar sob os cuidados de um gênio protetor. Mas gênio já não é
mais do âmbito grego, e sim do latim. Desse modo, na cultura helênica,
ou seja, já no âmbito do terreno greco-latino, há quem faça gênio vir
de “genus”, de modo que isso pode ligar o gênio ao ato de solicitar
algo prostrado aos joelhos de alguém. Nesse caso, a dimensão objetiva do
daimon ou do gênio se explicita claramente. Pede-se algo bom a quem
pode fazer algo bom. Um passo a mais e temos aí o anjo da guarda, a quem
se pede, de joelhos (ou ao joelhos) uma graça, uma proteção, uma
façanha em proveito próprio ou de entes queridos – uma bondade.
Todavia, sabemos bem que esse pedido
pode ser feito de maneira interiorizada, se já estamos sobe algum
influência estóica e, mais ainda e de modo decisivo, sob direção cristã,
especialmente na tradição de Agostinho. Pedir algo ao gênio como uma
prática de pedir algo a uma instância interna está a um passo de pedir
algo a si mesmo. Desse modo, conversar com o gênio é conversar consigo
mesmo. Eis que tudo está pronto para vermos a completa subjetivação da
palavra. Gênio é, desse modo, uma espécie de propriedade psíquica da
personalidade. Pessoas de bom gênio são afáveis, pacíficas, enquanto
pessoas de mau gênio podem não ser propriamente maldosas, mas antes
irriquietas, iracíveis, briguentas. “Fulano de tal tem um gênio
terrível”, dizemos. Também falamos, ou falávamos, “o casamento faliu por
incompatibilidade de gênios”. Quando adotamos tal vocabulário estamos
no plano plenamente moderno, onde a própria subjetivação já cedeu à
popular psicologização.
No nosso mundo atual, quando falamos de
felicidade, do mesmo modo de que quando falamos em bom gênio, não
pensamos em alguma coisa articulada à prosperidade, mas sim algo
proporcionador de um conforto psíquico, uma espécie de mistura de prazer
com tranquilidade. Nem Deus, nem deuses, nem a cidade ou grupos étnicos
podem estar envolvidos nisso. Felicidade tornou-se um sentimento da
ordem do indivíduo e, nesse caso, uma estado da “vida interior”.
“Sentimento de felicidade”, é assim que dizemos, não é? “Você está
feliz?”, diz um pai a uma filha, querendo com isso perguntar sobre se o
que ela escolheu para si, no campo da vida mais íntima, realmente a
satisfaz plenamente.
No mundo moderno a “decadência do homem
público” é uma regra. O homem público guarda o falso, ele não explicita
nosso eu verdadeiro, refugiado no plano íntimo. É assim que pensamos.
Casa-se essa situação, pela via histórica, como o que ocorreu com a
felicidade, vista pela linha da alterações semânticas. Assim, ninguém
diz “vou ser feliz na política”, mas, antes, diz “vou voltar para casa,
quero ser feliz”. A felicidade virou sentimento, e isso é conseguido
como algo bom a quatro paredes. Psicologização casada com apologia da
intimidade nos dá o reino da felicidade. Estamos aí, portanto, muito
longe já da eudaimonia como prosperidade, da cultura helênica.
Quando abordamos a felicidade assim,
pela técnica filosófica, tudo muda. Passamos a compreender como exigimos
certas condições para sermos felizes que dispensam coisas
indispensáveis ao mundo clássico, e que, de certo modo, talvez não fosse
o caso de abrir mão. Por que temos que ser felizes somente a quatro
paredes? Por que aceitamos a subjetivação e a psicologização da
felicidade? Por que não podemos, mesmo sob o domínio de religiões
subjetivas, falarmos da felicidade segundo uma ótica mais ampla? Será
que realmente somos felizes se somos felizes como fuga, como busca de
esconderijo, como exclusão da vida política e social? Temos mesmo que
depositar as condições de felicidade no prazer sexual (nem sempre com a
esposa ou marido, mas sempre na esfera criada pela intimidade) e na vida
com os filhos, e também com a esposa (ou marido)? Não podemos recriar,
em outro patamar, a noção de felicidade? Essa noção da felicidade como
sentimento pessoal é o nosso máximo? Estamos ou não sendo pequenos ao
falarmos que queremos ser felizes, se a felicidade ficou nesse pequeno
espaço prometido do lar burguês?
A filosofia não dá conselhos para a
felicidade. Não hoje em dia. Isso faziam as filosofia antigas. A
filosofia, contemporaneamente, quanto a felicidade, tornou-se um lugar
de indagação sobre possibilidades e impossibilidades que, ao meu ver,
estão em aberto. Quem promete felicidade, hoje em dia, é terapeuta de
boteco, escritor de autoajuda, midiagogo que reitera o senso comum e
ideólogo propagandeador de restolhos de doutrinas política.
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Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 08/09/2016Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/o-que-e-felicidade.html
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