João Pereira Coutinho*
Amigo leitor: peço desculpa pelo uso abusivo da palavra. Eu não sou seu
amigo. Nem você é meu. Não nos conhecemos e, francamente, melhor assim.
Eu escrevo e, com sorte, alguém lê desse lado. É uma troca justa. E
basta.
Aliás, por falar em amigos, quantos você tem? Cinco? Dez? Vinte? Melhor
cortar o número para metade. Tempos atrás, li um estudo sobre as nossas
falsas percepções sobre os amigos. E parece que só metade das amizades
que julgamos sólidas são recíprocas. Na outra metade estão pessoas que
não pensam em nós, pensam pouco ou até pensam mal.
Essas conclusões não me espantam. Experiência cotidiana: alguém fala que
encontrou o personagem X e ele, eufórico, falou de mim como "grande
amigo".
Disfarço, por gentileza. Mas, se fizesse uma lista com as cem pessoas
que passaram pela minha vida –da família mais próxima ao homem que me
vendeu os jornais meia hora atrás–, o personagem X não estaria presente.
Aqui entre nós, quem é o personagem X? E, já agora, por que motivo tendemos a inflacionar o número de amigos que julgamos ter?
Fato: o conceito de "amizade" tornou-se uma caricatura, sobretudo quando
é possível colecionar centenas ou milhares de "amigos virtuais" no
mundo virtual. O pessoal confunde as coisas e julga que um "like" é uma
jura de amor eterno.
Mas as conclusões do estudo também não me espantam por causa de um livro
publicado há precisamente 130 anos. O autor é Lev Tolstói (1828-1910) e
o título é "A Morte de Ivan Ilitch".
Primeira confissão: "A Morte de Ivan Ilitch" sempre me pareceu um erro.
"A Vida de Ivan Ilitch" seria a titulatura mais apropriada porque é de
vida, e não de morte, que Tolstói nos fala.
Sim, superficialmente, temos um homem que adoece com gravidade e que
caminha para o seu cadafalso com a angústia e o ressentimento dos
condenados.
Mas a novela de Tolstói é uma meditação avassaladora sobre as mentiras da existência "comme il faut".
A expressão francesa é usada e abusada pelo narrador com propósitos
irônicos, mas também descritivos. Ivan Ilitch era a promessa da família
–e a promessa se cumpriu.
Estudou, formou-se, tornou-se funcionário judicial de sucesso. E
procurou sempre uma vida "comme il faut" que estivesse à altura dos
gostos da plateia. Teve um casamento "comme il faut"; uma casa "comme il
faut"; uma carreira de magistrado "comme il faut".
E, quando a harmonia doméstica começou a ruir, Ivan Ilitch resolveu o
assunto "comme il faut": casou-se com o trabalho e transformou a mulher
em "hobby" suportável.
É perante esta gloriosa encenação que a morte surge como elemento
dissonante –ou, se preferirmos, "pas comme il faut". Ivan analisa a dor
da enfermidade como se aquilo fosse um elemento estranho, injusto, "fora
do lugar". Nega a sua condição (morrer, eu?) e, quando a enfrenta, é
devorado por um terror gélido ("sim, eu").
Nas mãos de um escritor banal, a doença serviria para mostrar a Ivan
Ilitch que as medalhas que ostentamos ao peito não nos protegem do fim
inevitável e blá-blá-blá.
Para um monstro como Tolstói, a morte de Ivan Ilitch é a "via dolorosa"
da sua salvação. Porque é a morte que permitirá ao personagem olhar para
os outros e para ele próprio sem viciar "o fundo insubornável do ser"
de que falava o filósofo Ortega y Gasset.
É, enfim, uma visão límpida e aterradora. A mulher e a filha, cansadas
da agonia de Ivan, consideram-no um estorvo, um repulsivo estorvo que a
morte tarda em levar.
E, quando recorda a sua vida, é na infância, e apenas na infância, que
Ivan Ilitch encontra uma felicidade autêntica e sem sombra. A conclusão é
trágica e, ao mesmo tempo, libertadora: enquanto subia aos olhos dos
outros ("comme il faut"), Ivan Ilitch descia rumo ao naufrágio.
É esse naufrágio, essa falsificação espiritual que encontramos nos
"amigos" de Ivan quando sabem da notícia da morte. Uns pensam nas suas
carreiras (quem ocupará o lugar do defunto? haverá promoções?). Outros
sentem alívio ("foi ele, não fui eu"). E todos suspiram com as
obrigações sociais entediantes (ir ao funeral, consolar a viúva etc.).
"The show must go on."
Amigos? Temos dezenas, centenas, milhares. E assim continuaremos
–autoiludidos e autocentrados– até chegarmos ao leito derradeiro onde
estarão poucos ou ninguém.
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*Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do
'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras
na versão impressa, e a cada duas semanas no site.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/09/1810519-a-morte-de-ivan-ilitch-de-tolstoi-revela-as-mentiras-da-existencia.shtml
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