segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Liberdade conectada: quais os limites do direito de livre expressão?

 

Em estudo enciclopédico e atual, historiador britânico explora os limites e o significado dos direitos de livre expressão na era da internet

Eduardo Wolf

O que há em comum entre um pregador radical muçulmano incentivando os jovens a aderirem ao Estado Islâmico nas ruas de Londres, uma mulher sendo forçada a remover seu “burkini” (roupa de banho para muçulmanas) em uma praia na França e jovens brasileiros detidos em São Paulo sob a acusação de que depredariam a cidade em um ato político? Vejamos: no primeiro caso, temos uma pregação religiosa radical incitando à violência física sob a forma de atos terroristas; no segundo, uma ação policial estatal regulando uma prática privada na esfera dos costumes; no terceiro, um conflito político em que manifestantes são detidos previamente por supostamente terem confessado à polícia que sua ação política, na verdade, resultaria em quebra-quebra e arruaça pela cidade. 

Londres, Marselha, São Paulo; terrorismo religioso, conflito de costumes e violência política – pode parecer que não há nada interligando todos esses casos (verídicos), mas eles estão, sim, muito conectados. Em todos eles, um princípio fundamental de nossa identidade como sociedade liberal, democrática e moderna está em questão. Trata-se do princípio da liberdade de expressão, garantido formalmente pelo Bill of Rights inglês de 1689, parteiro e companheiro da jovem república americana de 1776 e tema de controvérsias várias em todas as partes do mundo. Tanto é assim que o assunto mobilizou o professor de Oxford e pesquisador Timothy Garton Ash. 

Desde 2011, Ash está à frente do projeto freespeechdebate.com, com base na universidade inglesa, mas com alcance global. O projeto reúne análises, documentos e relatos sobre a liberdade de expressão em um portal completo e multilíngue (está disponível em 13 idiomas). Após anos de pesquisa, incluindo uma experiência com o orwelliano Estado chinês e seu aparato de censura e repressão, Garton Ash publicou em maio o livro Free Speech: Ten Principles for a Connected World (“Liberdade de Expressão: Dez Princípios para um Mundo Conectado”, Yale University Press, ainda sem tradução brasileira), um alentado volume em que seu autor apresenta uma vigorosa defesa de um liberalismo esclarecido, humanista e cosmopolita para o qual a liberdade de expressão é tão fundamental quanto qualquer outra das garantias individuais mais básicas que as democracias modernas lograram estender a seus cidadãos. 

Uma conquista desde sempre frágil e cuja sobrevivência, em tempos de comunicação instantânea global, é sempre precária. Vejam-se os exemplos acima apresentados. Anjen Choudary, o radical pregador religioso, aliciou jovens ingleses durante décadas para as fileiras do extremismo muçulmano, culminando em apoio ao terrorismo do Estado Islâmico. Seu direito à liberdade de expressão foi violado ao ser sentenciado essa semana a mais de cinco anos de prisão, seguido de vigilância estrita? Ou terá Choudary apenas abusado dos valores democráticos da sociedade britânica para pregar o ódio armado com efetivas consequências inaceitáveis para uma sociedade civilizada? Os princípios seculares franceses devem ser impostos sobre a parcela da população muçulmana, regulando até mesmo como as pessoas se vestem na praia, ou será isso flagrante abuso de autoridade – ainda que em nome de princípios ditos progressistas? A alegação policial de que um grupo de jovens, dirigindo-se a uma manifestação contra o governo brasileiro recém-empossado, confessou que iria depredar a cidade é razão para a detenção prévia dessas pessoas? Ou será esse um caso de violação da liberdade de expressão política dos indivíduos?
Foto: PAULO ERMANTINO | PAGOS

Ash discute em detalhe e com farta documentação casos limites, semelhantes a esses. Não são radicalmente diferentes de outros tantos episódios que têm chegado a nós com preocupante frequência: cartunistas dinamarqueses publicam um desenho do profeta Maomé, ao que se segue uma radical onda de violência muçulmana em protesto a tal “agressão” – eis uma versão simplificada dos sensíveis conflitos do Ocidente laico com o mundo islâmico há anos; regimes autoritários bloqueiam o acesso à internet, impedem a reunião de pessoas em torno de causas comuns e sua livre manifestação, seja nas ruas, seja por escrito – eis a realidade chinesa; indivíduos decidem exercer seu poder de veto à palavra alheia: “você não tem o direito de expressar essas ideias, pois elas nos ofendem” – eis a realidade de muitas universidades americanas e inglesas de ponta. 

Como é possível, no entanto, que justamente em um momento em que a humanidade vive a expansão da ferramenta mais propícia à livre difusão do conhecimento e das convicções individuais, a internet, problemas como a censura explícita de ideias ou a violência contra os que exercem seu direito de expressão sejam tão evidentes? 

Precisamente porque agora vivemos mais conectados do que nunca, velhas formas de preconceito que poderiam ficar restritas a práticas regionais ingressam na corrente do debate público internacional. Da mesma forma, conflitos que jamais teriam emergido em um mundo de “cortinas de ferro” fazem parte da dieta diária de informação que consumimos em nossos computadores, tablets e celulares. Em 1989, quando o Aiatolá Khomeini decretou uma fatwa contra o escritor Salman Rushdie por causa da publicação de seu livro Versos Satânicos, o editor americano de Rushdie podia perguntar: “o que é uma fatwa?”. Hoje, quando as transmissões das decapitações realizadas pelo Estado Islâmico são transmitidas no YouTube e milhões de pessoas podem vê-las instantaneamente, não há inocência possível quanto ao tema – todas as vozes devem ter esse direito de se fazer ouvir na arena pública? 

Em parte, a elegante e complexa resposta de Garton Ash consiste em reconhecer que nunca conseguiremos dirimir todas as nossas disputas ideológicas, nacionais, partidárias ou religiosas, o que não quer dizer que não devamos buscar um modo de convivência civilizada, “concordando que discordamos”. É a voz iluminista liberal de Garton Ash, herdeiro de grandes pensadores como Erasmo de Roterdã e Isaiah Berlin. É por isso que o autor deste formidável livro não tem dúvidas: nosso compromisso com as liberdades individuais – e a liberdade de expressão merece todo esse destaque entre elas – deve estar acima de qualquer ameaça, por mais perigosa que possa parecer, especialmente nesses tempos de conexão total e instantânea dos indivíduos e das sociedades. Governos ou corporações, militantes acadêmicos ou fanáticos religiosos – ninguém deve se arrogar o direito de nos calar. Mas falemos com civilidade, é claro.
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Fonte:http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,liberdade-conectada-quais-os-limites-do-direito-de-livre-expressao,10000075159  - 10/09/2016

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