quarta-feira, 21 de setembro de 2016

NUNO COSTA SANTOS: "Sem cultura estamos perdidos".

 Arturo Pérez-Reverte

Nuno Costa Santos entrevistou Arturo Pérez-Reverte. O autor espanhol esteve em Portugal para apresentar "Homens Bons", um romance que quer "salvar a parte salvável do ser humano".
Arturo Pérez-Reverte é o autor espanhol mais lido no mundo mas não é isso que faz com que tenha opiniões consensuais. Numa altura em que é editado em Portugal o romance Homens Bons (ASA), sobre o idealismo iluminista, o escritor falou com o Observador sobre o livro mas também sobre o seu pessimismo sobre a natureza humana e a batalha que tem com o politicamente correcto.

arturo
“Homens Bons”, de Arturo Pérez-Reverte (Asa)

Assistiu a várias tragédias do mundo enquanto repórter de guerra. Ainda se assume como pessimista?
A vida que tive não me ajuda a ser optimista. Em todo o caso, este romance que agora publico em Portugal é optimista. Vi coisas muito desagradáveis na guerra e fiquei muito mal impressionado com o ser humano. Já tirei a maiúscula a muitas palavras, como deus, pátria e bandeira. Mas desta vez edito um romance de esperança, que visa, digamos, salvar a parte salvável do ser humano. A amizade, a lealdade, a cultura. A cultura como salvação possível. Este é um livro sobre as palavras que ficaram com maiúsculas.

Um homem que assistiu a tantas guerras tem necessidade de nomear a bondade?
No trabalho não vi o lado melhor do ser humano e por isso faço uma compensação escrevendo romances. Estes são uma espécie de analgésico para mim. Não atacam a causa da dor mas ajudam a suportar a dor. Guardo muitas imagens e recordações que não são cómodas e agradáveis. Escrever ajuda a serenar-me e a ir buscar a parte boa.

Qual a melhor história de bondade que viveu na guerra?
Vivi histórias atrozes mas também histórias muito nobres e dignas. Vi muita gente que se sacrificava por outros. Um velho, em Sarajevo, que saía todos os dias com uma mochila às costas para ir buscar comida para os netos e para os vizinhos. Na guerra vi muita gente má e muita gente boa.

Pois, na guerra o ser humano revela-se nos seus extremos.
O ser humano é um filho da puta por natureza. Nasce filho da puta, guerreiro e predador. A sociedade educa-o e assim suaviza essa natureza. Quando há uma catástrofe, uma crise ou uma guerra rompe-se a casca de civilização e o homem volta a ser um animal e um filho da puta. Mas, ao mesmo tempo, aparece o homem bom. E vemos também que o mesmo homem pode ser filho da puta e bom ao mesmo tempo. Vi homens que mataram e torturaram a ter gestos muito bonitos.

"Vi muita gente que se sacrificava por outros. 
Um velho, em Sarajevo, que saía todos 
os dias com uma mochila às costas para 
ir buscar comida para os netos
 e para os vizinhos." 
 
Sendo este livro sobre o Iluminismo, vê-o como um livro de civilização numa altura em que está a ser desmantelada?
Sim e isso é particularmente importante agora. Este é um livro que trata do século XVIII mas que também fala ao mundo de hoje. Os valores não mudam, são os mesmos. A lealdade, a dignidade, a amizade e a cultura como salvação continuam a ser necessárias. O mundo é um caos de internet e de informações dispersas, onde não há possibilidade de separar o útil do inútil e onde o bem e o mal estão misturados. A internet é uma ferramenta muito potente mas não hierarquiza a informação. O receptor de informação não distingue o útil do inútil. Só há cultura se houver preparação. A cultura ajuda a seleccionar e sem cultura estamos perdidos. O meu romance pretende ser uma homenagem aos livros como mecanismo de salvação.

As novas gerações, com poucas referências culturais e históricas, podem encontrar algumas nesse livro?
Este não é um livro didático. Tem o objectivo de prestar homenagem a uns homens que tentaram mudar o mundo através dos livros, o que aconteceu no século XVIII.

Mas o Iluminismo também acabou por dar origem a cabeças cortadas, ou seja, a barbárie.
Esse ponto é interessante e importante. O Iluminismo abriu a porta à Luz mas os homens sequestraram o Iluminismo, convertendo-o em matanças e guilhotinas. Com frequência, as boas causas, as boas ideias e as boas razões são contaminadas pela infame e perversa condição humana. A Revolução Russa, por exemplo, era originalmente um acto necessário e bom mas foi sequestrada por Estaline e acabou numa ditadura. Todas as boas causas terminam mal por causa dos homens. Em Portugal, o 25 de Abril, que começou por ser uma ideia boa, acabou sequestrado pelo dinheiro. Isso não lhe retira o valor. Os Capitães de Abril continuam a ser os Capitães de Abril, homens que acreditavam na possibilidade de um mundo.

 "Os livros são ou solução ou consolo. 
Quando o mundo exterior não te agrada, 
quando é tudo ruído mediático ou confusão, 
a biblioteca ajuda a fazer-te compreender 
porque é que a realidade é como é."

Este é um romance, como é habitual nas suas ficções, de personagens, a começar pelas principais: o bibliotecário don Hermógenes Molina e o almirante don Pedro Zárate, ambos membros da Real Academia Espanhola. Continua a perseguir o objectivo de ter boas personagens para contar uma história?
Posso dizer que este é um livro de ideias e de personagens. E, claro, há acção, aventura, viagem, peripécias. Eu queria demonstrar que duas personagens muito diferentes, opostas mesmo — o científico e rigoroso e o humanista, católico e humano — podem, a propósito dos livros, ser irmãos. Esta é uma história de amizade. Uma história de livros e de amizade. Era esse o meu objectivo.

Dom Quixote e Sancho Pança são sempre uma referência nesse aspecto.
Sim, a dimensão de diálogo é central. Se os homens falassem mais, o mundo seria melhor. Há que falar. Os homens não falam. Em geral os homens esperam que os outros acabem de falar para dizer aquilo que têm na cabeça. Quando falamos com uma pessoa com sabedoria e a escutamos o mundo torna-se melhor.

“Homens Bons” parte muito da sua dimensão de escritor que pesquisa.
É verdade. Mas depois há a parte de ficção, que é fundamental. A certo momento achei que era importante introduzir a figura do narrador. Que sou eu, embora com uma dimensão ficcional importante. Neste romance as personagens reais dizem frases que nunca disseram. Há aqui a exploração de uma falsa realidade, por assim dizer.

"Há dias vi uma série de turistas a tirar 
fotografias na Brasileira, junto à estátua 
de Fernando Pessoa. Pensei: não sabem 
quem é Pessoa mas é muito importante 
para eles tirar a foto. Alguém que ame 
 verdadeiramente o poeta não se pode 
aproximar por causa dessa multidão
 que o desconhece." 
 
Interessam-no as fronteiras perdidas entre a realidade e a ficção.
Todos os meus livros passam por aí. Invento títulos de obras, misturo personagens reais com as que não o são. Esse tipo de jogo narrativo diverte-me muito. Falsifico a realidade na hora de escrever.

É possível encontrar hoje novas formas literárias de contar uma história?
O que é possível é adaptar a literatura. Os grandes temas estão nos clássicos – em Sófocles, Eurípedes e Aristófanes, por exemplo. A traição, o crime, o matrimónio, a vingança. O escritor, ao longo dos séculos, tem ido buscar os temas eternos, actualizando-os. “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós, é uma tragédia de Sófocles situada no século XIX português. Não há nada que descobrir de essencial. Apenas existem formas novas de contar os velhos temas de sempre.

Encontra no mundo de hoje alguns homens bons no sentido em que os trata no seu livro?
Hoje em dia não há nenhum homem verdadeiramente bom. Estamos todos demasiado contaminados. O mundo actual é demasiado global e a miséria e a vileza também são globais. Não poria a mão no fogo por ninguém.

 "Estamos a criar gerações sem memória 
e sem cultura. Com planos de estudos iguais, 
em que não se premeia a excelência 
mas sim a mediocridade. Quando se é brilhante 
é preciso ocultar isso para 
não se ofender quem não o é."


Mantém-se muito crítico do humanismo cristão? Não lhe reconhece virtudes?
Eu não sou anti-religioso. Mas tenho muitas reservas em relação ao papel histórico da Igreja Católica. Países como Portugal, Espanha e Itália ficaram presos em calabouços obscuros durante muitos séculos por causa da Igreja Católica. Impediu-nos de ler livros, de foder, de rir, de viajar. E isso traumatizou-nos historicamente. Em Portugal e Espanha, muito mesmo. E o nosso atraso cultural e intelectual deve-se ao peso que a Igreja Católica teve em nós. Respeito quem é católico. Não posso é perdoar o papel histórico e político da Igreja.

O que acha do Papa Francisco?
É-me indiferente. Porque a vontade politicamente correcta não é prática. Tanto me causa desconfiança um malvado como quem quer agradar a todos. Quem quer agradar a todos não é fiável.

Uma das suas batalhas é contra o que se convencionou chamar “politicamente correcto”. Como é que, no seu entender, este se manifesta?
Quero escrever com liberdade o que quero e o que me parece, não me deixando guiar por condicionamentos. A língua é sábia – a portuguesa e a espanhola são-no. Línguas nobres, antigas, latinas. São línguas de uma eficácia perfeita. Não aceito que me digam que não posso utilizar a língua porque posso ofender. No outro dia escrevi que o presidente Rajoy é um “estúpido autista” e os pais dos autistas vieram reclamar. Quando se escreve não se pode estar sempre a pensar que se pode ofender o pequeno colectivo. É preciso assumir que as línguas são flexíveis e que a questão não está nas palavras mas nas interpretações que se fazem delas. Tenho assumido esta posição no plano público.

Acha que vai ganhar essa batalha?
Não. É uma batalha perdida mas vou lutar até ao fim. Temos sempre medo e estamos a criminalizar o que é natural. Acho que é terrível e não tem solução.

"No outro dia escrevi que o presidente Rajoy 
é um “estúpido autista” e os pais dos autistas 
vieram reclamar. Quando se escreve não 
se pode estar sempre a pensar que 
se pode ofender o pequeno colectivo." 
 
Que batalhas é que, no seu entender, se vai ganhar então?
Sou um pessimista, como disse. Acho mesmo que a única solução é a cultura, a biblioteca. Os livros são ou solução ou consolo. Quando o mundo exterior não te agrada, quando é tudo ruído mediático ou confusão, a biblioteca ajuda a fazer-te compreender porque é que a realidade é como é. Estamos a criar gerações sem memória e sem cultura. Com planos de estudos iguais, em que não se premeia a excelência mas sim a mediocridade. Quando se é brilhante é preciso ocultar isso para não se ofender quem não o é. Os homens não são todos iguais. Há homens cultos e inteligentes, há homens de elites que abrem caminhos novos. Portugal era um país de elite. Abriu caminhos para outros. Como é que se pode dizer que um português do século XV é igual a um pirata anglo-saxónico do mesmo período? Fazem falta homens justos, cultos e educados , não canalhas.

Como é que têm corrido estes dias em Portugal?
Têm sido bons. Vir a Portugal não é vir ao estrangeiro. Estou em casa. Reconheço as gentes pelos costumes, pela forma de estar, pela fisionomia. É como quando um português vai a Espanha. Agora, é certo, Lisboa está muito mais turística.

O que pensa disso?
Acontece o mesmo em Espanha. Por um lado é bom porque traz dinheiro para a economia. Mas por outro é negativo. O Portugal que eu amo, elegante, sereno, senhorial, tradicional, das gentes humildes, está mais apagado. Lembro-me de vir cá e encontrar as gentes do Alentejo, pobres mas com uma dignidade e uma educação raras. Há dias vi uma série de turistas a tirar fotografias na Brasileira, junto à estátua de Fernando Pessoa. Pensei: não sabem quem é Pessoa mas é muito importante para eles tirar a foto. Alguém que ame verdadeiramente o poeta não se pode aproximar por causa dessa multidão que o desconhece.

Hoje ainda há lugar para homens bons?
Sim. Escrevi este livro para demonstrá-lo.
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Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.
Fonte:  http://observador.pt/especiais/entrevista-arturo-perez-reverte/

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