Contardo calligaris*
À força de ler e ouvir os que criticam nossos tempos, acabamos nos
convencendo de que somos hedonistas –aliás, vergonhosamente hedonistas.
Zygmunt Bauman, por exemplo, convenceu a muitos de seus leitores de que,
por causa do hedonismo, nossa liberdade seria feita de escolhas
risíveis e fúteis.
Tipo, você não gosta do programa? É só zapear. Você cansou de encontrar o
mesmo parceiro na cama a cada noite? Basta se separar. O romance que
você está lendo fica chato pela página 20? Deixe de ler e, se tiver
folheado o volume com cuidado, ainda vai dar para trocá-lo na livraria.
Nossa busca pelo prazer imediato nos impediria de saborear as coisas com
calma e ponderação. Será? E quais são as coisas que deveríamos saborear
com calma –programa chato, livro chato e casamento chato? É isso que
estamos perdendo por causa de nossa busca "desenfreada" pelo prazer?
O extraordinário não é que a gente possa zapear porque acha chato, mas é
que esse ato tão sensato (zapear contra o tédio) nos envergonhe e que a
gente se sinta culpado por isso. As escolhas feitas pelo prazer, que
deveriam ser facilmente justificáveis, são propriamente malvistas –pelo
homem da rua, por nós mesmos, pela administração da coisa pública, pelas
religiões (nem se fala), pela medicina que gere nossas vidas etc.
Alguns exemplos, ao acaso, da resistência ao prazer e do menosprezo que ele encontra:
1) Existe um antiviral que, tomado a cada dia, torna quase impossível a
contaminação pelo vírus da Aids. É um remédio indigesto, com possíveis
efeitos colaterais, mas é um bênção para quem só encontra prazer numa
sexualidade promíscua. Se for o seu caso, tente explicar isso ao
generalista médio, na hora de pedir a receita"¦
2) Existe há anos um teste de HIV pela saliva, com resultados em 20
minutos. O teste detecta os anticorpos, o que significa que não detecta
as infecções que aconteceram nas últimas semanas. Mesmo assim, ele
oferece uma extraordinária diminuição das chances de contaminação para
as pessoas cujas fantasias sexuais são incompatíveis com o sexo
"protegido". Ou seja, para quem a camisinha é incompatível com o prazer,
é possível encontrar alguém, testar-se, esperar 20 minutos e logo
transar com uma certa liberdade. Mas"¦ o teste, embora aprovado pela
Anvisa, não é vendido em farmácia.
3) Engraçado, aliás, que, desde os anos 1980, a campanha de prevenção da
Aids nunca tenha conseguido levar em conta as exigências do prazer,
mesmo quando elas poderiam ser parcialmente satisfeitas.
Por exemplo, ao longo dos anos 1980 (e mesmo 1990), nenhuma campanha
admitia que o sexo oral contaminava infinitamente menos do que o sexo
anal; queria-se proibir ou emborrachar tudo, sempre. Conclusão: as
políticas sanitaristas fracassaram por pedir frustrações impraticáveis.
São apenas pequenos exemplos do fato de que o prazer, para nós, nunca é
respeitável. Se no prédio da frente tem uma festa que impede você de
dormir, entendo seu ódio; nessa situação, eu já pensei em invocar as
sete pragas do Egito contra os festeiros.
Agora, o ódio sempre é maior quando se trata de uma festa. Se o mesmo
barulho fosse devido a um luto repentino com desespero e choros
coletivos, aí você aguentaria firme. Você acha lógico? Talvez seja, mas
só numa perspectiva em que a dor do outro merece nosso respeito, mas seu
prazer, não. Em suma, o prazer como razão de nossas ações é
envergonhado e culpado, porque ele nos parece mesquinho. E o prazer do
outro é tão desprezível quanto o meu.
Não pretendo ter convencido você. Mas me daria por satisfeito se, no
futuro, ao ler ou ouvir que seríamos "hedonistas", você se der o tempo
de duvidar. Afinal, como podemos ser hedonistas, se nossa cultura,
sistematicamente, despreza o prazer como causa possível de nossas
escolhas?
Uma velha piada conta que um papa insistia para que a irmã que se
ocupasse dele tivesse um seio avantajado. Os cardeais mais próximos
tentavam satisfazer esse pedido, o que não era fácil. Até que um dia um
deles perguntou a Sua Santidade: "Mas por quê?". E o papa respondeu
"Perché mi piace" (porque eu gosto).
Bem contada, juro que a piada ainda é engraçada. Mas o que nos faz rir
nela, qual é o escândalo? O escândalo não é o papa querer uma irmã com
seios grandes. O escândalo é o papa trazer como argumento o simples
prazer do que ele gosta.
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* Italiano, é psicanalista, doutor em
psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve
às quintas.
Foto: Mariza Dias Costa/Editoria de Arte/Folhapress
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/09/1813289-as-escolhas-feitas-pelo-prazer-sao-propriamente-malvinistas.shtml
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