Fraudes. Propinas para políticos. Manipulações.
Um estudo devastador sobre o sistema financeiro revela como,
por trás
dos anúncios cheios de pessoas felizes,
os bancos sugam a riqueza social
Resenha do artigo:
Overcharged: the high cost of high finance
de Gerald Epstein e Juan Antonio Montecino, The Roosevelt Institute, Juho de 2016
Overcharged: the high cost of high finance
de Gerald Epstein e Juan Antonio Montecino, The Roosevelt Institute, Juho de 2016
–
Às vezes precisamos de um espelho. Com o grau de
deformação ideológica dos argumentos quando se trata da realidade
brasileira, é bom dar uma olhada como todo o debate sobre o resgate do
sistema financeiro está se dando no resto do mundo. Não somos uma ilha, e
muito menos o nosso sistema financeiro, ainda que aqui algumas
deformações sejam muito maiores. Hoje já não podemos ignorar o sólido
acervo de pesquisas, que deslancharam após a crise de 2008, e que
mostram a que ponto o sistema financeiro se distanciou dos seus
objetivos iniciais de financiar o investimento e o crescimento
econômico. Aqui apresentamos a excelente pesquisa de Epstein e Montecino
sobre o sistema americano, organizando as ideias chave, e este espelho
gera um impressionante efeito de ver na imagem refletida a sombra dos
nossos dramas.
O estudo de Epstein e Montecino oferece uma visão
de conjunto do impacto econômico da intermediação financeira, tal como
funciona nos EUA. O sistema não só não fomenta a economia, como a drena.
O título, Cobrando demais: o alto custo da alta finança, já diz
tudo, e pela primeira vez temos aqui uma visão sistêmica e integrada do
quanto custa à economia americana uma máquina financeira que se
agigantou e se deformou radicalmente. Hoje não fomenta a economia, pelo
contrário, inibe-a, gerando mais custos do que estímulo produtivo. A
pesquisa faz parte de um conjunto de iniciativas do Roosevelt Institute,
que tem como economista chefe Joseph Stiglitz, prêmio “Nobel” de
economia, e que já foi economista chefe do governo Clinton e do Banco
Mundial.
Esta pesquisa tem muita importância para nós no
Brasil, pois o sistema financeiro internacional funciona aqui a pleno
vapor, e a cultura da intermediação financeira não varia muito entre a
City de Londres, Wall Street ou o sistema de usura que se implantou no
Brasil. Hoje existe uma cultura financeira global. No nosso caso, o
desajuste fica evidente quando constatamos que em 2015 o PIB recuou de
3,8%, enquanto no mesmo período o lucro declarado do Bradesco aumentou
em 25,9%, e o do Itaú aumentou em 30,2%. A máquina financeira está
vivendo às custas da economia real. Nosso sistema de intermediação
financeira não serve a economia, dela se serve. É produtividade líquida
negativa. Ajuda, e dá confiança às nossas pesquisas aqui no Brasil, esta
constatação lapidar do próprio Stiglitz: “Enquanto antes as finanças
constituíam um mecanismo para colocar dinheiro nas empresas, agora
funcionam para extrair dinheiro delas.”i
Há pessoas que têm dificuldade em imaginar um grande
banco internacional achacando os seus clientes, e imaginam que nos EUA
as coisas seriam sérias, quanto mais na Europa. É preciso aqui lembrar
algumas coisas óbvias. Por fraude com milhões de clientes, o Deutsche
Bank foi condenado em setembro de 2016, pela justiça americana, a uma
multa de 14 bilhões de dólares (uma vez e meia o orçamento anual do
Bolsa Família, que tirou 50 milhões de pessoas da miséria, só para dar
uma ordem de grandeza dos tamanhos das fraudes bancárias). É bom lembrar
que um banco tão sério como Citigroup já foi condenado a pagar US$ 12
bilhões (fechou por US$ 7 bilhões), Goldman Sachs está pagando $ 5,06
bilhões, JPMorgan Chase&Co está pagando US$ 13 bilhões, o Bank of
America US$ 16,7 bilhões. Os crimes são dos mais diversos tipos, desde
fraude nas informações aos clientes até falsificações dos mais diversos
tipos, depenando clientes, enganando o fisco, falsificando informações
sobre taxas de juros e semelhantes.ii
Todos ouviram falar da financeirização, mas poucos se
dão conta da profundidade da deformação generalizada dos processos
econômicos, sociais e ambientais que resultam da migração dos nossos
recursos do fomento econômico através de investimentos, para ganhos
improdutivos através de aplicações financeiras. Inclusive, os bancos e a
mídia chamam tudo de “investimento”, parece mais nobre do que aplicação
financeira ou especulação. A revista Economist até inventou a
expressão “speculative investors” e Stiglitz sente-se obrigado a se
referir a “productive invesments” para diferenciar. Mas não há como
escapar desta realidade simples: quando você compra papéis, eles podem
render, mas você não produziu nada. E abrir uma empresa, contratar
trabalhadores, produzir e pagar impostos é mais trabalhoso do que por
exemplo aplicar em papéis da dívida pública. O primeiro estimula a
economia, o segundo gera rendimentos sem contrapartida, e a partir de um
certo nível torna-se um peso morto sobre as atividades econômicas em
geral.
Voltando ao artigo de Epstein e Montecino, em termos de funcionalidade econômica os autores se referem a uma “spectacular failure”:
“Um sistema financeiro saudável é aquele que canaliza recursos
financeiros para investimento produtivo, ajuda as famílias a poupar para
poder financiar grandes despesas tais como educação superior e
aposentadorias, fornece produtos tais como seguros para ajudar a reduzir
riscos, cria suficiente quantidade de liquidez útil, gere um mecanismo
eficiente de pagamentos, e gera inovações financeiras para fazer todas
estas coisas úteis de forma mais barata e efetiva. Todas estas funções
são cruciais para uma economia de mercado estável e produtiva. Mas
depois de décadas de desregulação, o sistema financeiro atual dos EUA se
tornou um sistema altamente especulativo que falhou de maneira bastante
espetacular em realizar estas tarefas críticas.”(1)
Do lado das alternativas, é resgatar o sistema de
regulação, reestruturar o sistema para que sirva a economia e não dela
se sirva apenas, e gerar sistemas alternativos de intermediação
financeira para que as pessoas voltem a poder ter escolha: “Esses custos
excessivos das finanças podem ser reduzidos e o setor financeiro pode
de novo jogar um papel mais produtivo na sociedade. Para alcançá-lo,
precisamos de três enfoques complementares: melhorar a regulação
financeira, aproveitando o que a [lei] Dodd-Frank já conseguiu; uma
reestruturação do sistema financeiro para que sirva melhor as
necessidades das nossas comunidades, pequenos negócios, famílias, e
entidades públicas; e alternativas financeira públicas, tais como bancos
cooperativos e bancos especializados, para equilibrar o jogo.” (3)
Como foi se deformando o sistema financeiro, que
atualmente impõe enormes custos para a economia real, obrigada a
sustentar uma imensa superestrutura especulativa? “Mostramos como a
indústria de gestão de recursos (assets) cobra taxas excessivas e
traz retornos medíocres para as famílias que buscam poupar para a
aposentadoria; como empresas privadas de gestão de ações se apropriam de
níveis excessivos de pagamentos dos fundos de pensão e outros
investidores enquanto frequentemente penalizam os salários e
oportunidades de emprego dos trabalhadores nas empresas que compram;
como os fundos especulativos (hedge funds) apresentam mau
desempenho; e como emprestadores predatórios exploram algumas das
pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade. Olhando desta maneira desde
abaixo, podemos ver de forma mais clara como os níveis de excessos de
cobrança (overcharging) que identificamos no nível macro se organizam de maneira prática.” (3)
O resultado prático é que os trilhões de dólares
captados pelo sistema de intermediação financeira e os diversos fundos
representam em termos líquidos um dreno para a economia americana. Este
sistema, como no Brasil, representa uma produtividade negativa, e gera
ganhos líquidos sem contrapartida produtiva correspondente: “Assim, as
finanças têm operado nestes últimos anos um jogo de soma negativa. Isto
significa que nos custa mais do que um dólar transferir um dólar de
riqueza para os financistas – significativamente mais. Por isso, mesmo
que você pense que os nossos financistas merecem cada centavo que
conseguem, sairia muito mais barato simplesmente enviar-lhes um cheque
todo ano do que deixá-los continuar a tocar os negócios como sempre.”(4)
Bancos pequenos e médios nos EUA continuaram a desempenhar as suas atividades de commercial banking,
mas dez gigantes passaram a dominar o sistema financeiro,
concentrando-se em outros produtos, essencialmente especulativos. Este
grupo dominante, segundo a pesquisa, concentrou-se “em novos produtos e
práticas ligadas à crise financeira – inclusive securitização,
derivativos e comércio proprietário (proprietary trading), tudo
financiado por empréstimos de muito curto prazo.”(10) A oligopolização é
aqui central, apoiada não só na não-transparência dos produtos, como no
seu poder político de obter subsídios (o que, no Brasil, a taxa Selic
elevada). Trata-se “do poder monopolístico ou oligopolístico que as
instituições financeiras podiam exercer por meio de produtos financeiros
não transparentes, bem como da facilidade de acesso a volumes maciços
de capital por causa dos subsídios devidos à sua condição de ‘grandes
demais para quebrar’”.(19)
Segundo os autores, os numerosos bancos menores nos
EUA terminam sendo tributários destes gigantes: “Os grandes bancos de
Wall Street estão no epicentro do sistema financeiro. Como resultado,
praticamente todos os aspectos dominantes das finanças que discutimos
até aqui – hedge funds, ativos privados, créditos predatórios, mercado hipotecário e o chamado sistema de ‘bancos das sombras’ (shadow banking) – todos estão ligados até certo ponto com os grandes ‘core banks’.”
Por sua vez, estes grandes bancos passam a exercer um poder político
que torna qualquer reforma pouco viável: “No caso da reforma financeira,
o poder que o setor financeiro exerce sobre o processo político tem
sido uma força com a qual é difícil lidar.”(41)
Esta pirâmide de poder, tanto sobre o conjunto do
sistema financeiro, envolvendo até os pequenos bancos comerciais locais
ou regionais, como sobre o processo decisório político que deveria
permitir a regulação, permitiu a estruturação de uma máquina que extrai
recursos da economia de maneira desproporcional relativamente ao seu
aporte produtivo. “Precisamos enfatizar o fato que na nossa análise,
estamos estimando os custos líquidos (ênfase dos autores) do
nosso sistema financeiro: os custos que ultrapassam de longe o que um
sistema financeiro eficiente deveria custar à sociedade. As rentas
financeiras medem quanto a mais os clientes e pessoas que pagam impostos
têm de pagar aos banqueiros para ter direito aos serviços (benefícios)
que recebem. Os custos de má alocação medem os custos de termos um
crescimento econômico menor do que teríamos se as finanças tivessem uma
dimensão otimizada e funcionassem de maneira eficiente. Estes custos são
líquidos no sentido de que o cálculo reconhece que o sistema financeiro
cria benefícios significativos, mas que estes benefícios seriam maiores se
o sistema operasse em escala correta e de maneira correta. Finalmente,
os custos da crise financeira constituem um custo líquido no sentido de
que medem quanta produção foi perdida relativamente ao que seria
possível se não tivéssemos tido a crise financeira.”(14)
O conceito de custo líquido do sistema financeiro é
muito útil, pois envolve diretamente a questão da produtividade
sistêmica das finanças de um país. Para o Brasil, considerando os custos
da crise 2015/2016, da qual o sistema financeiro foi a causa principal,
podemos igualmente calcular o custo sistêmico. No caso americano, os
autores consideram que “precisamos incorporar os custos das crises
financeiras associadas com a especulação excessiva e as atividades
econômicas destrutivas que são agora bem compreendidas, no sentido de
terem sido chave na crise econômica recente.” (16) A diferença é que nos
EUA se reconhece as raízes da crise financeira de 2008, enquanto aqui
se atribui a crise ao ridículo déficit fiscal, de menos de 2% do PIB. O
rombo na realidade é criado pelo nível surrealista de juros sobre a
dívida pública, a taxa Selic, que só no ano de 2015 significou uma
transferência de 501 bilhões de reais, 9% do PIB, dos nossos impostos
para os grupos financeiros.iii
O conceito de renta financeira (financial rent)
é importante, e o próprio conceito de “renta”, diferente de renda, tem
de ser introduzido nas nossas análises no Brasil. O fato é que a “renta”
como forma de acesso aos recursos sem a contribuição produtiva
correspondente ajuda a entender o processo (no Brasil, curiosamente,
utilizamos a expressão “rentismo” mas não existe ainda o conceito de
“renta”). Em inglês se distingue claramente o mecanismo produtivo que
gera a renda (income) e a aplicação financeira que gera “renta” (rent).
Em francês é igualmente clara a diferença de “revenu” e “rente”,
respectivamente. Não há como entender por exemplo os trabalhos do
Piketty sem esta distinção. Segundo os autores, “no caso das finanças
modernas, as rentas vêm em duas formas básicas: uma é o pagamento
excessivo feito aos banqueiros – top traders, CEOs, engenheiros
financeiros e outros empregados de bancos e outras instituições
financeiras com altas remunerações; a outra forma são os lucros
excessivos, ou retornos muito acima dos retornos de longo prazo que são
distribuídos aos acionistas como resultado dos serviços financeiros
providenciados por uma empresa.” Os ganhos financeiros deste tipo
agigantam-se a partir dos anos 1990. (17, 19)
Os custos destas atividades rentistas que travam as
atividades econômicas em vez de promovê-las, têm de ser suportados pela
sociedade: “O custo das finanças para a sociedade não é apenas o
resultado de transferências de renda e riqueza da sociedade como um todo
para as finanças; há custos adicionais se a mesma finança mina a saúde
da economia para as famílias e os trabalhadores.”(22) Uma citação
interessante trazida pelos autores é a de James Tobin, já em 1984:
“Estamos jogando um volume cada vez maior dos nossos recursos, inclusive
a nata da nossa juventude, em atividades financeiras distantes da
produção de bens e serviços, em atividades que geram retornos privados
elevados sem proporção com a sua produtividade social.”
Tobin foi um dos primeiros a constatar esta
deformação sistêmica da intermediação financeira.(23) Tenho encontrado
esta citação em outros textos, pois é muito relevante, inclusive pelo
uso do conceito de “produtividade social”, ou seja, utilidade para a
economia e a sociedade em geral, e não apenas para o banco ou outro
grupo que desempenha uma atividade. O conceito de SROI – Social Return on Investment
– começa também a ser utilizado mais amplamente. No nível pessoal,
inclusive, muitos profissionais começam a se perguntar se,
independentemente de quanto ganham, a atividade que desempenham é
socialmente útil. E quando é claramente nociva, surgem as contradições e
as crises existenciais, como estudado por exemplo no excelente Swimming with Sharks, de Luyendijk, focando os altos funcionários da City de Londres.iv Não são aqui divagações filosóficas, as pessoas querem cada vez mais que os seus esforços façam sentido.
A realidade é que o desvio dos recursos das
atividades produtivas para ganhos especulativos trava o conjunto da
economia, mas a indignação fica restrita pela simples razão que o
sistema é extremamente opaco. Os autores aqui são conscientes desta
dificuldade, e aproveitam para mostrar que diversas pesquisas sobre os
sistemas financeiros convergem pra as mesmas conclusões: “Os sistemas
financeiros privados de maiores dimensões podem ser associados com
‘finanças especulativas’, trading em maior escala, e um setor
pouco associado ao fornecimento de crédito à ‘economia real’. Como
argumenta Stiglitz, estes sistemas financeiros podem se orientar para a
extração de recursos da economia real, e não para colocar mais recursos
na economia real (ver também Mason, 2015). Este tipo de sistema
financeiro pode muito bem se orientar para investimentos de curto prazo
(Haldane, 2011) e empregar o que William Lazonick chama de estratégia de
“desinvestir e distribuir” em vez de “reter e reinvestir”, o que
significa que mais recursos são extraídos das empresas não-financeiras.
Esta orientação deve também reduzir o crescimento da produtividade e o
investimento, e em consequência o crescimento econômico.”(23)
O texto de Mason mencionado, também excelente
leitura, constata que “as finanças já não são um instrumento para
colocar dinheiro em empresas produtivas, mas em vez disto para delas
tirar dinheiro.”(3) Segundo o autor, nos anos 1960 e 1970 cada dólar de
ganhos e crédito suplementares levava a um aumento de investimentos da
ordem de 40 cents. Desde os anos 1980 leva a um aumento de apenas 10 cents.
É uma mudança radical em termos de produtividade das aplicações
financeiras. Segundo Mason, “isto resulta de mudanças legais,
administrativas e estruturais que são a consequência da revolução dos
detentores de ações nos anos 1980. No modelo administrativo anterior,
mais dinheiro que entra numa empresa – por vendas ou por crédito –
tipicamente significava mais dinheiro colocado em investimento fixo. No
novo modelo dominado pelo rentismo, mais dinheiro que entra significa
mais dinheiro saindo para as mãos de detentores de ações sob forma de
dividendos e recompra de ações.”(Mason,1)v
Como os dividendos são pouco taxados pelo sistema tributário – o que
foi conseguido pela capacidade de pressão política – o círculo da
financeirização e da riqueza não produtiva se fecha.
O novo sistema de intermediação financeira gerou
também uma massa de advogados, conselheiros, contadores, gestores de
fundos e semelhantes, todos ávidos maximizar os retornos e os bônus
correspondentes. “Os serviços de gestão de riqueza cresceram de um
universo de 51 empresas administrando US$ 4 bilhões, em 1940, para mais
de US$63 trilhões em riqueza (assets) com mais de 11 mil
consultores e quase 10 mil fundos mútuos registrados com o SEC em 2014”.
(41) Para efeitos de comparação, lembremos que o PIB mundial de 2014 é
da ordem de US$ 75 trilhões. Esta massa de profissionais gerou por sua
vez um cluster importante de poder, com forte influência, em
particular, no conjunto da comunicação financeira na grande mídia, que
apresenta quase que exclusivamente a visão dos interesses dos grandes
grupos financeiros.
No nosso caso brasileiro não dispomos de estudos
correspondentes sobre a estrutura de intermediação e de poder político
que estes interesses geram, capaz de atropelar qualquer tentativa de
reduzir os seus lucros. Mas é evidente que quando o governo Dilma tentou
reduzir os juros absurdos (tanto sobre a dívida pública como para
pessoas jurídicas e pessoas físicas) em 2013, partiram para a guerra
total. O fato é que o mundo financeiro e os rentistas reagiram em bloco,
movimento por sua vez aproveitado por diversas esferas de oportunismo
político. O paralelo com os Estados Unidos é neste sentido interessante,
quando se viu os imensos recursos públicos que o governo transferiu
para os bancos a partir de 2008. Não é só aqui que o sistema financeiro
se tornou a força política maior.
Como foi que chegamos a este nível de deformação do
sistema financeiro, que já foi tão essencial para os processos
produtivos e hoje os trava? Os autores identificam cinco mecanismos:
“Como no caso da maior parte das finanças, as chaves para rentas
excessivas obtidas pelas empresas financeiras e traders são: 1) a opacidade, frequentemente criada de maneira deliberada, por meio de excesso de complexidade, falta de transparência (disclosure),
ou mais diretamente informação enganosa que é facilitada pelo frágil
marco regulatório; 2) elevada concentração do mercado dentro de linhas
específicas de negócios levando a que haja pouco competição; 3)
subsídios governamentais de vários tipos, inclusive resgates (bailouts),
impostos subsidiados, facilidade nas regras contábeis, e vantagens
legais criadas por arranjos legislativos, administrativos ou legais; 4)
retirada de provisões públicas que geram um mercado aberto para as
finanças e torna a população vulnerável a todos esses canais com
excessos de renda e de retornos; 5) regulamentação fiduciária fraca que
permite que floresçam conflitos de interesses.”(35)
A parte de baixo da sociedade é a que sustenta o maior choque desta reorganização:
“As famílias recebem informações falsas e caras por parte de conselheiros que têm um incentivo para enganar (mislead)
e que podem fazê-lo graças a um ambiente legal e regulatório
permissivo.” (36) Isto por sua vez gera o aprofundamento das
desigualdades: “Práticas e rendimentos financeiros têm contribuído muito
para a desigualdade de renda e de riqueza nos EUA nas recentes décadas.
Além disso, algumas práticas financeiras contribuem para a criação e
manutenção da pobreza. Em nenhum lugar estas conexões entre finanças,
desigualdade e pobreza são mais aparentes do que na provisão de serviços
bancários para os pobres e para famílias em dificuldades
financeiras.”(40) Aqui, o paralelo com os juros extorsivos nos
crediários e nos bancos no Brasil é evidente, sendo que no nosso caso,
com juros de três dígitos, as distorções são simplesmente muito mais
escandalosas.
Para os autores, a necessidade de uma profunda
reorganização do sistema financeiro torna-se óbvia: “De forma geral,
para enfrentar as questões aqui levantadas, referentes aos enormes
custos do nosso sistema financeiro corrente, precisamos de três
abordagens complementares: regulação financeira, reconstrução
financeira, e alternativas financeiras…Para atingir estes objetivos,
precisaremos provavelmente de uma nova lei Glass-Steagall para eliminar a
rede de segurança social de que gozam as atividades financeiras
altamente especulativas, limites mais estritos quanto à alavancagem e
tamanho dos bancos de forma a dividir (break up) as instituições
financeiras maiores e mais perigosas, e uma regulação mais rigorosa para
limitar quanto se paga por estas atividades de alto risco.”(43/43)
E temos a consequente reformulação dos objetivos do
sistema financeiro, para que volte a ser útil (e não mais prejudicial)
para a economia e para a sociedade: “Nosso sistema financeiro precisa
ser reestruturado de forma que sirva melhor as necessidades das nossas
comunidades, pequenos negócios, famílias, e entidades públicas, tais
como municípios e estados. Eliminar os subsídios dos bancos ‘grandes
demais para quebrar’ ajudará a abrir espaço para instituições
financeiras menores e mais orientadas para as necessidades das
comunidades; no entanto, é pouco provável que isto permita gerar um
número suficiente de instituições financeiras para apoiar as
necessidades das nossas comunidades. Como resultado, é provável que
necessitemos de um número maior de alternativas financeiras: bancos
públicos, bancos cooperativos, e bancos especializados tais como os green banks e bancos para infraestruturas”.(43)
Os avanços deste tipo de pesquisas nos Estados Unidos
reforçam a necessidade de procedermos ao estudo do fluxo financeiro
integrado no Brasil, buscando o resgate da função econômica da
intermediação financeira nas suas diversas dimensões.
–
i Stiglitz, Rewriting the Rules of the American Economy, pode ser encontrado na íntegra em http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2015/06/report-stiglitz.pdf
i Stiglitz, Rewriting the Rules of the American Economy, pode ser encontrado na íntegra em http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2015/06/report-stiglitz.pdf
ii O Guardian de 16 de setembro de 2016 traz um pequeno resumo, veja aqui ; no Financial Times
é assunto cotidiano, como por exemplo é o caso de manipulações
atingindo 2 milhões de clientes por parte do banco Wells Fargo,
noticiado na edição de 20/09/2016 do FT e reproduzido no Guardian da mesma data.
iii Ver o nosso estudo correspondente do sistema financeiro no Brasil, em Resgatando o potencial financeiro do país: http://dowbor.org/2016/08/ladislau-dowbor-resgatando-o-potencial-financeiro-do-pais-versao-atualizada-em-04082016-agosto-2016-47p.html/ .
iv Joris Luyendijk – Swimming with sharks – Guardian Books, London, 2015 http://www.theguardian.com/business/2015/sep/30/how-the-banks-ignored-lessons-of-crash
v J.W. Mason –Disgorge the Cash – Roosevelt Institute, 2015 – http://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2015/09/Disgorge-the-Cash.pdf
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* Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em
economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus
artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org
Fonte: http://outraspalavras.net/brasil/boa-noite-cinderella/24/09/2016
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