Elias Thomé Saliba*
Autor tem pleno domínio da intuição cômica
ao coletar material dos detritos do falar cotidiano
e das picuinhas dos
comportamentos
Luis Fernando Verissimo não é apenas o cronista mais
popular do Brasil. É também o campeão dos textos apócrifos na internet e
uma das maiores vítimas das atribuições indevidas neste milagroso
universo da multiplicação dos pães que é a web. Parece trivial, mas isto
já diz muito a respeito da sua extensa e variada produção, a qual,
apesar de ganhar a perenidade do livro, nasceu colada à destinação
imediata e efêmera da crônica e ao envelhecimento precoce das pautas
cotidianas. Verissimo ultrapassa o transitório não apenas porque suas
crônicas se transformam em livros, mas porque estabeleceu desde o início
um pacto humorístico com o leitor. Mais do que qualquer outro, o
público que se torna parte do pacto humorístico é aquele que percorre o
noticiário sério do jornal ou da revista e torna-se capaz de entender as
alusões, ironias e paródias de Verissimo e de seu humor fortemente
conectado com os eventos noticiados e, por isso, compreensível apenas
naquelas situações.
Há décadas, esgotamos a paciência em estabelecer um pacto no
cenário político nacional, mas parece, afinal, que o único pacto que
funciona nessas plagas é o humorístico: é preciso alguém que diga para o
leitor o que ele pressente, quer dizer, mas não consegue se expressar.
No limite, o leitor apropria-se indevidamente do nome do humorista para
postar aquilo que o faz rir. Verissimo tem o pleno domínio desta
intuição cômica, coletando-a dos detritos do falar cotidiano, das
picuinhas dos comportamentos de homens e mulheres, da confusão de vozes
sociais no País. Confusão de vozes que ele soube tão bem multiplicar em
seus inúmeros personagens: a Velhinha de Taubaté, a última no País a
acreditar nos governos; o Analista de Bagé, que mistura freudismo com
cafajestismo, e até mesmo as cobrinhas (nem sempre) anônimas desenhadas
nas tiras: Queromeu, o corrupião corrupto, as lesmas Flexa e Shirley ou
Durex, o adesista. Qual escritor sério descreveria um padre
completamente surdo que obriga os fiéis a confissões gritadas na igreja
diante da escandalizada plateia de beatas? Ou então, um brasileiro comum
que recebe, por e-mail, uma proposta do diabo para trocar sua alma por
um único desejo – e, após hesitar entre uma gostosona e a vitória do
Internacional no campeonato, acaba pedindo a transformação do Brasil num
país escandinavo?
Quem se atreveria a pintar um Gregor Samsa tupiniquim, que desperta
transformado em Kafka e consegue cavar uma pensão da Previdência Social
por abalo psíquico? Entre tantos exemplos, de achados cômicos e
citações literárias em modo rebaixadíssimo, a listagem seria infinita.
Mesmo quando escreve livros tidos como sérios, como Os Espiões ou Borges e os Orangotangos Eternos,
Verissimo não resiste à tentação de interpolar efeitos cômicos,
invertendo todos os cânones da ficção policial. Dele, quase que se
poderia dizer o que Umberto Eco escreveu sobre Achille Campanile: “é um
escritor apesar de ser humorista”. Quase. Porque, parodiando Eco,
arriscaríamos dizer que, apenas quando não faz rir, é que Verissimo não é
um grande escritor.
Atribuir indevidamente aforismos ou piadas a Verissimo na web é
sintomático porque faz parte do mesmo pacto humorístico. O leitor
diverte-se porque sente uma íntima afinidade – é quase como se ele mesmo
contasse aquilo, ou pelo menos pensasse, mas não quisesse revelar
publicamente. Afinal, ele não precisa, pois tem o humorista para
expressar o que ele quer, mas não pode. E não pode não apenas porque não
está no centro do picadeiro, lugar natural da galhofa nacional, mas
porque fora dela predomina o ordinário da vida. “Neste país, o sujeito
que faz rir é um benfeitor. E, se não temos um vampiro – estejam certos
–, é a piada que torna inviável qualquer Drácula brasileiro”, escreveu
Nelson Rodrigues. O paradoxo do pacto continua agindo porque é justo um
escritor de humor que consegue algum distanciamento crítico, que salva o
leitor da sua impotência em mudar aquele estado de coisas ou incita a
sua capacidade de indignar-se na direção – não da escuridão ou do
silêncio ressentido da nossa ética emocional –, mas daquele sorriso
divertido que é o riso da libertação. Afinal, a função do humor, do
melhor humor – já o disse Saul Steinberg – “é desnudar o homem para em
seguida perdoá-lo”.
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*ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DA USP, AUTOR DO LIVRO RAÍZES DO RISO E COORDENADOR DO BLOG HTTPS://HUMORHISTORIA.WORDPRESS.COM/
Especial para O Estado de S. Paulo
24 Setembro 2016
Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,verissimo-diz-o-que-o-leitor-quer-falar-mas-nao-consegue,10000077867
10 frases de Luis Fernando Verissimo
no novo livro 'Verissimas'
Leia algumas da pérolas tiradas do novo livro do escritor, que completa 80 anos em setembro
Luis Fernando Verissimo,
O Estado de S. Paulo
O Estado de S. Paulo
24 Setembro 2016
Abismo
"Se o mundo está correndo para o abismo, chegue para o lado e deixe ele passar."
Americanos
"É bom ser americano. Você ganha em dólar, não tem nenhuma
dificuldade para dizer o “th” em inglês e, o melhor de tudo, nunca
precisa crescer. "
B
"É a primeira letra de Bach, Beethoven, Brahms, Béla Bartók,
Brecht, Beckett, Borges e Bergman, mas também de Bigorrilho, o que
destrói qualquer tese."
Baleia
"A baleia é um mamífero que preferiu continuar no mar. Quer dizer, é uma sentimental."
Bebês
"Ao nascer, ninguém tem a cara de ninguém. Aliás, os dois ou três
dias depois do nascimento são os únicos dias da vida em que a nossa
cara é só nossa. "
Bundas
"Onde estão as bundas do carnaval, quando não é carnaval? Não parece razoável pensar que elas migram, como os pássaros."
Casamento
"O casamento foi a maneira que a humanidade encontrou de propagar a espécie sem causar falatório na vizinhança."
Classes
"O Brasil é formado por uma classe dominante e uma classe ludibriada."
Coletivo
"Sempre que ouço falar em “inconsciente coletivo” penso num ônibus desgovernado."
PT
"O PT é um partido que não apoia nem a si mesmo."
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