segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A santa e a bruxa: Madre Teresa e a 'primeira-dama do reacionarismo americano'

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No dia seguinte à canonização de Madre Teresa de Calcutá, morreu Phyllis Schlafly, expoente do conservadorismo americano; apesar de católica e carola, não 
leva chance de ser beatificada

Em menos de 24 horas, o mundo ganhou uma santa e perdeu uma bruxa. A santa, como sói acontecer com os santos, já havia morrido quando o Vaticano a canonizou, no domingo passado. Nasceu Anjeze Gouxhi Bojaxhiu, viveu e ganhou fama como Madre Teresa de Calcutá, e tornou-se, como esperado, a primeira Santa Teresa do milênio. Phyllis Schlafly, a bruxa, morreu no dia seguinte, aos 92 anos, cinco anos mais idosa que a madre ao deixar esta vida, em 1997. Apesar de católica e beata, Schlafy não leva a menor chance de ser canonizada. 

Pouco conhecida no Brasil, a “primeira-dama do movimento conservador americano”, penhor e flecha do retorno dos republicanos à Casa Branca com Ronald Reagan, na década de 1980, foi uma figura fascinante. O populismo de direita nunca teve missionária com tamanha estâmina e comparável presença em todos os meios de difusão. Os liberais, os progressistas, os democratas e, especialmente, as feministas, a execravam. Rica, alinhada, sempre adornada por um colar de pérolas, era a própria imagem da americana quatrocentona, aristocrática, demasiado fidalga para voar numa vassoura. Se necessitasse de um caldeirão para fazer mandingas, provavelmente encomendaria o seu à fábrica de panelas Le Creuset. 

Seus admiradores repudiavam tais maledicências. Donald Trump, cuja candidatura ela endossou seis meses atrás com o mesmo entusiasmo dedicado à fracassada campanha do reaça Barry Goldwater em 1964, chamou-a de “paladina das mulheres”, o que na certa horrorizou Hillary Clinton e milhões de americanas, vítimas diretas e indiretas das pias e misóginas diatribes da elegante senhora. Schlafly liderou ferozes cruzadas contra o aborto, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a homossexualidade (apesar de um de seus filho ser gay), o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a entrega da presidência do país a uma mulher. 

Outros, uma vez mais contrariando o milenar aforismo de que dos mortos só dizemos coisas boas (Shakespeare discordava: “Aos homens sobrevive o mal que fizeram”), malharam madame sem dó nem piedade nas redes sociais. A rainha da Branca de Neve teria levado menos bordoadas no Twitter e no Facebook. “Ela deve estar feliz porque foi enfim reunir-se a Satã”, tripudiou um internauta. 

A mais dinâmica e influente ativista de direita da América desde que as “Filhas da América” aposentaram os machados com os quais arrebentavam barris durante a Lei Seca, Schlafly foi uma William F. Buckley Jr. de tailleur. Montou do nada uma coalizão nacional que, antes mesmo de ganhar nome (“Eagle Forum”) e alvará, já convertera uma massa considerável de “velhinhas de tênis”, sua mais fiel base de apoio. 

Com frases do tipo “assédio sexual não é problema para moças virtuosas”, “aula de educação sexual equivale a um bazar para coletar doações para abortos”, “a bomba atômica foi um presente de Deus à América”, deixou no chinelo suas contemporâneas e, de certo modo, herdeiras Anita Bryant, Suzanne Venker, Ann Coulter e Michele Bachmann. 

Nas pegadas de Ayn Rand, o ogro mais graduado do conservadorismo americano, e Midge Decter, decana da intelectualidade republicana (ainda viva, rondando os 90), Schlafly adestrou sua belicosidade na trincheira anticomunista, nos anos 1950. Fez o jogo do senador Joe McCarthy, mas jamais lhe deu apoio em público, concentrando sua energia no combate ao feminismo e suas conquistas. Até com tortas de maçã tentou seduzir congressistas a votarem contra a emenda pela igualdade de direitos. Ao final de um debate, em Nova York, levou uma (não cozida por ela, claro) na cara.
Foto: REPRODUCAO
 

Embora fosse tão ou mais conservadora do que Schlafly, uma humilde mas inflexível pregadora contra o divórcio, o controle de natalidade e o aborto (a seu ver, a maior ameaça à paz mundial), Madre Teresa enfrentou menos reparos à imaculabilidade do seu trabalho do que talvez merecesse. Sua imagem de missionária caridosa e humanitária ficou um bocado arranhada depois que o escritor e jornalista britânico Christopher Hitchens (1949-2011) a denunciou como mentirosa, amiga de ditadores, hipócrita (combatia o divórcio, mas defendeu publicamente o de sua amiga Lady Di), e por lavagem de dinheiro. 

O cientista político nova-iorquino Michael Parenti, o antropólogo inglês Robin Fox, o médico indiano Aroup Chatterjee e o Conselho Mundial Hindu também questionaram a hagiolatria que em torno dela a mídia internacional – e até Woody Allen, através da personagem de Mia Farrow em Simplesmente Alice – ajudaram a consolidar. Criticaram a baixa qualidade dos serviços assistenciais e hospitalares patrocinados por ela, acusaram-na de empregar sua organização religiosa (Missionárias da Caridade) para, prioritariamente, converter pobres à beira da morte ao catolicismo. 

Nem a jornalista inglesa Anne Sebba, autora do respeitoso relato biográfico Madre Teresa: A Imagem e os Fatos (traduzido em 1998 pela Vozes, esgotado), a poupou de algumas estocadas. Revelou, por exemplo, que a madre não usava analgésicos eficazes e, ao utilizar remédios contra tuberculose sem monitoramento dos pacientes, muito contribuiu para agravar a doença e torná-la epidêmica. 

Hitchens foi o primeiro a jogar lama no burel da madre. Num artigo para o semanário The Nation, publicado em 1994, chamou-a de “demônio de Calcutá”, praticante de “um culto baseado na morte, no sofrimento e na submissão”, na “indulgência para os ricos e sacrifício e resignação para os pobres”. Dessa embaraçosa invectiva sairia, três anos depois, o livro maldosamente intitulado The Missionary Position (“A posição de missionário”), cuja conotação sexual não impediu que o autor fosse convidado pelo Vaticano para apresentar provas contra a beatificação de Madre Teresa. 

O que mais incomodava Hitchens era o desembaraço com que ela se relacionava com déspotas e bilionários da pior espécie. Condecorada no Haiti pelo sanguinário Duvalier, dele tornou-se amiga e propagandista. Depois de lavar US$1,25 milhão que o banqueiro Charles Keating roubara a milhares de modestos poupadores, tentou abrandar sua pena, alegando ser ele “amigo dos pobres”. Quando o promotor sugeriu que a madre primeiro devolvesse a grana doada por Keating, ela se fechou em copas. 

Se Hitchens atendeu ao convite do Vaticano, suas críticas não foram suficientes para sustar a beatificação de Madre Teresa e sua posterior canonização. Desde o último dia 4, ela é santa. Já Phyllis Schlafly não precisou morrer para virar bruxa.
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Texto de Sérgio Augusto,
O Estado de S.Paulo
10 Setembro 2016 
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,a-santa-e-a-bruxa-madre-teresa-e-a-primeira-dama-do-reacionarismo-americano,10000075157
Imagem da Sta. Teresa de Calcutá da internet

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