Paulo Ghiraldelli*
A pior coisa que um crítico pode fazer é falar da palavra crítica sem saber o que ela significa. Em se tratando de gente que diz ter cursado filosofia de se propõe a sair escrevendo por aí, isso começa a ficar incômodo. Mais atrapalha os professores que ajuda.
Crítica em filosofia não é “falar
contra” ou “falar mal”. Nem mesmo é ser adepto de movimentos sociais
reformistas ou revolucionários. Nos Estados Unidos, mesmo no âmbito do
senso comum, as coisas se passam bem diferenciadas nesse quesito. Quando
alguém faz observações ferinas contra o governo ou, como dizem lá, “a
respeito de Washington”, essa pessoa é tida como “politizada”, não a
chamam de “crítica”. Atores politizados e jovens politizados são, lá, o
que aqui alguns chamam de críticos. Crítico lá é o que faz a avaliação
de peças e obras de arte: é o crítico de cinema, crítico de arte etc.
Deveríamos manter isso em mente, pois também aqui essa situação já se
esboçou e, em certos meios acadêmicos, continua assim.
Ora, se a conversa nossa, sobre o que é
ser crítico, vem por meio de filósofos, então essa ideia do que é o
crítico não deveria ser confusa. Deveríamos levá-la a sério, e não criar
mais esteriótipo do que já existe quanto a isso. Parece que a febre de
colunismo de jornal é o sintoma da promoção da patologia da indistinção.
O que quero dizer é que com aspas ou sem aspas a palavra crítico não
está afinada com ser chato, ser invocado, ser a favor de mudanças de
costumes, ser intolerante ou ser alguém que leva cartazes esquisitos em
protesto. Um ativista social não necessariamente é um crítico, com ou
sem aspas. O filósofo profissional sabe disso. E quando se está na
filosofia, fazer uma caricatura para atacar a semântica alheia é um erro
crasso, e aceitar a semântica caricaturesca do outro para distorcer as
coisas é pior ainda. O jornalismo que faz isso, o midiagogo que continua
sua dança pançuda e burlesca deveria ao menos um dia na semana, parar
de tanto remelexo.
A crítica não deve ser menosprezada. No
campo linguagem culta ela é um atividade filosófica que tem toda uma
escola a seu favor. E muito do uso da palavra crítica ainda tem a ver
com o funcionamento da filosofia. Explico. A filosofia pode ser dividida
em terapêutica e crítica. A terapêutica dissolve problemas, a crítica
busca os fundamentos de teses. Não estou dizendo que são duas escolas
completamente excludentes. Mas, se são escolas, são, por isso mesmo,
linhas doutrinárias diferentes. Um filósofo que trabalha
terapeuticamente, como os estoicos fizeram ou como os pragmatistas
fazem, tem como missão mostrar que certos problemas podem ser narrados
ou mostrados como falsos problemas, são pseudoproblemas, e que não
deveríamos nos preocupar com eles. Já um filósofo que trabalha como
crítico busca entender os problemas levantados através da pergunta sobre
os fundamentos sobre os quais o problema se põe como problema, ou as
bases sobre as quais uma tese é uma tese – a escola de Kant, Hegel e
Marx, desde Descartes, é antes crítica que terapêutica. Há uma escola
wittgensteiniana que é puramente terapêutica. Marx deixou bem claro de
que lado estava ao falar da “crítica da economia política” como o
subtítulo ao seu livro O capital. O que queria mostrar, antes
de tudo, é que as teses de David Ricardo e Adam Smith, se investigadas
em seus fundamentos, cairiam por terra.
Quando começamos a ridicularizar a
palavra “crítica” de modo a dizer que quem a utiliza já a ridicularizou,
já a banalizou, temos de tomar cuidado para não estarmos simplesmente
reforçando essa banalização. Toda vez que vejo conservadores
ridicularizando os críticos, mesmo quando estes já se banalizaram,
percebo que esses conservadores querem não é corrigir o displasia
semântica, mas jogar areia nos olhos de todos. Por isso mesmo, todo
texto desse tipo, invariavelmente, quer se fazer de engraçadinho e
termina com piadinhas que, no fundo, revelam de fato a intenção do
autor. A intenção é a de ser o crítico do crítico e, nisso, ao não
explicar o que é crítica, acaba por se tornar o palhaço, mas sem o
picadeiro daquele que critica.
Aliás, cá entre nós, cansei um pouco de
escutar os famigerados críticos dos críticos falarem sempre, como uma
oração noturna, que os outros não estudam, que não sabem nada, que eles
são os honestos intelectualmente. Quem toda hora precisa afirmar isso,
parece estar se escondendo de alguma coisa, talvez de sua fraqueza
intelectual. Intelectuais deveriam ser obrigados, uma vez na vida, a
prestar um concurso público, um exame nacional feito pelo estado, para
realmente nós vermos se não está rebolando como farsante. Não é o
suficiente, claro, mas está se fazendo necessário (*).
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* Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 05/09/2016
Os idólatras da meritocracia deveriam
não fugir de concursos públicos. Nos Estados Unidos todos os que tiram
mestrado são ranqueados por exames nacionais. E suas notas são exibidas.
Não seria o caso de começarmos a fazer isso no Brasil? Tirou o diploma
de mestre em história ou filosofia ou farmácia etc., tem de fazer um
exame nacional, mesmo que for para trabalhar na iniciativa privada. Não
precisa ser um ranqueamento definitivo, mas alguma coisa que pudesse
botar os que falam que estudam, e mentem, para realmente estudar.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/o-que-e-ser-critico.html
Tingindo suas palavras de interesses políticos”