terça-feira, 6 de setembro de 2016

O que é ser crítico?

Paulo Ghiraldelli*
 critico

A pior coisa que um crítico pode fazer é falar da palavra crítica sem saber o que ela significa. Em se tratando de gente que diz ter cursado filosofia de se propõe a sair escrevendo por aí, isso começa a ficar incômodo. Mais atrapalha os professores que ajuda.

Crítica em filosofia não é “falar contra” ou “falar mal”. Nem mesmo é ser adepto de movimentos sociais reformistas ou revolucionários. Nos Estados Unidos, mesmo no âmbito do senso comum, as coisas se passam bem diferenciadas nesse quesito. Quando alguém faz observações ferinas contra o governo ou, como dizem lá, “a respeito de Washington”, essa pessoa é tida como “politizada”, não a chamam de “crítica”. Atores politizados e jovens politizados são, lá, o que aqui alguns chamam de críticos. Crítico lá é o que faz a avaliação de peças e obras de arte: é o crítico de cinema, crítico de arte etc. Deveríamos manter isso em mente, pois também aqui essa situação já se esboçou e, em certos meios acadêmicos, continua assim.

Ora, se a conversa nossa, sobre o que é ser crítico, vem por meio de filósofos, então essa ideia do que é o crítico não deveria ser confusa. Deveríamos levá-la a sério, e não criar mais esteriótipo do que já existe quanto a isso. Parece que a febre de colunismo de jornal é o sintoma da promoção da patologia da indistinção.

O que quero dizer é que com aspas ou sem aspas a palavra crítico não está afinada com ser chato, ser invocado, ser a favor de mudanças de costumes, ser intolerante ou ser alguém que leva cartazes esquisitos em protesto. Um ativista social não necessariamente é um crítico, com ou sem aspas. O filósofo profissional sabe disso. E quando se está na filosofia, fazer uma caricatura para atacar a semântica alheia é um erro crasso, e aceitar a semântica caricaturesca do outro para distorcer as coisas é pior ainda. O jornalismo que faz isso, o midiagogo que continua sua dança pançuda e burlesca deveria ao menos um dia na semana, parar de tanto remelexo.

A crítica não deve ser menosprezada. No campo linguagem culta ela é um atividade filosófica que tem toda uma escola a seu favor. E muito do uso da palavra crítica ainda tem a ver com o funcionamento da filosofia. Explico. A filosofia pode ser dividida em terapêutica e crítica. A terapêutica dissolve problemas, a crítica busca os fundamentos de teses. Não estou dizendo que são duas escolas completamente excludentes. Mas, se são escolas, são, por isso mesmo, linhas doutrinárias diferentes. Um filósofo que trabalha terapeuticamente, como os estoicos fizeram ou como os pragmatistas fazem, tem como missão mostrar que certos problemas podem ser narrados ou mostrados como falsos problemas, são pseudoproblemas, e que não deveríamos nos preocupar com eles. Já um filósofo que trabalha como crítico busca entender os problemas levantados através da pergunta sobre os fundamentos sobre os quais o problema se põe como problema, ou as bases sobre as quais uma tese é uma tese – a escola de Kant, Hegel e Marx, desde Descartes, é antes crítica que terapêutica. Há uma escola wittgensteiniana que é puramente terapêutica. Marx deixou bem claro de que lado estava ao falar da “crítica da economia política” como o subtítulo ao seu livro O capital. O que queria mostrar, antes de tudo, é que as teses de David Ricardo e Adam Smith, se investigadas em seus fundamentos, cairiam por terra.

Quando começamos a ridicularizar a palavra “crítica” de modo a dizer que quem a utiliza já a ridicularizou, já a banalizou, temos de tomar cuidado para não estarmos simplesmente reforçando essa banalização. Toda vez que vejo conservadores ridicularizando os críticos, mesmo quando estes já se banalizaram, percebo que esses conservadores querem não é corrigir o displasia semântica, mas jogar areia nos olhos de todos.  Por isso mesmo, todo texto desse tipo, invariavelmente, quer se fazer de engraçadinho e termina com piadinhas que, no fundo, revelam de fato a intenção do autor. A intenção é a de ser o crítico do crítico e, nisso, ao não explicar o que é crítica, acaba por se tornar o palhaço, mas sem o picadeiro daquele que critica.

Aliás, cá entre nós, cansei um pouco de escutar os famigerados críticos dos críticos falarem sempre, como uma oração noturna, que os outros não estudam, que não sabem nada, que eles são os honestos intelectualmente. Quem toda hora precisa afirmar isso, parece estar se escondendo de alguma coisa, talvez de sua fraqueza intelectual. Intelectuais deveriam ser obrigados, uma vez na vida, a prestar um concurso público, um exame nacional feito pelo estado, para realmente nós vermos se não está rebolando como farsante. Não é o suficiente, claro, mas está se fazendo necessário (*).

Uma música muito ouvida na minha juventude, quando o ano 2000 ainda era “o futuro”, predizia perguntando e respondendo:
“E onde estão agora os filósofos críticos?
Tingindo suas palavras de interesses políticos”
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* Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 05/09/2016
Os idólatras da meritocracia deveriam não fugir de concursos públicos. Nos Estados Unidos todos os que tiram mestrado são ranqueados por exames nacionais. E suas notas são exibidas. Não seria o caso de começarmos a fazer isso no Brasil? Tirou o diploma de mestre em história ou filosofia ou farmácia etc., tem de fazer um exame nacional, mesmo que for para trabalhar na iniciativa privada. Não precisa ser um ranqueamento definitivo, mas alguma coisa que pudesse botar os que falam que estudam, e mentem, para realmente estudar.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/o-que-e-ser-critico.html 

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