segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O afastamento do mundo e a busca da solidão resvalam em valores positivos

Luiz Felipe Pondé*




"Quando analisamos o comportamento de luxo em propaganda, a busca de isolamento e solidão, e, portanto, um certo "desprezo" pelas redes sociais e pelo mundo, sempre aparece como índice de elegância."

Quando você estiver lendo esta coluna estarei nalgum lugar dos Cárpatos, quase plenamente desconectado do mundo. Desde que conheci a Romênia, a Transilvânia e a cadeia de montanhas que a rasga de ponta a ponta, os Cárpatos, me apaixonei pelo país.

Seu povo, seu cenário, seu isolamento por centenas de anos, sua agonia com os comunistas, seu sofrimento ancestral sob o jugo dos turcos otomanos. País de mistérios e crenças sobrenaturais, a Romênia é mesmo um lugar de beleza ainda não devastada pelos bárbaros em férias.

Lugar ideal para quem quiser experimentar um pouco de distanciamento da vida imediata e corrida de sempre, cercado de construções medievais quase intocadas, os Cárpatos propiciam muito daquele tipo de paz que muitos buscam, mas poucos encontram.

A solidão e o isolamento é tema ancestral na espiritualidade. No cristianismo, por volta do século 2, já temos indícios claros de homens e mulheres que buscavam o isolamento em montanhas e desertos a fim de lá enfrentarem seus demônios na busca de Deus. Esses homens e mulheres ficaram conhecidos como "monachoi", os monges do deserto.

Apesar de sermos uma espécie social e gregária, a ideia de que a solidão "cura" de algum modo é persistente ao longo dos milênios, associada ou não a conteúdos religiosos de fato. Hoje em dia, nas grandes cidades, milhares de pessoas optam por viver sozinhas, porque, simplesmente, a vida "em conjunto" exaure suas forças.

Imersos numa rede infernal de conexões, muitos de nós identificam a "recusa" do celular e das redes sociais como indício de autenticidade. Em que pese o alto índice de modismo presente em tudo que existe num mundo como o nosso -em que o marketing, passo a passo, se torna a "ciência primeira", como a ontologia (ciência do ser) era pra Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), e, portanto, nada seja autêntico, na medida em que existe uma contradição profunda entre marketing e autenticidade-, a busca de "desconexão" é verdadeira em muitos casos, devido ao cansaço que sentimos em ficarmos ligados 24 horas, sete dias por semana ("twenty four seven", como dizem os americanos).

Quando analisamos o comportamento de luxo em propaganda, a busca de isolamento e solidão, e, portanto, um certo "desprezo" pelas redes sociais e pelo mundo, sempre aparece como índice de elegância. Por que o afastamento do mundo, um certo desprezo por ele, a busca da solidão, sempre resvala num valor positivo de algum modo?

As épocas são distintas, os problemas podem mudar, mas a ideia de que o mundo engana atravessa os séculos. Os exemplos são muitos, dos monges nas mais variadas religiões aos ativistas do Global Strike (proposta de desconexão das redes por alguns minutos e o compartilhamento do relato do que se fez nesses instantes de desconexão), passando pelo isolamento romântico, todos se cansam em algum momento.

Entre tantos exemplos, apontaria o estoicismo como um dos casos mais bem argumentados a favor do engano do mundo e do valor positivo da "fuga mundi".

O estoicismo é uma filosofia que floresceu na Grécia por volta do século 3 a.C. e chegou a Roma, tendo o imperador Marco Aurélio (121 d.C.-180 d.C.) como um dos seus maiores luminares. A ética estoica buscava a consciência de que tudo na vida é efêmero e enganoso, quando negamos essa mesma efemeridade. Permanente apenas o logos, esse princípio divino, para muitos, materializado na natureza ou no cosmo. O estoico buscava fugir da cidade e viver próximo à natureza porque esta não engana, enquanto aquela abriga a mentira, a vaidade, o culto ao vazio.

"Tudo está morrendo, menos o logos presente na natureza", isso aprendemos ao convivermos com a natureza. A "pronoia", a "providência" que tudo faz acontecer e tudo ordena, nos ensina que a humildade diante do cosmo é a forma sábia de viver. A arrogância da crença em si mesmo, a vaidade da técnica, a ilusão do social, são formas enganosas, que a prática da solidão combateria.

Num mundo do sucesso e do glamour como o nosso, nunca será pouco buscar a fuga deste mesmo mundo.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.
 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/09/1816756-o-afastamento-do-mundo-e-a-busca-da-solidao-resvalam-em-valores-positivos.shtml
Foto: Ricardo Cammarota/Folhapress

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