Ivana Bentes*
"O sistema político funciona na base do lobby e da
concentração de poder econômico contaminando o ambiente parlamentar. Por
isso o moralismo anticorrupção é hipócrita. O que tem que fazer é uma
reforma politica para neutralizar ou diminuir
a corrupção estruturante
do sistema"
Mas então era para isso que os corruptos de colarinho branco se
arriscaram tanto? A pergunta ecoa diante da imagem de um vaso sanitário
polonês encontrado na casa do ex-governador Sérgio Cabral, preso em Bangu,
que fornece água em três temperaturas e cujo assento também pode ser
aquecido. Luxo demais para necessidades literalmente tão básicas!
As imagens do vaso sanitário high tech produziram revolta e
comentários cômicos nos portais e redes e vem se juntar a outros signos
de status, estilo e ambições dos ricos, novos ricos e
aspirantes ao “clube” social brasileiro – um “quem é quem” contemporâneo
que vem migrando da coluna social para as páginas político-policiais.
A pergunta não comporta uma resposta reducionista e nem ingênua. Mas o que está em jogo vai do estilo de vida do “corrupto ostentação”
até a névoa que cobre a corrupção estruturante da própria democracia no
seu atual estágio, onde o que está em jogo na mídia é sempre “a
corrupção dos outros”, dos inimigos políticos, e não o modus operandi e
estrutural da corrupção.
Brotam nessas crônicas midiáticas sobre a corrupção toda uma
“literatura” descritiva e uma sociologia a quente, em um país de extrema
desigualdade, em que a riqueza sempre foi vista, de
forma popular como bênção dos deuses ou “merecimento. Só muito
recentemente podemos ver a melhoria de vida de um contingente por
redistribuição de renda, programas sociais e educação, contrastando com o
acúmulo de riquezas “do berço”, vistas hoje com suspeição, apropriação indevida do bem comum, rapina de poucos da riqueza dos muitos.
Uma justa revolta diante da “corrupção ostentação” que a mídia sabe
explorar de forma folhetinesca, sempre “fulanizando” ao invés de mostrar
sua cara e forma estruturante.
Foram inúmeras as matérias sobre a joia de preço estratosférico dada por Sérgio Cabral a esposa como presente de aniversário: um anel de 800 mil reais pago pelo empresário Fernando Cavendish em troca de benefícios para sua empreiteira. Negócio desfeito, o anel milionário foi devolvido por Cabral, em um conto político-corporativo em que a “troca de favores” terminou em delação e prisão.
Esses contos pouco edificantes, com traições e delações premiadas (Cavendish
faz o relato da sua prisão domiciliar), trazem também as grifes,
valores e detalhes de uma relação que já suspeitávamos de absoluta
intimidade e não separação entre os negócios públicos e a vida privada e
o gosto das nossas elites, que formam um único e só sistema.
Crédito ou débito? Eis a questão!
O dinheiro público, financiando uma rotina de luxos,
espanta também pela “pobreza” de imaginário. Cartão de crédito, espelho
meu, diz-me o que compram os muito mais ricos do que eu!
E o que revelam os registros dos gastos nos cartões de créditos de Cláudia Criz, mulher de Eduardo Cunha são 7,7 mil euros na loja da Chanel, em Paris, de US$ 4,4 mil na Prada, em Roma, de US$ 2,2 mil na Victoria’s Secret, de Miami. O consumo de luxo
como forma de “distinção” aumentando o capital social e as relações
sociais: casamentos, amizades, alianças entre pares que circulam e se
concentram no “clube”.
Os “bens de luxo” que pululam nas operações anticorrupção
revelam ainda a forma como uma parcela dos ricos e novos ricos
brasileiros tentam comprar “capital cultural” e social por meio do
consumo de joias, vinhos, roupas, viagens, uma finesse prêt-à-porter com
episódio de “mau gosto”, “cafonice”, exageros, na sua lógica.
É que os que roubam milhões utilizam parte do seu tempo para comprar
capital cultural, bens, e experiências de distinção para as quais lhes
faltam tempo para se dedicar e mesmo para usufruir o resultado do butim.
O luxo serve a dois fins pelo menos: de lavagem cultural/comportamental e a rapina do comum. As propinas recebidas por Eduardo Cunha seguiam esses dois caminhos de lavagem de dinheiro, segundo investigadores da Lava Jato: “ocultação em contas no exterior em nome da mulher Cláudia Cruz” ou “a conversão do dinheiro público em bens de luxo”, o “dinheiro público foi convertido em sapatos e roupas de grifes”.
Mas os novos ricos buscam algo para além das mercadorias de luxo e
adentram o consumo cultural em busca da distinção. Afinal não se pode
ser confundido com um rico deseducado e bronco! O espólio do
ex-governador Sérgio Cabral revela seus arroubos de canonização pela “arte” com dois retratos do polêmico Romero Brito, cultuado pintor brasileiro de sucesso em Miami, uma espécie de Paulo Coelho das artes plásticas que pinta as celebridades do mundo com seu estilo “inconfundível”.
Mimetizando o retratismo das cortes, vemos nos quadros um Sérgio Cabral pintado de forma multicolorida por Romero Brito, com uma bandeira do Brasil em forma de coração no rosto! Enquanto sua mulher, Adriana Ancelmo,
é retratada com cabelo lilás e uma boca vermelha sorridente. Para cada
grupo social, um retratista oficial ao gosto de cada “corte”.
Eu vendo a vista!
Joias, viagens, retratismo e, fundamental, o lugar e endereço onde se mora. No mais recente escândalo da República de Temer vimos o ex-ministro Geddel Vieira perseguindo o sonho da “Minha cobertura, minha vida” em um empreendimento de luxo na orla de Salvador. Mesmo que para isso tivesse que passar por cima do embargo da obra do edifício de 24 andares pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional) do Ministério da Cultura.
O Edifício “La Vue”, como vários
outros com nome em francês ou inglês, não deixam dúvida do desejo de
nobreza e exclusividade (depois que um publicitário criou o “Santander Van Gogh”
tudo é possível!). O empreendimento se apresenta como esse “sonho do
alto” que aparta o morador das coberturas de luxo do cidadão comum:
“cobertura com piscina e elevador privativo, deck molhado, quadra,
espaço gourmet, fitness com vista para o mar, spa, salas de massagem,
sauna e jogos, brinquedoteca, bar”. Uma infinidade de signos de um
estilo de vida vendido pelas imobiliárias para os que desejam se
distinguir.
Um dos filmes mais significativos sobre esse imaginário apartado das coberturas se chama “Um Lugar ao Sol”, de Gabriel Mascaro, de 2010. Um documentário sobre os proprietários e moradores de coberturas no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo
que falam sobre essa necessidade de “não ouvir o barulho das panelas
que vem da cozinha”, da satisfação de “olhar de cima”, esse sentir se
bem se vendo como privilegiado e “a parte”. A busca a todo custo por uma
marca de distinção.
O caso Geddel, e sua tentativa de colocar os interesses pessoais acima do interesse público, produziu um escândalo que derrubou o próprio Geddel, o ex- Ministro da Cultura Marcelo Calero e ameaça o presidente usurpador Michel Temer.
A operação, com pressão direta, telefonemas, conchavos, para liberar a
obra embargada explicitam o objetivo das elites do dinheiro e da
política, de se apropriarem do Estado para fins pessoais ou de seus
grupos e como consideram “ninharia”, corriqueiro e natural esse
comportamento predador.
Não se trata de uma “pequena corrupção”. Toda a orla brasileira está
sob ataque de políticos e empreiteiras que tentam burlar pedidos de
tombamento pelos órgãos de defesa do patrimônio histórico e imaterial. O
Cais Estelita, no Recife, também aguarda posicionamento do IPHAN em defesa do patrimônio e da cidade e de seus habitantes ou beneficiando o empreendimento do “Novo Recife”.
Um caso que produziu uma hiper mobilização de movimentos sociais e
culturais, contra a especulação imobiliária e formas de resistência de
novo tipo, atos, filmes, vídeos.
“Vendo a Vista” poderia ser um anúncio dos empreendimentos que vendem
a paisagem brasileira, vendem commons, bens comuns, passando por cima
do interesse público e privatizando o Estado se for preciso. São as
mesmas empreiteiras que financiam as campanhas políticas.
Fato é que essa elite econômica e os novos ricos não possuem um
projeto de sociedade para além da rapina de curto prazo, amealhar bens e
riquezas, partilhar um estilo de vida que se diferencia da “ralé” e da classe média
por pequenos e grandes privilégios. Esse imaginário de poder está tão
arraigado na cultura que esse desejo de distinção, nobreza faz parte de
toda uma pedagogia de classes sociais que atinge da elite endinheirada a
classe média e as classes trabalhadoras que ascenderam socialmente.
Os pobre-stars
Durante décadas as novelas, o noticiário sobre o fabuloso Eike Batista e sua princesa de coleira (a atriz Luma de Oliveira), ou agora o casal Michel Temer e a primeira dama “bela, recatada e do lar”, Marcela Temer,
foram apresentados como donos de estilos de vida “invejáveis”, casais
paradigmáticos, de modos de ser e estar de uma elite do dinheiro. Até
que caiam em desgraça, o que é cada vez mais comum.
A revista Caras (com seus ensaios fotográficos em
castelos e ilhas, chamando filhos de “herdeiros” e namorados de
“eleitos”) ensinaram o que é ser “de elite” no Brasil das jacuzzis, dos
carros importados e mil marcas e logos. Ensinaram como essa elite estava
em um outro lugar, patamar e classe, inatingível. E que era melhor aos
pobres “porem-se no seu devido lugar” e aceitarem sua dominação
econômica e cultural.
Mas essa pedagogia só deu certo parcialmente. Os pobres, ex-pobres, a classe média, a classe C
resolveram (do seu modo) “agregar valor ao camarote”, as suas
existências, ao puxadinho, a laje, etc. O funk ostentação foi uma uma
das formas de expressões do que as elites chamam de “ideias fora do
lugar” (como o rolezinho e outras manifestações dos nossos “pobres
stars” que embaralharam os códigos.
As culturas das periferias produziram o seu
imaginário ostentação, hoje em baixa com a crise econômica, mas fruto de
um trabalhador e de uma “ralé” que se viu com a possibilidade de
mobilidade social. Sonhar, ostentar! Os clipes e vídeos do funk
trouxeram signos de uma fartura e excesso que mesmo imaginária (castelos
e paisagens nevadas! Grana para o alto), produziram um deslocamento e
curtição em cima do imaginário dos “ricos”, que incomodou profundamente.
Pois a ostentação dos jovens, dos pobres, das popozudas, explicita
não apenas o desejo de entrar no mundo normatizado do consumo, mas o que
é realmente imperdoável, explodiu o lugar de “distinção”, racista e
classista, e o lugar que lhes foi destinado pelas elites.
Essa foi uma forma de “politizar” a cultura do consumo. Os pobres que
ascenderam socialmente no Brasil nas últimas décadas afirmaram um novo
imaginário: o afropunk, o orgulho da favela, as mil modas e colorações
do cabelo, linguagens, música próprias, uma cultura de resistência,
novos movimentos urbanos, para além de terem incorporado o ideário das
elites e da direita.
A questão é que vimos, com a crise econômica, com os erros políticos
da esquerda no governo, com a redução das conquistas sociais ao consumo,
com o golpe jurídico-midiático, se forjar um consenso sobre a “corrupção
dos outros”, com o crescimento de uma gigantesca base social de classe
média ressentida com a ascensão social dos pobres “fora de lugar”.
Democracia em tensão
A classe média brasileira abraçou o discurso da
mídia da “corrupção dos outros”, a corrupção seletiva dos inimigos e se
se emponderou de forma histérica com esse neo-moralismo seletivo. A
corrupção não é o desvio das regras das instituições, mas seu modo de
funcionamento. O sistema representativo atual é corrupto (e os partidos
atuam dentro dele e o atravessam).
Como retomar o debate da corrupção pelas esquerdas? De forma
estruturante? Impossível acabar com a corrupção sem acabar
definitivamente com o financiamento empresarial das campanhas políticas
ou anistiando o “caixa dois” Não será um golpe, ou um passe de mágica
narrativa que vai livrar o sistema político e corporativo, o sistema
midiático, as estruturas religiosas do ônus da privatização e predação
do Estado. Será um processo.
A fulanização da corrupção tira o foco do sistema. O obscurantismo no
Brasil tem nome e sobrenome: a bancada ruralista, a bancada
fundamentalista, o lobby das empresas de comunicação e do agronegócio e outras forças arcaicas de especulação contra a vida e contra as liberdades.
É com base no lobby e no poder econômico das corporações e igrejas
que se corrompe o ambiente parlamentar que se sacrifica e destrói o meio
ambiente, as culturas, territórios e cosmovisão indígenas, se mata a
juventude negra, se atenta contra a saúde da população, contra direitos e
liberdades.
O sistema político funciona na base do lobby e da concentração de
poder econômico contaminando o ambiente parlamentar. Por isso o
moralismo anticorrupção é hipócrita. O que tem que fazer é uma reforma
politica para neutralizar ou diminuir a corrupção estruturante do
sistema.
Jessé Souza chama atenção para o rentismo
e os juros altos como uma das maiores formas de concentração e
expropriação de renda e riqueza consentidas, junto com a evasão de
recursos para o exterior. Operações de corrupção legalizadas que não
produzem escândalo e nem manchetes na mídia.
Isso é como o sistema funciona, o sistema politico e econômico atual é
corrupto na sua lógica de funcionamento. Por isso tem que ter reforma
política e formação política constante.
O crime no Brasil que foi punido com o golpe não foi contra a corrupção
foi contra a entrada dos pobres no jogo democrático, como força
politica, através dos programas sociais e entrada nas universidades.
Isso as elites não vão perdoar tão cedo! O golpe jurídico midiático foi
dado contra essa mobilidade subjetiva para recolocar em seu lugar as
forças retrógradas e conservadoras. Os retrocessos hoje em curso não são
o erro de um partido simplesmente e muito menos de um governo. São um
processo de restauração de uma elite.
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* Ivana Bentes, professora
e pesquisadora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), ensaísta, curadora e atuante na área de comunicação e
cultura, ex-diretora da Escola de Comunicação da UFRJ de 2006 a 2013 e
Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural no Ministério da Cultura,
de 2015 a 2016, em artigo publicado por revista Cult, novembro de 2016.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/563022-a-corrupcao-e-uma-estetica
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