Matheus Pichonelli*
Garoto sentado nas arquibancadas durante homenagem à Chapecoense: tragédia deixou milhões de feridos
A América Latina ficou mais órfã nesta semana. Na dor nos reconhecemos entre iguais.
Meu avô construiu durante anos o andor da procissão de Nossa Senhora Aparecida em nossa cidade.
Penso nele, na imagem e nos fieis, que lotavam a praça em volta da
igreja, todo dia 12 de Outubro. Mesmo quando não estou, fisicamente, lá.
Voltar àquele lugar, mesmo na memória, é uma forma de voltar a uma época em que eu sabia a quem dedicar meus pedidos e angústias.
Na tradição cristã, Maria é quem intercede pelo milagre. É ela quem pede ao filho, Jesus, que providencie mais vinho aos convidados, embora só tivesse água nos barris – daí a expressão “transformar a água em vinho”.
Encontrada por pescadores em um rio de Santo Antonio de Guaratinguetá, no século XVIII, a imagem da santa negra se tornou o rosto – e a padroeira – de um Brasil escravizado.
O que eu não sabia, até pouco tempo, é que, em muitos países da América Latina, populações locais relatam aparições e manifestações similares às que celebramos por aqui.
Essas histórias foram contadas no documentário “Marias”, que estreou recentemente no Brasil. No filme, a diretora Joana Mariani reúne uma série de relatos de devotos que de alguma forma colocam a santa como um elemento de mobilização comum entre os povos latinos. São muitas as histórias, mas todas trazem um ponto de resistência que até mesmo a Igreja Católica tenta ignorar ou minimizar. As histórias dão à figura da mulher um protagonismo negado pelas escrituras e seus zeladores.
Um exemplo é o surgimento de Nossa Senhora de Guadalupe no mesmo local onde os astecas prestavam tributo à deusa Quetzalcoatl, cuja tradição havia sido destroçada pelos colonizadores. Há quem diga, no documentário, que em determinado momento os indígenas aceitaram a conversão para ludibriar os dominadores que não compreendiam que a santa e a deusa representavam as mesmas forças.
“A América Latina é uma região sem pai”, diz uma das entrevistadas a certa altura do filme. Por onde se olha, afirma ela, é impressionante a quantidade de mulheres obrigadas a cuidar sozinhas dos filhos, seja porque os pais fugiram (para eles, “abortar” o projeto é legalizado), seja porque saíram e não voltavam para casa. Nesses encontros religiosos é a voz das mulheres, muitas delas mães sozinhas, que ouvimos puxar o coro, em melodias muito semelhantes às que ouvia na minha infância.
Quando soube do acidente com o avião que levava a Chapecoense até a Colômbia, na madrugada de segunda para terça-feira, as primeiras informações diziam que se tratava de um pouso forçado, e não de uma queda. Uma pessoa havia sido resgatada com vida, e madrugada adentro ficamos esperando notícias similares, já avisados de que as condições de acesso, agravadas pelo frio e pela chuva, eram delicadas.
Pelo Twitter corriam notícias de que havia ainda muitos sobreviventes à espera de atendimento na aeronave.
Torcíamos para que não houvesse vítimas fatais.
Pouco depois, as esperanças foram reduzidas por notícias mais exatas. Passamos a esperar apenas que houvesse poucas vítimas fatais.
Em seguida uma autoridade declarou haver ao menos 25 mortos.
Por exclusão, haveria cerca de 50 sobreviventes.
No fim, eram apenas, e não somente, sete, mas um morreu no hospital – justamente o goleiro Danilo, cuja defesa no lance derradeiro da semifinal, contra o San Lorenzo, levara a equipe inteira para o grande voo de sua história.
Ao longo da semana, assistimos comovidos às homenagens das histórias interrompidas por uma decisão, ao que tudo indica, irresponsável de quem seguiu viagem com o combustível no limite.
A chamada “pane seca” dá a dimensão do desamparo. Quem está no comando? Quem está preocupado? Quem é capaz de colocar a vida acima de qualquer outro cálculo?
Expressões como sorte, acaso e tragédia mudam de figura quando levamos em conta a responsabilidade humana nas decisões. O mesmo se aplica a desastres como os de barragem em Mariana, em Minas Gerais. Ou no descuido dos donos da boate que não preservaram as condições mínimas de evacuação e segurança antes do incêndio em Santa Maria, no Rio Grande do Sul (Somente agora, escrevendo este texto, me dei conta de que os palcos das nossas tragédias recentes têm em comum o nome “Maria”).
Volto ao documentário de Joana Mariani, ela também, de alguma forma, “Maria”. A América Latina, esse continente que durante a semana descobrimos ligados num abraço fraterno de dois estádios separados por milhares de quilômetros numa mesma homenagem às vítimas de Medelin, é uma região sem pai, embora a padroeira de todos esses países seja a figura de uma mãe.
A queda do avião em uma cidade marcada, até pouco tempo, por uma guerra fratricida entre polícia e traficantes, deixou cerca de 70 famílias sem pais – uma equipe inteira de futebol masculino, dirigida por homens, relatada pela crônica esportiva notadamente masculina e conduzida por um comandante homem. Muitos já eram pais, outros ainda seriam.
E conferiram às mães, deles e de seus filhos, a missão de transformar o luto em luta, como é comum nessas paragens de abandono e desamparo – e como pudemos notar na fala tão dolorosa quanto lúcida da mãe do goleiro Danilo pouco antes de saber da morte do filho.
Na manchete que definiu o sentimento de um país inteiro, o jornal O Vale noticiou que a tragédia aérea matou 71 pessoas e deixou 206 milhões de feridos. Pelas manifestações mundo afora, podemos supor que o número é muito maior, mas nenhum deles é capaz de mensurar a dor de quem precisará retomar a vida sem os amigos e familiares dali em diante.
A América Latina, às vésperas de uma decisão de futebol, único esporte capaz de reunir num mesmo palco tantos afetos, para o bem ou para o mal, ficou mais órfã a partir desta semana. Na dor nos reconhecemos entre iguais e redobramos a força.
Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida, já dizia uma velha música, de nome “Maria, Maria”.
------------------
Voltar àquele lugar, mesmo na memória, é uma forma de voltar a uma época em que eu sabia a quem dedicar meus pedidos e angústias.
Na tradição cristã, Maria é quem intercede pelo milagre. É ela quem pede ao filho, Jesus, que providencie mais vinho aos convidados, embora só tivesse água nos barris – daí a expressão “transformar a água em vinho”.
Encontrada por pescadores em um rio de Santo Antonio de Guaratinguetá, no século XVIII, a imagem da santa negra se tornou o rosto – e a padroeira – de um Brasil escravizado.
O que eu não sabia, até pouco tempo, é que, em muitos países da América Latina, populações locais relatam aparições e manifestações similares às que celebramos por aqui.
Essas histórias foram contadas no documentário “Marias”, que estreou recentemente no Brasil. No filme, a diretora Joana Mariani reúne uma série de relatos de devotos que de alguma forma colocam a santa como um elemento de mobilização comum entre os povos latinos. São muitas as histórias, mas todas trazem um ponto de resistência que até mesmo a Igreja Católica tenta ignorar ou minimizar. As histórias dão à figura da mulher um protagonismo negado pelas escrituras e seus zeladores.
Um exemplo é o surgimento de Nossa Senhora de Guadalupe no mesmo local onde os astecas prestavam tributo à deusa Quetzalcoatl, cuja tradição havia sido destroçada pelos colonizadores. Há quem diga, no documentário, que em determinado momento os indígenas aceitaram a conversão para ludibriar os dominadores que não compreendiam que a santa e a deusa representavam as mesmas forças.
“A América Latina é uma região sem pai”, diz uma das entrevistadas a certa altura do filme. Por onde se olha, afirma ela, é impressionante a quantidade de mulheres obrigadas a cuidar sozinhas dos filhos, seja porque os pais fugiram (para eles, “abortar” o projeto é legalizado), seja porque saíram e não voltavam para casa. Nesses encontros religiosos é a voz das mulheres, muitas delas mães sozinhas, que ouvimos puxar o coro, em melodias muito semelhantes às que ouvia na minha infância.
Quando soube do acidente com o avião que levava a Chapecoense até a Colômbia, na madrugada de segunda para terça-feira, as primeiras informações diziam que se tratava de um pouso forçado, e não de uma queda. Uma pessoa havia sido resgatada com vida, e madrugada adentro ficamos esperando notícias similares, já avisados de que as condições de acesso, agravadas pelo frio e pela chuva, eram delicadas.
Pelo Twitter corriam notícias de que havia ainda muitos sobreviventes à espera de atendimento na aeronave.
Torcíamos para que não houvesse vítimas fatais.
Pouco depois, as esperanças foram reduzidas por notícias mais exatas. Passamos a esperar apenas que houvesse poucas vítimas fatais.
Em seguida uma autoridade declarou haver ao menos 25 mortos.
Por exclusão, haveria cerca de 50 sobreviventes.
No fim, eram apenas, e não somente, sete, mas um morreu no hospital – justamente o goleiro Danilo, cuja defesa no lance derradeiro da semifinal, contra o San Lorenzo, levara a equipe inteira para o grande voo de sua história.
Ao longo da semana, assistimos comovidos às homenagens das histórias interrompidas por uma decisão, ao que tudo indica, irresponsável de quem seguiu viagem com o combustível no limite.
A chamada “pane seca” dá a dimensão do desamparo. Quem está no comando? Quem está preocupado? Quem é capaz de colocar a vida acima de qualquer outro cálculo?
Expressões como sorte, acaso e tragédia mudam de figura quando levamos em conta a responsabilidade humana nas decisões. O mesmo se aplica a desastres como os de barragem em Mariana, em Minas Gerais. Ou no descuido dos donos da boate que não preservaram as condições mínimas de evacuação e segurança antes do incêndio em Santa Maria, no Rio Grande do Sul (Somente agora, escrevendo este texto, me dei conta de que os palcos das nossas tragédias recentes têm em comum o nome “Maria”).
Volto ao documentário de Joana Mariani, ela também, de alguma forma, “Maria”. A América Latina, esse continente que durante a semana descobrimos ligados num abraço fraterno de dois estádios separados por milhares de quilômetros numa mesma homenagem às vítimas de Medelin, é uma região sem pai, embora a padroeira de todos esses países seja a figura de uma mãe.
A queda do avião em uma cidade marcada, até pouco tempo, por uma guerra fratricida entre polícia e traficantes, deixou cerca de 70 famílias sem pais – uma equipe inteira de futebol masculino, dirigida por homens, relatada pela crônica esportiva notadamente masculina e conduzida por um comandante homem. Muitos já eram pais, outros ainda seriam.
E conferiram às mães, deles e de seus filhos, a missão de transformar o luto em luta, como é comum nessas paragens de abandono e desamparo – e como pudemos notar na fala tão dolorosa quanto lúcida da mãe do goleiro Danilo pouco antes de saber da morte do filho.
Na manchete que definiu o sentimento de um país inteiro, o jornal O Vale noticiou que a tragédia aérea matou 71 pessoas e deixou 206 milhões de feridos. Pelas manifestações mundo afora, podemos supor que o número é muito maior, mas nenhum deles é capaz de mensurar a dor de quem precisará retomar a vida sem os amigos e familiares dali em diante.
A América Latina, às vésperas de uma decisão de futebol, único esporte capaz de reunir num mesmo palco tantos afetos, para o bem ou para o mal, ficou mais órfã a partir desta semana. Na dor nos reconhecemos entre iguais e redobramos a força.
Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida, já dizia uma velha música, de nome “Maria, Maria”.
------------------
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/cultura/as-maes-e-os-orfaos-de-chapeco 02/12/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário