João Pereira Coutinho*
Três personagens entram no restaurante. Sentam-se à mesa. O empregado
aproxima-se dos comensais. O primeiro olha para o cardápio e escolhe de
acordo com as regras da casa. O segundo olha para o cardápio, rejeita
enfaticamente o cardápio —e pede um prato que não está na lista. O
terceiro recusa olhar para o cardápio e pergunta apenas ao garçom: "Você
recomenda algo em especial?"
Pergunta: quem são esses três personagens?
Resposta: o primeiro é um liberal, o segundo é um revolucionário, o terceiro é um conservador.
Que o mesmo é dizer: o primeiro respeita a letra escrita e segue a
constituição do restaurante; o segundo recusa a legalidade gastronômica,
repudia o que foi deliberado pelo chef e pretende criar um novo
cardápio com iguarias que apenas existem na cabeça dele; o terceiro
confia na tradição da casa, na experiência dos seus membros — e espera
que lhe tragam os pratos que foram requintados ao longo do tempo.
Durante anos, esse foi o meu teste ideológico aplicado a terceiros.
Raramente falhava. Sentado à mesa, contemplava o meu parceiro e chegava
facilmente a uma sentença. Falo em "parceiro" e não é por acaso: as
mulheres tendem a ser sempre mais revolucionárias. Querem combinar
pratos; separar molhos; substituir carnes assadas por grelhadas (ou
vice-versa). O filme "Harry e Sally - Feitos Um para o Outro" explica.
Mas divago.
Com o tempo, aprendi que existe um segundo teste que permite distinguir
"progressistas" de "conservadores": os textos que ambos escrevem na
virada do ano.
Os primeiros ignoram 2016 e só pensam em 2017. Pior: partindo do
pressuposto de que estão vivos, ignoram por completo que sobreviveram
mais um ano; esquecem as bênçãos que tiveram nesse ano; e olham com
ganância desmedida para o ano que ainda nem conhecem.
Querem mais, sempre mais, insuportavelmente mais. Saúde. Dinheiro.
Amores. Divórcios. Viagens. Implantes. Novos neurônios para o caçula. O
funeral do patrão. Aquele carro, aquela casa. O céu. A lua.
E quando, hipocritamente, gostam de apresentar uma máscara de humildade
(apenas mais tempo livre; apenas deixar o cigarro; apenas perder dois
quilos), o vício progressista continua a corroê-los: um criminoso
esquecimento do passado.
Não contem comigo, ingratos! Agora que 2016 desaparece no horizonte como um cobói de faroeste, brindo a ele porque
a) Estou vivo (a maior parte do tempo);
b) Estou saudável (idem);
c) Estou sóbrio (ibidem);
d) O cabelo resiste heroicamente;
e) Os selvagens dos meus vizinhos pediram o divórcio e o apartamento está silencioso, vazio e à venda;
f) Portugal não sofreu nenhum atentado terrorista;
g) Nenhum atentado terrorista atingiu amigos e familiares;
h) Amigos e familiares continuam a suportar-me (apesar das minhas sabotagens);
i) Os leitores também;
j) Não pratiquei exercício físico;
k) Portugal não faliu (ainda);
l) Leonard Cohen só morreu depois de lançar "You Want it Darker";
m) Descobri um novo romancista (Olivier Bourdeaut) e o seu primeiro romance ("En attendant Bojangles", "Esperando por Bojangles");
n) Confirmei, com o "The Knick" de Steven Soderbergh, que o grande cinema está hoje na tv;
o) ...Ou talvez não: houve "Anomalisa", de Charlie Kaufman;
p) Há dinheiro no bolso para o uísque das crianças;
q) Escrevi um punhado de textos que não envergonham a musa;
r) Descobri que uma hérnia do disco, longe de ser um drama, pode ser a desculpa perfeita;
s) O mesmo vale para enxaquecas - fáceis de inventar, impossíveis de provar;
t) Não trabalhei mais do que devia;
u) Confrontaram-me com provas audiovisuais de que ressono —mas a minha senhora não se importa (demasiadamente);
v) O meu filho já caminha e corre para todo lado, embora esteja sempre à espera que o pai faça o mesmo;
w) Os meus alunos sabem que o professor chegou aos 40 anos e mostram grande respeito pela terceira idade;
x) Sobrevivi a um aparatoso acidente de bicicleta;
y) A bicicleta estava parada e eu em cima dela.
z) Foram só dois dentes.
b) Estou saudável (idem);
c) Estou sóbrio (ibidem);
d) O cabelo resiste heroicamente;
e) Os selvagens dos meus vizinhos pediram o divórcio e o apartamento está silencioso, vazio e à venda;
f) Portugal não sofreu nenhum atentado terrorista;
g) Nenhum atentado terrorista atingiu amigos e familiares;
h) Amigos e familiares continuam a suportar-me (apesar das minhas sabotagens);
i) Os leitores também;
j) Não pratiquei exercício físico;
k) Portugal não faliu (ainda);
l) Leonard Cohen só morreu depois de lançar "You Want it Darker";
m) Descobri um novo romancista (Olivier Bourdeaut) e o seu primeiro romance ("En attendant Bojangles", "Esperando por Bojangles");
n) Confirmei, com o "The Knick" de Steven Soderbergh, que o grande cinema está hoje na tv;
o) ...Ou talvez não: houve "Anomalisa", de Charlie Kaufman;
p) Há dinheiro no bolso para o uísque das crianças;
q) Escrevi um punhado de textos que não envergonham a musa;
r) Descobri que uma hérnia do disco, longe de ser um drama, pode ser a desculpa perfeita;
s) O mesmo vale para enxaquecas - fáceis de inventar, impossíveis de provar;
t) Não trabalhei mais do que devia;
u) Confrontaram-me com provas audiovisuais de que ressono —mas a minha senhora não se importa (demasiadamente);
v) O meu filho já caminha e corre para todo lado, embora esteja sempre à espera que o pai faça o mesmo;
w) Os meus alunos sabem que o professor chegou aos 40 anos e mostram grande respeito pela terceira idade;
x) Sobrevivi a um aparatoso acidente de bicicleta;
y) A bicicleta estava parada e eu em cima dela.
z) Foram só dois dentes.
A todos os leitores, desejo do fundo do coração um excelente 2016!
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* Escritor português, é doutor em ciência política.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/12/1845808-desejo-aos-leitores-um-feliz-2016-e-nao-nao-e-erro.shtml
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