Pedro Bidarra*
"O Monodeus poderá muito bem ser filho do Sofrimento sem fim e da
Dor imensa. Só um casal assim penoso poderia conceber um Deus tão vasto.
Só o Sofrimento infinito e a Dor omnipresente, que com ele concubina no
leito da desesperança, teriam energia para criar tal colosso. O
Monodeus não é Deus para uma dor de dentes, para um coração partido ou
para uma bolsa endividada. O Monodeus não é um Deus para tropeções. Para
isso há deuses menores, há todo um Olimpo de santos que reencarnaram os
mais antigos e práticos deuses pagãos. Para uma dor de dentes basta um
Foda-se! Mas para o Sofrimento eterno, não. Para o Sofrimento sem fim e
para a Dor avassaladora foi necessário remédio maior, mais potente e
ainda mais presente que os seus dois progenitores.
E assim, o Sofrimento eterno e a Dor avassaladora, tendo oprimido vidas inteiras e fustigado gerações consecutivas de homens, até que eles, os homens, outras memórias não tivessem que a do Sofrimento e da Dor que o acompanha de braço dado; e tendo os homens ejaculado um grito sem pausa, os dois, na luxúria da sofrença e deitados no leito da desesperança, e com o sémen que era o grito sem pausa dos homens, conceberam o colosso omnipotente, omnipresente e omnisciente que é o Monodeus: filho único da Dor imensa e do Sofrimento sem fim."
E assim, o Sofrimento eterno e a Dor avassaladora, tendo oprimido vidas inteiras e fustigado gerações consecutivas de homens, até que eles, os homens, outras memórias não tivessem que a do Sofrimento e da Dor que o acompanha de braço dado; e tendo os homens ejaculado um grito sem pausa, os dois, na luxúria da sofrença e deitados no leito da desesperança, e com o sémen que era o grito sem pausa dos homens, conceberam o colosso omnipotente, omnipresente e omnisciente que é o Monodeus: filho único da Dor imensa e do Sofrimento sem fim."
Nisto pensava eu, domingo passado, quando fui à missa e dei por mim a
não ouvir nada do que lá se dizia, mas antes a imaginar o que podia ser
dito — talvez num filme passado nos primeiros séculos.
Não ia a uma missa desde 2011. Antes tinha ido em 2007. Das duas vezes
não consegui ficar até ao fim. Desta vez, por respeito à congregação e
aos meus amigos de escrita, com quem tinha combinado a visita à Capela
do Rato para ouvir o padre estrela (que não estava), deixei-me estar.
Também o facto de estar na segunda fila, à vista de toda a gente,
ajudou. Quando era pequenino e ia à missa, punha-me a compor,
mentalmente, as minhas homilias e os meus textos, porque os que lá se
diziam, com excepção dos do Livro — ontem, como hoje, quase sempre mal
lido, sem ênfase, sem ritmo, sem pathos — ficavam sempre aquém de mim.
Por isso deixava-me ir em elucubrações para combater o enfado. Mas no
domingo passado lá voltei. Vesti umas calças de ganga cinzentas, limpas e
muito slim, como é agora de moda. Fiz-lhes uma dobra dupla para ficarem
um pouco por cima da bota que engraxei. A camisa que levava era de
flanela cinzenta com um subtil fio vermelho a desenhar os quadrados: uma
camisa Boss, uma boa camisa. Vesti-me para ir à missa. Não sei se as
pessoas ainda se vestem para ir à missa, mas eu vesti-me. Antigamente,
faziam-no. Por respeito, mas não só. Também era sítio onde as pessoas se
viam umas às outras. Havia essa vaidade de se quererem mostrar bem,
limpas, bonitas. Por essa razão vesti-me bem e de lavado. Ainda bem,
porque a congregação, com algumas excepções, tinha boa cara. Uma cara no
geral envelhecida, mas, ainda assim, simpática. Faltava-lhe mulheres
bonitas, férteis e dispostas. Deviam estar no centro comercial ou a
jogar padlle. Fazem falta as mulheres bonitas na Igreja (como em
qualquer lado).
Faz falta o belo na Igreja. Não sei se foi sempre assim, não sou
estudioso destas matérias, mas parece que a Igreja substituiu a luxúria
do belo — os mármores, as talhas douradas, as estátuas e tectos de
Michelangelo, as telas de Caravaggio, a música de Palestrina e Bach —
pela luxúria da pobreza, do trapo, do pardo, do pobre, da guitarra de
infeliz acústica e das vozes velhas e desafinadas. Muitos dos católicos
que conheço comprazem-se nessa luxúria do cru; como o fazem muitos dos
intelectuais e esquerdistas. Gostam do pobre, do pardo e do mofo.
Excomungaram a cor, o brilho, a luz; a verdadeira luz, a do sol, em
troca de uma luz conceptual, imaginada, que é suposta aquecer o coração
através da cabeça (será possível?), mas que não aquece nem a pele, nem o
corpo, que é onde vivem cabeça e coração.
Talvez a Igreja, depois de séculos de outo e arte, e do belo para
celebrar a glória do grito feito Deus, se tenha arrependido e tenha
querido voltar à sua origem sofredora, banindo o belo da sua celebração.
O belo, o sublime deveria ser a vitória do Monodeus sobre a Dor
avassaladora e o Sofrimento sem fim que o pariram. Foi por isso que o
Homem gritou, para que acabasse a dor, o feio e a porcaria. Mas a Igreja
é feita de homens e o Homem é omnívoro e, como os outros omnívoros,
gosta de chafurdar; e assim lá voltamos, ciclicamente, à procura da dor.
E a Igreja compraz-se.
A dor, tendo sido a origem, não poderia ser o meio, nem nunca seria o
fim. A crença, irracionalmente milenar, na salvação, boa enquanto
crença, devia ser reproduzida, vislumbrada, experimentada através do
belo, da cor e da estética. Oiça-se Bach. Veja-se a Pietà ou as colunas
negras do Baldaquino de Bernini na Basílica de São Pedro. Leiam-se os
textos bem lidos, com pathos reverencial, mais do que com as pífias
tentativas de lhes dar um logos contemporâneo, explicando o inexplicável
e traduzindo por miúdos, como se fossemos miúdos.
Para mim uma missa é o que sempre foi: um enfado. Nasci num tempo de más
missas. Quando estudei e cantei canto gregoriano, tive um vislumbre da
estética e do belo de outros tempos. Se alguma vez estive tentado a
acreditar, foi sempre que o belo me tocou; foi com a escrita de
Palestrina e de Bach, com o traço de Caravaggio, com o mármore de
Michelangelo; e com os grandes textos do Livro. Mas nunca na Igreja.
Nunca na missa.
Ilustração: Dar de beber. Detalhe das Sete Obras da Misericórdia de Caravaggio.
Do Blog.: Texto em português de Portugal.
* Sobre Pedro Bidarra
As pessoas vêm sempre de algum sítio. Eu vim dos Olivais-Sul, uma
experiência arquitecto-sociológica que visava misturar todas as classes
sociais para a elevação das mais baixas e que acabou por nos nivelar a
todos pelo mais divertido. Venho também da Faculdade de Psicologia da
clássica, Universidade Clássica de Lisboa onde li e estudei Psicologia
Social e todas as suas mui práticas teorias. Venho do Instituto
Gregoriano de Lisboa onde estudei os segredos da mais matemática, e por
isso a mais emocional e intangível de todas as artes, a música. E venho
sobretudo de casa: de casa das duas pessoas mais decentes que até hoje
encontrei; e de casa dos amigos que me ajudaram a ser quem sou. Estes
foram os sítios de onde parti. Como diz o poeta (eu):
“Para onde vou não sei/ Mas vim aqui parar/ A este triste lugar.”
*
Nenhum comentário:
Postar um comentário