Rodrigo Constantino*
Esse é o segundo Natal que vou passar
longe da família. Lamento isso, pois tenho as melhores recordações das
noites de véspera de Natal na casa dos meus pais, com a família toda
reunida, inclusive com os “agregados” (os familiares da minha cunhada e
meu cunhado).
Sempre foi uma festa animada, um momento
de rever algumas tias e primos que não encontrava com frequência
durante o ano, além de ver a felicidade estampada na cara das crianças
menores, a divertida troca de presentes no amigo oculto etc.
Por isso mesmo li a coluna
de Contardo Calligaris na Folha hoje com certa pena do psicanalista.
Ele, que sempre defendeu a subversão de valores morais “burgueses” e
parece confundir libertinagem com liberdade, pelo visto só guarda
lembranças ruins de sua própria família. E, para usar termo de sua área,
parece projetar sua infelicidade nos demais.
Diz ele:
Se houver
crianças, o evento será resgatado pela alegria delas na hora da
distribuição dos presentes. Sem isso, mesmo nas famílias em que todos
declaram se gostar, a reunião é um momento delicado, que quase sempre
revela a complexidade dos laços familiares: as rivalidades, as
frustrações de não ser amado como a gente queria, a estranheza que nos
causa a proximidade de parentes que não têm nada a ver conosco.
[…]
O discurso
da reunião familiar é sem objeto nem referência; ele tem só duas
(grandes) funções: 1) expressar as emoções que repetimos desde a
infância (ou seja, expressar nossa neurose infantil) e 2) lutar para
manter o outro na escuta: hello, você está me ouvindo?
A reunião
de família pode ser cômica? Sim, e seria bom que achássemos risível o
ruído cotidiano de nossos afetos familiares. “Sieranevada”, aliás, é uma
comédia que pode nos ensinar a descobrir a comédia da nossa vida. Tem
mais: se você aguentar “Sieranevada”, está garantido que você aguentará
seu almoço ou seu jantar de Natal.
Agora,
depois do almoço ou jantar, encontre-se com amigos – diferentes dos
parentes, eles são a companhia que você escolhe. Feliz Natal.
Calligaris considera a família um “drama
farsesco”, e não suporta a ideia de encontrar aquele tio “careta”, o
primo “reacionário” ou o sobrinho que aderiu a “teorias conspiratórias”
da internet. Tudo um saco, ou, se você for “esclarecido” e “analisado”
como o autor, uma grande comédia. Nada comparado, claro, a encontrar os
amigos e fugir desse tédio, dessa obrigação maçante.
Que muitos têm essa mesma imagem da
família e do Natal, não duvido. Mas como não sentir pena deles? E como
não lamentar que, em vez de olhar em volta para perceber que nem todos
sofrem da mesma maneira, essa gente prefere projetar suas frustrações
familiares no mundo todo? Depois, em suas famílias disfuncionais, no
quarto ou quinto casamento, passam a destilar ódio à instituição em si,
em vez de olhar para dentro em busca de respostas.
Eis uma tática muito comum – e bastante
infantil: apontar para as imperfeições de alguma instituição humana
qualquer e compará-la com alternativas utópicas e idealizadas. A velha
falácia do Nirvana. A Igreja tem padres pedófilos? Então vamos condenar
toda a Igreja, desde sempre. Famílias destroçadas existem, com pais que
batem na mulher ou até abusam das filhas? Então vamos jogar a família em
si no lixo. Casamentos podem dar errado e ser motivo de profunda
decepção? Então vamos atacar o casamento.
Não é o primeiro artigo que leio de
Calligaris em que a família é alvo de duras críticas, como instituição
em si. Curioso que muitas vezes noto nos psicanalistas as figuras menos
“bem resolvidas” com o mundo real e suas imperfeições. Vejo muitos
abraçando utopias infantis, pregando o socialismo, endossando a
libertinagem em nome da “liberdade” ou em evidente crise de meia-idade.
Agem de forma imatura, e não conseguem fazer o luto da infância que
descobre a falibilidade paterna.
Também percebo, como fruto da
imaturidade, a completa falta de limites, de freios, justamente de quem
não suporta a figura da Lei, do Pai. Muitos parecem os eternos
adolescentes em rebeldia contra as regras impostas pelo pai. Por isso
demonstram pouca capacidade de compromisso, de permanecer no mesmo
casamento, ou de aceitar certas obrigações sociais com o devido respeito
a elas. Precisam destruir toda a ordem: tornam-se “desconstrutivistas”.
Avacalhar o Natal e os encontros
familiares não é novidade. O personagem Scrooge, de Dickens, já captura
bem esse perfil. Resta saber o que fazer diante da descoberta de um
mundo imperfeito. Alguns agem como crianças mimadas e birrentas, e
passam a detonar tudo, flertar com o niilismo, com o hedonismo
desmedido, com o “vale tudo” e cada um por si. Outros amadurecem, e usam
a imaginação moral para enaltecer as instituições louváveis, apesar de
seus claros defeitos e limitações.
A família não é um foco de intrigas,
brigas, “drama farsesco”, ou ao menos não só isso ou não principalmente
isso. É, também, o núcleo de amor onde os filhos crescem, aprendem
lições importantes, são educados, formados para a vida, absorvem a
necessidade de limites e de respeito, inclusive às obrigações e
tradições. Não é por acaso que todo regime totalitário mirou no núcleo
familiar como alvo principal: ele oferece uma resistência aos anseios de
controle absoluto por parte do poder, do estado.
Claro que há famílias em que o pior é
realçado, e talvez Calligaris tenha tido uma experiência dessas. Mas, em
vez de meter o pau em toda família, talvez ele devesse voltar para o
divã, analisar melhor o que está por trás desse ódio. O risco,
naturalmente, é o terapeuta ser como ele, relativizar tudo, subverter a
moral, e falar que tanto faz, que, afinal, pai e mãe são apenas
acidentes biológicos que não escolhemos, e vida que segue.
Vou passar esse Natal com amigos de
longa data, e estou feliz por isso. Mas encaro a situação como
substituta daquela que realmente gostaria: estar ao lado dos meus
familiares, fortalecendo os laços, alimentando essa tradição que vem
desde quando nasci, inclusive no que engloba a tia “chata” ou o tio
“careta”. Faz parte do pacote, e ele é muito positivo!
Talvez eu tenha dado mesmo muita sorte
de ter uma família legal, já que família não se escolhe. Mas uma das
melhores coisas que minha família tem, e que por isso mesmo, acredito, é
tão boa, é justamente o “senso de família”, a ideia de que irmão é
irmão, pai é pai, mãe é mãe, e devemos estar todos unidos, juntos, venha
o que vier.
Uma pena Calligaris e tantos outros não
terem tido isso e não valorizarem isso, para que possam tentar remediar o
mal daqui para frente, lutando para construir famílias melhores, em vez
de simplesmente abdicar delas em prol de amigos, de forma egoísta como
quem acha que dar vazão aos apetites do momento é sempre o ato mais
nobre.
Feliz Natal a todos, especialmente aos que vão aproveitar cada momento com seus familiares!
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* Rodrigo Constantino é economista. Presidente do Instituto Liberal.
Fonte: http://rodrigoconstantino.com/artigos/em-defesa-do-natal-em-familia/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino
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