João Pereira Coutinho*
Quando morreu Leonard Cohen, li um artigo com um título que não esqueço:
"A polidez é a melhor forma de resistência". Como dizem os brasileiros,
concordo em gênero, número e grau.
Pessoas que me conhecem sabem que sou um homem educado. Outras, que não
me conhecem mas leem o que escrevo, imaginam um ogro. Não sou.
Naturalmente polido, até em situações extremas tento manter a
graciosidade. No meio da barbárie moderna, a polidez é mesmo uma forma
de resistência.
Só existe um momento do ano em que o ogro emerge das profundezas. No
Natal. A época, dizem, serve para despertar o amor fraternal entre os
homens. No meu caso, só desperta hostilidade pelo meu semelhante. Terei
cura?
Christopher Hitchens, no livro "And Yet...", tem um texto que ajuda.
Escreve Hitchens que, no Natal, ele sente que está a viver num Estado de
partido único –uma espécie de Coreia do Norte com Papai Noel.
Mas depois, com seu desagradável ateísmo, Hitchens erra quando afirma
que a culpa é do cristianismo. Ou, como ele escreve, a culpa é do
nascimento do Grande Líder, que tem de ser adorado pelas massas
exaustas.
Discordo, Christopher. O melhor do Natal é mesmo o nascimento do Grande
Líder. Não falo como crente. Falo como esteta. Quem escutou os coros de
Natal em Oxford ou as modestas "missas do galo" nas aldeias de Portugal
não pode ficar insensível à simplicidade bela da fé.
O problema é que o Natal não lida com o Grande Líder. Para ficarmos na
religião, o problema está mesmo no paganismo colorido da quadra –e,
claro, no fascismo da felicidade que tanto incomodava Hitchens.
São as mensagens que recebemos de "amigos" que desapareceram o resto do
ano. É a simpatia dos colegas que desejaram ardentemente o nosso
fracasso nos 11 meses anteriores. São familiares que mal conhecemos –e
que surgem com uma intimidade só tolerável em casos de demência.
É, no fundo, a obrigação de ser bondoso e alegre e sentimental. São as
árvores plásticas, as luzinhas gaguejantes, as renas e o trenó. É a neve
artificial. É a alegria artificial.
Eu tento me controlar. Leio Charles Dickens de espírito aberto. Sem
sucesso. Devo ser a única pessoa do mundo que, depois de ler "A
Christmas Carol", lamenta profundamente a mudança de Mr. Scrooge.
Repito: terei cura? Um psicanalista perguntaria pela minha infância. A
minha mãe confirma que sempre tive uma relação problemática com o Papai
Noel. Aos seis anos, por exemplo, tentei caçá-lo. Explico. O plano era
esperar que o velho descesse pela chaminé e, com uma rede de pesca,
capturá-lo.
Os meus pais, alarmados com os primeiros sinais de sociopatia, tentaram
ser pedagógicos. Sequestrar o Papai Noel significava ficar sem presentes
para o resto da vida.
Mas eu tinha outras ideias e, aqui entre nós, o demônio capitalista já
tinha infectado o meu ser. Depois de capturado, o Papai Noel seria
exibido em barracas de feira –como se fosse o King Kong. Com o dinheiro
dos ingressos, eu próprio compraria os presentes.
Assim foi: montei a minha tenda junto à chaminé e esperei toda a noite.
"Toda a noite", vírgula: vencido pelo cansaço, adormeci entretanto.
Quando acordei, o infame já tinha visitado o lar –e, supremo insulto,
havia uma Polaroid da minha pessoa, dormindo no chão da sala, com uma
rede de pesca na mão. E a legenda: "Ho ho ho".
Esse psicanalista imaginário diria que o mistério está explicado. Aos
seis anos, quando ainda acreditava no barbudo, fui humilhado por ele.
Quando chega dezembro, o barbudo anda à solta –e a alegria totalitária
do Natal só serve para cutucar uma ferida infantil que nunca cicatrizou
realmente. Aquele "ho ho ho" ecoa em todos os becos e esquinas.
Apesar de óbvia, é uma boa teoria. O que me leva a pensar que o caminho
da catarse talvez passe por um bom relatório médico que me permita pedir
uma indenização. Por "stress pós-natalino".
Depois, dezembro chegava e eu, com o relatório na mão, fazia uma pausa
no trabalho, evitava as compras no shopping, resgatava o corpo e a mente
dos "jantares de Natal" –e recolhia-me no quarto, com bibliografia
terapêutica e um bom xarope para os nervos (Laphroaig serve).
Haverá algum psicanalista leitor que esteja disposto a assinar esse relatório? Um pedido: escrever "ho ho ho" não vale.
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* Escritor português, é doutor em ciência política.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2016/12/1844802-no-natal-a-obrigacao-de-ser-bondoso-e-alegre-faz-de-mim-um-sociopata.shtml
Foto: Binho Barreto/Folhapress
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