A vontade de mudar a escola está destruindo
sua principal função: a de transmitir conhecimento sem sobrecarregar o
aluno, diz o matemático francês Laurent Lafforgue, estudioso dos
sistemas educacionais pelo mundo
Na era da “pós-verdade”, não são raros os educadores a
chamar a atenção para a incapacidade de jovens e adultos de interpretar
textos e de discernir uma informação falsa de uma verdadeira. Numa época
em que a matemática e seus algoritmos têm cada vez mais influência, um
matemático eminente, o francês Laurent Lafforgue, adverte para a
importância da relação prosaica entre professor e aluno. “Educar é antes
de tudo transmitir conhecimento, do mais básico ao mais complexo. O
elementar é desenvolver o senso de interpretação, que forma o espírito
crítico”, disse ao Estado. “Uma educação que não garante nem mesmo o domínio da linguagem não permite pensar.”
Nesta entrevista, concedida à luz do movimento estudantil que
persiste no Brasil, Lafforgue, vencedor da Medalha Fields, a mais alta
distinção de sua área no mundo, discutiu presente e futuro da educação. A
seguir, a síntese da entrevista.
O que seria uma reforma do ensino que
abarque as necessidades dos estudantes hoje? Faz sentido retirar
disciplinas como sociologia ou filosofia?
Não, de forma alguma. Creio que disciplinas
como a filosofia ou a história são muito importantes. Engajei-me muito
em debates sobre educação nos últimos 10 anos ou mais e fui inspirado
por um só princípio: o de que a escola serve para instruir e transmitir
conhecimentos. Para mim, que sou matemático, os conhecimentos mais
importantes são os literários. Antes de mais nada, o domínio de sua
própria língua, em especial o domínio da gramática, e a seguir a
aprendizagem da literatura, por meio da leitura de grandes escritores e
de grandes filósofos. Tudo isso me parece indispensável para o
desenvolvimento do espírito crítico e para a própria formação da pessoa.
Sem o domínio da linguagem, não podemos nem mesmo pensar.
Desde 2005, o sr. ressalta a importância do núcleo comum e de um ensino progressivo, que parta do mais simples ao mais complexo.
É muito importante para o aprendizado que o
ensino seja progressivo e estruturado. Progressivo no sentido de que a
cada ano ele deve ganhar em profundidade, e não passar a outro assunto
sem nenhuma relação. Que avance do mais simples ao mais elaborado. Da
mesma forma, o ensino precisa ser estruturado, e não dividido em áreas
desconectadas. Na história, por exemplo, é importante ter uma cronologia
que avance e estabeleça conexões entre os eventos. Nesse sentido, as
grandes obras literárias, por exemplo, precisam ser inseridas.
O sr. defendeu à época a importância do ensino do latim e do grego no currículo.
Sim, meu engajamento começou assim. Assinei um
abaixo-assinado pela manutenção do ensino do grego, porque acreditava
que era algo importante. Os organizadores encontraram meu nome e, ao
final, organizaram uma conferência com pessoas de diferentes
disciplinas, que tinham em comum o apego ao ensino do latim e do grego.
Ouvi muitas outras pessoas nessa conferência e fiquei estarrecido ao
descobrir que educadores que defendiam o ensino de grego e latim
advertiam para uma situação ainda mais grave, que era a do ensino do
francês – a língua que falamos. Assim, descobri a crise grave pela qual a
educação passava na França, assim como em muitos países, onde ela
estava em vias de destruição rápida por políticas governamentais.
O sr. cita um ciclo negativo: professores educados de forma precária ensinam precariamente.
A educação é um grande transatlântico, com
enorme inércia. Quando as coisas começam a se degradar, a inércia é
muito forte. Os professores que sofreram com um ensino degradado têm
muito menos conhecimento, e vão dispensar uma educação degradada. Muitas
vezes, nem sabem o que é ensinar corretamente. A degradação começou há
pelo menos meio século, e não é um fenômeno francês. Todos os países da
Europa enfrentam o mesmo, nos Estados Unidos, os problemas do ensino
fundamental e médio são ainda mais antigos, e tudo o que chamamos de
Ocidente está atingido pela degradação do ensino e, logo, pelo nível
cultural e intelectual.
E o sr. acusa o “muro ideológico”,
criado por pessoas de direita e esquerda, que “ideologizaram” a
educação, como responsável pela degradação.
Os responsáveis são de alguma forma todos os
governos que se sucederam nos últimos 50 anos. Na França, a educação é
mais dominada pela esquerda que pela direita. Mesmo quando os governos
são de direita, as pessoas que mantêm o poder na educação são em geral
de esquerda. Essa esquerda pós-1968 está em ruptura total no plano da
educação com o que a própria esquerda havia feito na Terceira República
(1870-1940). Quais são os princípios desse problema: antes de mais nada,
esquecer que a missão original de uma escola é a de transmitir
conhecimento. Houve uma desvalorização considerável, talvez total, do
valor do conhecimento. Muitos intelectuais passaram a duvidar do valor
do conhecimento e começaram a pensar que a escola era feita para outra
coisa – em especial para formar novas gerações, seres pacíficos para uma
nova sociedade. Há um desejo de uma nova sociedade que passa à frente
da prioridade, que é a aquisição do conhecimento. Temos hoje novas
gerações mal instruídas, têm pouco conhecimento, dominam mal sua própria
língua e que não são nada pacíficos. Vê-se nas escolas o
desenvolvimento da violência, o que, em outro momento, era inimaginável.
O sr. considera que o construtivismo tem parcela de responsabilidade nisso. Por quê?
O construtivismo desvalorizou o simples fato de
que um professor pode pretender transmitir conhecimento. Evita-se que o
professor se coloque em posição de superioridade em relação às
crianças. Adotamos uma postura segundo a qual a criança deve construir o
conhecimento sem se dar conta, e não receber o conhecimento. Mas isso
pôs sobre os ombros das crianças um peso esmagador, porque é muito mais
difícil, talvez impossível, encontrar sozinho o conhecimento que temos
construído de forma coletiva há séculos. Vimos pesquisadores e
intelectuais que pretendiam transformar as crianças, às vezes desde
muito cedo, em pequenos pesquisadores. Mas eles esqueceram que eles
próprios, antes de se tornarem pesquisadores, haviam recebido durante
anos conhecimentos de seus professores, do mais simples ao mais
elaborado, antes de chegarem eles próprios à obra criadora. Os
professores também devem escutar os alunos, mas a prioridade é que
ensinem.
O sr. não deve conhecer o movimento
estudantil contra a reforma da educação no Brasil. Mas o que pensa em
tese de uma reforma que, entre outras medidas, suprime o ensino da
filosofia?
Depende da reforma. Vou lhe falar da
experiência francesa. Nos últimos 50 ou 60 anos, tivemos uma sucessão de
reformas. Cada uma feita para melhorar, mas essa sucessão foi o que
destruiu a educação. Na França, a maior parte dos jornais considera que a
educação nacional é um mamute impossível de reformar. Nos dizem que os
professores são muito conservadores, que não aceitam a mudança. Para
mim, é o oposto. Lamento que os professores não tenham resistido mais. A
educação na França passou por modificações que mudaram para sempre a
natureza da escola e do ensino. Essas mudanças foram catastróficas. Não
digo que toda reforma seja má, isso depende do conteúdo da reforma. Mas,
na experiência francesa, toda reforma se apresenta como boa, e os
resultados são o contrário do objetivo inicial.
-------
Reportagem por Andrei Netto / PARIS,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
26 Novembro 2016
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,reformar-para-que-as-mudancas-no-ensino-pelo-mundo-para-o-matematico-frances-laurent-lafforgue,10000090745
Nenhum comentário:
Postar um comentário