Depois de distorcer sistematicamente os fatos, velha mídia
queixa-se da enxurrada de mentiras difundidas nas redes sociais. Faz
sentido: os oligopólios não toleram concorrência
“Querem me dizer que esse gás sarín não existe?!”
(General Collin Powells, exibindo uma “prova” na ONU)
Os Dicionários Oxford escolheram “pós-verdade” como a palavra do ano.
“Notícias falsas” e política “pós-verdade” foram declaradas culpadas
pelo resultado a favor de o Reino Unido separar-se da UE, e pela vitória
de Donald Trump nos EUA.
Como se a plebe analfabeta e burra caísse nas “falsas notícias” que
os infelizes leem na “nova mídia” e nas mentiras da perigosíssima gangue
de políticos ditos populistas que só investem nas emoções mais baixas,
não em “fatos objetivos”, para angariar votos. Fenômeno terrivelmente
preocupante, que ameaça diretamente a civilização ocidental como a
conhecemos.
Bem, bem, perdoem-me por não segurar uma gargalhada. Porque ver o establishment assim tão preocupado com “notícias falsas”/”política pós-verdade” é a piada mais engraçada que me aparece desde que Lord Jenkins of Hillhead,
imponente reitor da Universidade de Oxford, várias vezes,
repetidamente, chamou seu ilustre hóspede do Sheldon, Mikhail Gorbachev,
de “Mr. Brezhnev.”
O que há de tão hilário? Ora! É que as pessoas e os veículos que mais
alertam contra os perigos das “falsas notícias” e da “política
pós-verdade” são os maiores disseminadores repetidores de “falsas
notícias” e da “política pós-verdade” que jamais houve. É como ouvir
lições da boca de Al Capone sobre a imoralidade do contrabando; ou o
corcunda de Notre Dame a exigir que todos se sentem com costas retas.
Não há dúvidas de que o melhor, digo, o pior exemplo de “falsas
notícias” nos últimos 25 anos ou mais, é a mentira neoconservadora
belicista segundo a qual o Iraque teria armas de destruição em massa em
2002/3. E não foi mentira criada, disseminada e repetida por “blogueiros
obscuros” e “nova mídia”, mas por políticos ocidentais da mais fina
estirpe, de partidos “sérios”, e “especialistas” aprovados pelos altos
padrões de seriedade e respeitabilidade a serviço de BBC/ITV/CNN, etc., e
colunistas de jornal os mais “sérios” e “respeitáveis” dos veículos
mais idem e idem.
Nunca houve absolutamente nenhuma prova de que Saddam Houssein teria
armas de destruição em massa. A história nunca passou de plena e total
mentira, absoluto bullshit. Pois essa notícia falsa
dominou as manchetes durante meses em 2002/3 e levou a uma invasão
criminosa que matou número assombroso de seres humanos. Diferente da
histeria contra “notícias falsas” de hoje, a guerra do Iraque nunca foi
piada. Aquela notícia falsa destruiu um país inteiro!
E… adivinhem?! Os mesmos que inventaram e repetiram sem parar e que
converteram a mentira sobre armas de destruição em massa em notícia lá
estão hoje, os mesmos, a deitar falação sobre “falsas notícias”!
John Hilley observou: “A BBC até meteu lá no estúdio Alastair
Campbell (homem de Tony Blair, encarregado da ‘comunicação’ naqueles
dias falsos da manhã à noite), para defender a palavra ‘pós-verdade’
como meio para ‘denunciar’ os ‘perigos’ das ‘falsas notícias’.”
Campbell ensinou que “Reconhecimento que a política, que sempre foi
dura, entrou em nova fase, quando os políticos que mentem parecem hoje
ser recompensados pelas mentiras.” (BBC2 Jeremy Vine Show, 16/11/2016).
O que diria Orwell desse Campbell, mestre em criar e disseminar
notícias falsas e belicista blairista, lá sentado, dentro da BBC e
recompensado por suas ideias sobre “pós-verdade” e “notícias falsas”? –
pergunta Hilley.
Não tenho dúvidas de que o velho George está aos pulos na cova, em Sutton Courtenay.
E há também o príncipe da guerra & camisa branca, belicista Bernard-Henri Levy. Hoje, o Sunday Telegraph
noticia na manchete: “Renomado filósofo francês: Marine Le Pen pode
sair vitoriosa, porque o povo já não se interessa por saber se os
políticos dizem a verdade.”
Oh, que ironia!
Porque se o povo francês realmente “já não se interessa por saber se
os políticos dizem a verdade”, Henri-Levy e seus cúmplices belicistas
militantes da “mudança de regime” têm muito a ver com isso.
Lembrem a guerra contra a Líbia, que o “renomado filósofo francês”
fez lobby sem descanso. Para vender a guerra à opinião pública
ocidental, nos mentiram que Muammar Gaddafi estaria a ponto de cometer
um massacre “estilo Srebrenica” em Benghazi. Media Lens anotou o que então se “noticiava”.
Mais uma vez, só “notícias plantadas” [orig. “rollocks“].
Cinco anos depois que a Líbia, como o Iraque antes dela, foi destruída
por “intervencionistas” ocidentais, relatório da Comissão de Relações
Exteriores da Câmara dos Comuns informava, afinal sem mentir, que “a
proposição de que Muammar Gaddafi teria ordenado o massacre de civis em
Benghazi não encontra apoio em nenhuma prova hoje disponível.”
E não foi a única “informação verdadeira” que políticos ocidentais
distribuíram pela mídia-empresa para a mídia e que não encontrava nem
jamais encontraria qualquer apoio em “prova hoje disponível.” Em
fevereiro de 2011, o secretário de Relações Exteriores William Hague
insistiu que teria visto “informação” que sugeria que Gaddafi estava a
caminho da Venezuela. Um “diplomata” não identificado dissera que se
tratava de “informação confiável”. Só que não era. Tratava-se do mesmo
tipo de notícia falsa que passa a nos ser impingido sem parar, à opinião
pública, cada vez que elites ocidentais põem-se a tentar “mudança de
regime”.
Em abril de 2011 a notícia em todos os veículos “sérios”, não
falseadores de notícias, rezava que Gaddafi (o qual, como adiante se viu
nunca fugira para Caracas), estava alimentando seus soldados com Viagra
“para estimular o estupro em massa.”
“As forças de segurança de Gaddafi e outros grupos na região estão
tentando semear divisões entre a população, usando violência contra
mulheres e o estupro como armas de guerra. Os EUA condenamos essas
práticas nos termos mais fortes” – “noticiava” a secretária de Estado
Hillary Clinton, a mesma cujos apoiadores estão hoje a se lamuriar com a
tal “política pós-verdade”.
Mais uma vez, nenhuma prova foi apresentada do tal Viagra distribuído
por Gaddafi para “estimular” estupros. Milagre, milagre: até hoje,
nunca apareceu nem vestígio de prova.
Vê-se aí um padrão bem claro. Para obter apoio das populações para suas guerras ilegais para mudança ilegal de regime, o establishment
ocidental promove ativa e empenhadamente incontáveis “falsas notícias”,
como se fossem notícias não falsas. Para assegurar a “credibilidade”
das notícias realmente falsas, elas são publicadas em veículos
indiscutivelmente “sérios” e passam a ser regularmente repetidas por
quantos comentaristas intervencionistas golpistas o dinheiro consiga
comprar, como a causa “indiscutível” da importância e da urgência de se
agir contra o tal Estado alvo. Fontes “anônimas” são sempre citadas
nessas histórias, a maioria das quais, como a Operação Apelo de Massa do
MI6, são muito frequentemente plantadas pelos serviços de segurança.
Simultaneamente, uma vasta brigada de atiradores de teclado de laptops
neoliberais põe-se a esbravejar que “alguma coisa tem de ser feita”; e é
a mesma multidão “ética” e “indignada”, vale anotar, que acusa os
políticos ditos “populistas” de ignorarem “fatos objetivos” e
manipularem as emoções populares.
As notícias falsas continuam no ar por todo o tempo que dure a
operação de mudança de regime. Depois que passa, todos passamos a ouvir
que temos de esquecer para sempre as notícias falsas das manchetes da
véspera, porque temos de concentrar todas as energias contra o próximo
“novo Hitler” que brote da boca da mesma Hillary. Em 2011 foi Gaddafi;
hoje são Assad e o desprezível Putin que, nos dizia sempre a mesma
(ex-)Hillary: “têm de ser detidos.”
A expressão pós-verdade implica que antes, em algum momento, a
política teria sido reino da mais pura verdade. Duvido que algum dia
tenha sido, mas com certeza nos últimos 25 anos, graças à influência dos
neoconservadores e dos “intervencionistas liberais” (?!), as mentiras
cresceram muito e já tomaram conta de tudo. Lembram das mentiras sobre
urânio do Niger? Sobre Saddam, “retaliador de cadáveres”?
E antes da guerra do Iraque, foi o bombardeio “humanitário” da OTAN
contra a Iugoslávia, quando novamente as falsas notícias (realmente
falsas!) dominavam o noticiário. O secretário de Defesa dos EUA William
Cohen “informava” que “cerca de 100 mil albaneses kosovares em idade de
serviço militar estão desaparecidos” (…) “podem ter sido assassinados”.
Como John Pilger não nos deixa esquecer, “Kosovo, local do genocídio
que nunca existiu, é hoje um sanguinário ‘livre mercado’ de prostituição
e drogas.”
Não foi a única descomunal mentira “noticiada” para vender a guerra
aos cidadãos. Mas outra vez “notícias” sobre o “genocídio” e centenas de
milhares de mortos eram absolutamente falsas, como se lê, até, em
sentença de um tribunal da ONU em 2001.
Noticiário falso, totalmente inventado, apareceu também em grande
quantidade na campanha dos neoconservadores para conseguir tornar
palatáveis as sanções criminosas contra o Irã, acusado de manter um
programa de armas nucleares que ninguém jamais viu – e que não existia.
Noticiário integralmente falso dominou a cobertura jornalística dos
recentes eventos na Ucrânia, com uma inexistente “invasão da Ucrânia”
pelos russos, sempre referida, comentada e criticada como se fosse fato!
O conflito na Síria também é quase exclusivamente objeto de
“noticiário” falso, com “informes” repetidos incansavelmente como se
fossem 100% comprovados. Quantas vezes o prezado leitor leu/ouviu que
“Assad usou armas químicas contra o próprio povo” em Ghouta em 2013? E,
isso, apesar de o único fato comprovado até hoje ser que ninguém sabe
com certeza e provas quem, afinal, foi autor daquele ataque!
As mesmas pessoas – políticos, jornalistas, “especialistas”,
mercenários ativos em várias áreas – que disseminaram tantas falsas
notícias por tanto tempo e que ainda vivem incorporados no establishment
político e nas mídia-empresas ocidentais, mesmo depois dos fracassos no
Iraque e na Líbia, puseram-se agora a espernear contra “mentiras”, pela
suficiente razão de que já não controlam a narrativa, como antes.
A opinião pública busca informação e notícias numa variedade muito
maior de fontes. E, nas eleições, já começou a eleger candidatos
populares, que os eleitores escolhem como bem entendam. Não
candidatos/partidos neoconservadores liberais ou não, e sempre
intervencionistas, como antes.
Em vez de admitir que esse é o resultado da prática diária,
obsessiva, de um oceano de “falsas notícias” e de incansável “política
de pós-verdade”, que afastou das empresas de mídia pró-establishment os eleitores (e consumidores de notícias em geral), o incansável lobby da guerra – afinal derrotado na eleição presidencial nos EUA – tem a audácia de acusar outros, pelos crimes que o próprio lobby da guerra comete sem parar há décadas.
Preocupados com “falsas notícias” e “políticas de pós-verdade”
criadas e disseminadas pelos incansáveis propagandistas ocidentais
pró-guerra?!
Difícil encontrar mais claro exemplo do que os psicanalistas conhecem como “projeção”.
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REPORTAGEM Por Neil Clark | Tradução: Vila Vudu
FONTE: http://outraspalavras.net/capa/quem-inventou-a-pos-verdade/ 01/12/2016
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