Ao contrário do que sugere o mercado, nossa força não está em
sermos indivíduos — mas parte de redes. Nelas pode estar a potência dos
comuns contra o medo
Quando observamos, casualmente, corpos andando pela cidade, podemos
nos dar conta da enorme quantidade de conexões e ações que fazem, de
cada corpo, parte de um processo onde corpos se produzem juntamente com
os ambientes de que são parte e expressam com suas formas quem são e
como lidam com suas vidas. Não é pouco para um lance de olhar. Mas está
aí para quem se dispuser a ver.
Nossa cultura visual nos ensina perfeitamente sobre a realidade dos
corpos, desde as vidas de elites e celebridades até as vidas em guerras,
desastres, migrações. E todos nós sabemos que os corpos nos permitem
ver como essas vidas dependem, simultaneamente, de si e dos jogos de
força que controlam os recursos do planeta.
Corpos mostram, o tempo todo, que são feitos de forças biológicas e
experiências de vida, estruturadas como carne. Músculos e ossos nos
particularizam e nos fazem existir como um corpo sólido e reconhecível.
As vísceras processam o ambiente na nossa profundidade secreta,
propiciando-nos as condições para prosseguir. A vida nos aparece como
algo muito individual, quando vivemos o corpo em nível de sua estrutura
visível ou de suas necessidades de sobrevivência. Mas, seria mesmo
assim?
Diferentemente do passado pouco distante, passamos a viver uma
conexão formando uma quase infinita rede mental que experimentamos o
tempo todo. Com a contração do planeta produzida pela velocidade dos
meios de comunicação, e a acumulação dos acontecimentos que a
cibercomunicação tornou ainda mais instantânea e abrangente, cada vez
mais estamos imersos nesse processo.
Em tempo real, as mentes pensam sem barreiras entre elas, em
ondas psíquicas que envolvem sua ação conjunta, seja através das redes
sociais, da telefonia celular, da informação de todo tipo, das
burocracias e tecnologias que nos controlam e regulam. Ondas de sentidos
e imagens, estados de espírito, sentimentos e desejos percorrem o
planeta. O que podem os corpos nessa condição tão ampla e geral?
Felizmente, podemos enxergar nos corpos sua dimensão perene e
vivenciar seu sentido em nossa relação com a vida, lembrando sempre que:
– as mudanças e adaptações que os corpos fazem são moldagens de si,
com aquele mesmo corpo feito dos mesmos tecidos que biologicamente se
tecem, de modo contínuo, com os elementos dos ambientes de que aquele
corpo é parte;
– corpos se movem, absorvendo esse mundo que está aí, formando a si mesmos em tempo real, visível e invisível, com as mesmas regras que a vida biológica necessita, e sempre necessitou, para se efetuar;
– cada corpo, numa corrente ininterrupta, canaliza, como sempre canalizou, a vida na biosfera, em linhas ininterruptas de corpos;
– corpos não estão dentro da biosfera, mas são a própria biosfera, e corpos são canais da própria vida buscando se sustentar no planeta.
A arte, hoje, desloca nossa percepção e experiência para esse
processo planetário. A ciência, também, com sua enorme divulgação pop,
nos permite ler, ver, assistir e absorver essa nova realidade ecológica.
Passamos a saber, na carne, que somos parte dessa comunidade biológica
que coloniza este planeta. Isso nos comunica uma enorme força.
Sabemos, contudo, também na carne, que hoje, mais do que nunca, esse
poder de colonizacão planetária que pertence à Vida está concentrado em
mãos cada vez mais numericamente reduzidas. A tradição dominante do
pensamento ocidental antropocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico nos fez
crer, durante séculos, que a criação inteira estava destinada ao homem
europeu, branco, macho, colonizador e proprietário do planeta. Essa
divisão leonina de direitos prossegue. Por outro lado, porém, as
pressões que sentimos em nossas vidas por parte das políticas
conservadoras e concentracionistas de poder sobre os recursos do
planeta, as redes digitais, a informação generalizada e os movimentos de
resistência micropolíticos, culturais e sociais nos fazem, hoje,
enxergar, saber e sentir profundamente essa realidade de que somos
parte. Isso se tornou inegável.
O corpo vem lutando biologicamente há bilhões de anos para manter-se
agregado dentro de ambientes os mais adversos. Os ambientes, hoje,
lembremos, são as condições físicas, afetivas, tecnológicas, econômicas,
informacionais, políticas, de linguagens, valores e sentidos integrados
entre si. Quando nos vivenciamos como corpos em processo de permanente
produção dentro de ambientes, passamos a enxergar e confiar que temos
recursos na nossa herança biológica para interferir nas formas de um
destino aparentemente invencível.
Nossa vida no mercado
O mercado, que desde os anos 1970 tornou-se mundial e integrado, é o
ambiente onde os corpos hoje nascem, vivem e morrem. De Nova Iorque ao
fundo da África, ecoa seu poder. Mas, diferentemente do poder moral das
famílias e das instituições, o mercado não vigia e pune como antes. Num
contínuo jogo de forças, ele exerce uma captura das forças formativas
nos corpos. O mercado age diretamente sobre a vida nos corpos e sobre a
forma que eles tomam para fazer suas dramaturgias, ou seja, sobre as
formas particulares de desejar e fazer-se corpo no mundo.
A produção constante de imagem e sentido onde estamos imersos é a
própria expressão do mercado. Ele inunda continuamente nosso espaço
corporal, agindo através de um duplo jogo: a ameaça de exclusão (e
desconexão) das redes que formam nossa realidade e a oferta de
configurações para nossa forma, que constantemente se desfaz sob o
efeito da velocidade e da intensidade dessas forças. Diante das ameaças
de exclusão que são continuamente mostradas nas mídias (violência,
miséria, desastres, destruição, desamparo, políticas sociais, etc), os
corpos reagem, como todo e qualquer animal, acionando em si o reflexo do
susto: recolhem-se, fecham-se, desligam-se do ambiente e de suas redes,
e muitas vezes fragmentam-se em pânico, como o bicho diante do
predador. O reflexo da imitação se desencadeia, imediatamente, e nos faz
mimetizar o ambiente. Esse ambiente é o próprio mercado nos oferecendo,
como salvação, formas de vida que aparentemente funcionariam como
bordas para nossa desorganização. Fundimos com o ambiente para deixarmos
de ser alvo das forças de exclusão. É a vida funcionando como no tempo
dos animais.
Mas, quando aprendemos pela experiência como se fazem corporalmente
esses reflexos, podemos desenvolver estratégias para desfazê-los, numa
prática combinada de músculos e sistema nervoso. E ao desfazer esses
reflexos fatais para a nossa autonomia e diferenciação, desfazemos um
enfeitiçamento. Acordamos para nos vivenciar como corpos comuns e passar
a gerar os comportamentos necessários para sustentar conexão com as
redes, próximas e distantes.
A rede mundial do mercado, como sabemos, é explorada por uma reduzida
rede de poder, que corresponde a 1% da população. E nós, os restantes
99%, somos a multidão de corpos comuns. Diferentemente do que o mercado
tenta, e muitas vezes consegue nos convencer, nossa força está
exatamente em não sermos especiais. Nossa força está em lutar e
amadurecer para a evidência de que a vida se dá em rede e que é possível
funcionar como parte. Deter-se sobre a nossa presença física, sua forma
e suas conexões, nas diferentes condições que vivenciamos, passa a ser a
base de uma vida normal.
O próximo passo é identificar-se corporalmente com a forma das ações
que produzimos para sustentar quem somos, sintonizando com o sentimento
que se desprende daí – um sentimento a ser praticado e cultivado. A
realidade corporal passa então a nos guiar, mais e mais, na relação com
outros corpos e na criação conjunta de ambientes mais oxigenados –
porque reais e presentes. Esse é o pulo do gato.
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REPORTAGEM por Regina Favre
Fonte: http://outraspalavras.net/sociedade-2/o-corpo-entre-o-individual-e-o-coletivo/ 30/11/2016
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