sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A escola sem manual de instruções

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Imagem: Rui Palha

 

O paradigma da transmissão de saber tornou a sala de aula um baluarte de certezas e ordem. Mas podemos recriá-la como espaço de crítica e experimentação, onde a teoria é amiga dos saberes mundanos. Isso vale para escolas – e para a vida


Na sala de aula a transmissão do saber é considerada um fato inquestionável. O saber é transmitido dos professores aos alunos, dos centros para as periferias e das metrópoles para as colônias. Todo o aparato educacional, desde seus manuais ou leis até suas salas de aula ou prédios, reivindica a certeza da transmissão com fé cega.

Não é fácil questionar o axioma civilizacional de que o conhecimento vai daqueles que sabem aos que não sabem, dos de cima para os de baixo e, já em termos geopolíticos, do norte para o sul. E assim facilmente as práticas de tutelagem, as políticas de dependência e as economias de escassez são legitimadas. A ordem precisa de regras tão simples quanto eficientes. Se a gravitação universal descreve como os corpos caem, a da transmissão global prescreve como os conhecimentos circulam.

Os livros são repositórios de certezas; os professores, mentores daquilo que é certo; as salas de aula, caixas de ressonância sincronizadas; e as escolas, baluartes da melhor ordem possível. Cada aula é uma confirmação da estabilidade que necessitamos e as provas é de que estamos no caminho certo. A transmissão do saber é o fio que costura tudo, a seiva que alimenta o organismo e a pedra que sustenta a construção.

Temos evidências, no entanto, de que as coisas poderiam ser contadas de outra forma. Há alguns dias eu estava lendo um texto do meu amigo brasileiro, Moises Alves de Oliveira, que descreve o que significou a introdução do ensino de química experimental nas escolas do Brasil. Desde o final do século XIX, tornou-se constante a prática de adquirir instrumentos científicos em escolas de todo o mundo para, assim, estimular os alunos a entrarem em contato com a natureza experimental de certos saberes. Supõe-se que os alunos replicaram experimentos e verificaram o que seu manual sentenciava.

Os experimentos então, vistos a partir da sala de aula, eram o meio utilizado pelos cientistas para confirmar suas teorias e os alunos aprendizes do certo. Em química, no entanto, com frequência acontecia de os reagentes necessários estivessem vencidos, contaminados ou degradados. Os professores tiveram então que suprir essas deficiências inovando os procedimentos para conseguir que os resultados se aproximassem o máximo possível do que prescrevia o manual de instruções.

Os professores pensavam que sua função consistia em confirmar o que já era sabido. Falhar era impossível. E, quando isso era inevitável, atribuíam o fracasso incipiente à sua incapacidade de replicar ou à sua incompetência em atuar como um verdadeiro acadêmico. O sistema conspirava para que as regras fossem cumpridas e que fosse rechaçada qualquer sombra de incerteza. Os professores eram obrigados a mostrar que em sua sala de aula as leis da natureza também era cumpridas. E eles se ajustavam para conseguir isso. E para alcançá-lo, obrigaram-se a um exercício de inovação que convertia a sala de aula em um verdadeiro espaço de experimentação.

A sala de aula deixava de ser um espaço concebido para a transmissão de saber e convertia em um espaço de produção. Já não se trabalhava para confirmar o que se sabia, mas para entender as condições de produção dos fatos confiáveis. Os professores não atuavam como técnicos de laboratório submissos e neutros. Eles não eram um simulacro de cientistas, pois as circunstâncias os obrigavam a operar como fazem os pesquisadores profissionais. Tiveram que abrir mão do propósito prescrito e inventar como trabalhar a partir do aproximado, do incompleto e do provisório.

Eles descobriram o usual nas práticas experimentais. Aprenderam que na ciência não existe o perfeito e que tudo permanece sempre em aberto: nada é absoluto ou definitivo. Para o nosso professor de química citado, ensinar não era transmitir o que já se sabia, mas experimentar o que era possível. Ensinar deixou de ser um ofício retórico e se converteu, como nos ensina Jorge Larrosa, em um trabalho para artesões. Aprender, como consequência, não era replicar, mas refazer, reconfigurar ou redesenhar.

O exemplo do professor de química brasileiro não é anedótico. Recordamo-lo porque nos convida a considerar a sala de aula como um espaço crítico, um lugar onde nunca ocorrem as condições ideais de replicação imaginadas nos gabinetes ministeriais ou nos manuais de instruções. Um lugar, então, onde os professores estão sempre improvisando, onde a cada dia a ordem ameaçada é restaurada, onde tudo é instável, inseguro e inefável. A sala de aula seria então um dos espaços por excelência da crítica.

Passamos décadas pensando em como fazer manuais de instruções. É fundamental para organizações industriais ou administrativas que a mediação entre produtos e usuários seja feita por um simples manual de instruções. Isso poupa muito trabalho e muito tempo. Um bom manual de instruções estabiliza o mundo, cria a ilusão de que as coisas funcionam e de que tudo está sob controle. Os fatos, porém, demonstram que os usuários não entendemos o que nos dizem e que estamos sempre improvisando. Não é que eles estejam mal redatados ou que não tenha havido inteligência em sua construção. Não é isso. O problema é que o usuário médio a quem são direcionados não existe. Não é que sejamos estúpidos, mas sim que somos muito criativos. Os manuais de instruções, inclusive os interativos, assumem que a linguagem não é polissêmica, que o leitor é imparcial e que as circunstâncias são neutras. Mas isso nunca ocorre. Tampouco na sala de aula.

As máquinas geram seu mundo. Nos colocam a seu serviço. E esperam que o façamos sem resistência. Um manual de uso não se limita a nos dizer como usar uma máquina corretamente, mas contém o germe de um princípio de subordinação. Nos treina para aceitar que só é possível o mundo garantido pelas infraestruturas. E por isso faz tanto sentido falar de infraestruturas como garantia dos nossos direitos e como epítome da economia dos cuidados. O fato dos manuais de instruções parecerem pouco claros, assim como a relutância em obedecê-los, contém a esperança de que as coisas possam ser diferentes de como os projetistas as imaginaram. O que sabemos é que a relação entre humanos e máquinas não é entendida como uma interação entre duas entidades independentes, mas devemos imaginá-la como uma relação de coprodução mútua.

Na sala de aula quase nunca acontece o que quem fez os materiais didáticos imaginou. O imprevisível sempre acontece. Nunca impera isso que chamamos de normalidade. O normal é uma ficção burocrática, distante e abstrata, como conta Paulo Freire em El maestro sin recetas. E embora todo o panorama educacional esteja repleto de leis, portarias, instruções, manuais e materiais didáticos, a verdade é que deveríamos entender melhor o que acontece na sala de aula, assumindo que o caos é o contexto onde a educação acontece. E mais do que censurar os professores que não sabem, não entendem ou não se esforçam, deveríamos imaginá-los como atores experientes em inovação pedagógica.

A sala de aula, então, não seria um espaço para transmitir o saber, mas sim para experimentar com os manuais de instrução e com a precariedade de materiais, das temporalidades e dos resultados. Nada é como foi imaginado, mesmo que se pareça, e reconhecer essa nuance equivale a admitir que não improvisamos por ignorância, mas por responsabilidade. O paradigma da transmissão teria de ser substituído pelo da experimentação. À escola não iríamos à escola para adicionar novos conteúdos, mas para adaptá-los às nossas circunstâncias.

E se vale a pena na escola, deve valer na vida. As escolas, de repente, estariam cheias de pessoas talentosas e dedicadas, em vez de ocupadas por pessoas preguiçosas, obsoletas e reformáveis. A sala de aula não seria imaginada como mais um espaço de escassez, mas como um espaço criativo, emergente e inovador. As leis, como outros manuais de instruções, em vez de focarem na suposta necessidade de mudar a vida na sala de aula, deveriam se reconciliar com a ideia de que a experimentação é o motor do que ali acontece. E isso implica confiar, porque o melhor dos livros de receitas e de qualquer outra forma de ensinar é que nos obrigam a improvisar para que eles sejam adaptados ao contexto em que vivemos. E chamamos isso de aprendizado.

Por Antonio Lafuente | Tradução: Rôney Rodrigues

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