Ticiano Osório*
Produzido entre 1976 e 1978 por Osamu Tezuka, mangá "MW: Psicopatia Profana" é lançado no Brasil
Conhecido como Deus do Mangá, Osamu Tezuka (1928-1989) travestiu-se com a fantasia de um vilão endiabrado para escrever e desenhar MW: Psicopatia Profana, que foi publicado originalmente entre 1976 e 1978 no Japão e está sendo lançado agora no Brasil. A edição é da Pipoca & Nanquim, com tradução de Drik Sada, 588 páginas e preço de R$ 99,90.
Se você não conhece Tezuka, pode-se dizer que ele está para o Japão como Walt Disney está para os Estados Unidos e Mauricio de Sousa está para o Brasil. Foi com obras voltadas ao público infantojuvenil e uma coleção de personagens marcantes que ele contribuiu para a popularização dos mangás e consolidou seu nome no mercado de quadrinhos. Seu primeiro sucesso foi Nova Ilha do Tesouro (1947). Depois vieram Kimba, o Leão Branco (1950-1954), Astro Boy (1952-1968) e A Princesa e o Cavaleiro (1953-1956), três títulos que viraram desenhos animados — Tezuka também é um dos pioneiros dos animes.
Mas diferentemente de Disney e de Mauricio, a produção cultural do mangaká não está associada apenas às crianças e às famílias. Tezuka também dedicou-se aos leitores adultos, abordando temas que vão da sexualidade à criminalidade, passando pela espiritualidade, exibindo versatilidade nos gêneros adotados.
Em O Livro dos Insetos Humanos (1970-1971), satiriza o materialismo e o capitalismo (e também o machismo e até o feminismo). Em Ayako (1972-1973), a partir da decadência de uma família aristocrata, traça um monumental painel do Japão pós-Segunda Guerra Mundial. Em Buda (1974-1984), biografa Sidarta Gautama, o fundador do budismo, religião surgida na Índia entre os séculos 6 e 4 antes de Cristo. Em Recado a Adolf (1983-1985), reconstitui a ascensão do nazismo e a eclosão da Segunda Guerra usando o ponto de vista de três homens com o mesmo prenome: Adolf Kamil (um filho de judeus), Adolf Kauffmann (filho de um nazista com uma japonesa), e o próprio Adolf Hitler.
MW nasceu de uma vontade de "romper com o convencional estilo Tezuka e escrever um drama picaresco daqueles de deixar os leitores boquiabertos", o autor explica no curtíssimo posfácio incluso no minguado material extra do volume editado pela Pipoca & Nanquim — seria bem-vindo, por exemplo, um texto analítico que desse conta da recepção a MW em seu tempo e dos quadrinhos que influenciou, desde os mais evidentes (Monster, publicado entre 1994 e 2001 pelo também japonês Naoki Urasawa, um discípulo que mais tarde, no mangá Pluto, reverenciou Astro Boy) até os mais insuspeitos (há quem encontre ecos em V de Vingança, minissérie britânica escrita por Alan Moore e ilustrada por David Lloyd entre 1982 e 1989). "Queria abordar toda espécie de mal da sociedade — a violência, a traição, o estupro, a luxúria, as pessoas sem opinião própria e influenciáveis, os ineptos e indiferentes... Queria abordar, principalmente, o mal da política como sendo a maior de todas as perversões."
O mangá começa sob o signo do choque: a polícia procura o sequestrador de um menininho, que, apesar de receber o dinheiro do resgate, acaba matando tanto o refém quanto o pai da criança. Nas páginas seguintes, vamos conhecer os principais personagens e o significado do título.
MW é o nome de um gás tóxico que dizimou a população de uma pequena ilha, a fictícia Okinomafune — trata-se de uma referência explícita ao emprego de armas químicas pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1955-1975).
Mas a junção das letras M e W — uma o reverso da outra — também pode ser lido como uma representação dos caminhos opostos seguidos pelos dois únicos sobreviventes da tragédia. O ex-delinquente Garai abraçou o sacerdócio, Michio Yuuki tornou-se um vilão hediondo.
E há ainda um terceiro sentido para o título MW: a abreviação de man e woman (respectivamente, homem e mulher, em inglês). Pois o jovem Yuuki é um personagem que volta e meia assume identidades femininas e que pode ser definido como bissexual, embora seus relacionamentos com mulheres sejam movidos mais por interesses econômicos, políticos ou criminosos (ou tudo ao mesmo tempo) — o envolvimento amoroso e o prazer carnal ele tem com o padre Garai.
Aos olhos da época, Tezuka demonstra coragem ao retratar cenas de sexo entre dois homens. Aos olhos de hoje, o mangaká é no mínimo problemático: romantiza um episódio de abuso sexual de um adolescente com uma criança e, no início da história, sugere que a bissexualidade ou a homossexualidade de Yuuki está ligada ao desvio moral ou à psicopatia que leva o personagem a cometer atrocidades. Como se tivesse sido alertado por alguém ou como se tivesse se dado conta dessa visão preconceituosa, centenas de páginas adiante o autor introduz na galeria de coadjuvantes uma jornalista que parece ter uma única função: afirmar que "no mundo todo, é só no Japão que o amor homossexual é discriminado". Logo após ela é vista aos beijos com sua namorada, e depois some para nunca mais reaparecer.
O padre Garai sofre por amar Yuuki ("Ó, Senhor! Que Seu julgamento recaia sobre mim!") e teme que seus segredos venham à tona. Mas o que mais atormenta a sua consciência é a dúvida sobre como agir em relação aos crimes relatados por Yuuki no confessionário: já pensou várias vezes em entregá-lo para a polícia e a Justiça, mas entende que assim, além de quebrar o sacramento do sigilo, falharia na missão de "salvar a alma" do jovem.
Enquanto Garai debate-se entre a culpa e o desejo, Yuuki vai aumentando sua ficha criminal — e Osamu Tezuka vai exigindo cada vez mais do leitor a suspensão da descrença. Entretanto, a trama rocambolesca de MW, cheia de vinganças e reviravoltas (sendo que uma das mais importantes é bastante previsível), é fartamente compensada pelo que o mangá tem de melhor.
Como de hábito, a narrativa visual de Tezuka é um desbunde. Ora a montagem acelera a ação, ora ele lança mão de um desenho realista para aumentar a dramaticidade, ora contrapõe um traço mais cômico a uma situação de suspense, ora recorre a sombras, vultos e silhuetas, ora transforma personagens — que viram figuras carregadas de simbolismo — e cenários em meio a uma cena (vide as páginas 84 e 85).
Como expresso no posfácio, Tezuka aproveita a trajetória de um indivíduo perverso para falar de perversões coletivas. Ataca a ganância de banqueiros e empresários, a corrupção de governantes e deputados, a subserviência japonesa aos Estados Unidos, o radicalismo político, o sensacionalismo da imprensa. Em um dos pontos altos, compara os planos homicidas de Yuuki às ações militares: "Pensando bem, a bomba atômica também foi um assassinato em massa!", reflete o padre Garai, que emenda com uma difícil pergunta a Deus: "Por que permite isso aos humanos? Por que nos faz seguir o caminho da autodestruição?".
Sobra para a sociedade também, regida pela aparência, pela hipocrisia e pela omissão — não à toa, o autor convoca o personagem do promotor Meguro a fazer duas vezes um alerta válido a diversos problemas que não são devidamente enfrentados porque talvez contem com a nossa conivência (pode-se colocar na lista o racismo, a cultura do estupro, a sonegação fiscal...):
— Quem comete o pior mal de todos é aquele que testemunha um crime e fecha os olhos para ele! Para acabar com a perpetuação desses crimes, a sua coragem se faz necessária.
*Jornalista
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/ticiano-osorio/noticia/2022/11/o-romance-entre-um-padre-atormentado-e-um-assassino-bissexual-clak1syj8003t0170l7rdhpww.html
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