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Recentemente fui desafiada a algo que não esperava. Provavelmente deveria começar a ensinar a minha filha a prevaricar, disse-me o meu pai. Foi a palavra escolhida. O sentido era o de rebeldia, de desobediência. Eu fiquei a pensar. Pisar o risco é importante. Não se ser sempre acertado ou responsável, claro que sim. Mas de repente senti-me confusa na minha postura. Porque se estou a educar, como ser as duas faces da medalha? Ainda para mais, vivemos na Alemanha. Na Alemanha cumprem-se as regras. Não me parece que seja por amor ao certo, ao correcto. Cumprem-se regras porque as regras são para ser cumpridas. Porque o não cumprir pode trazer descontrolo ou contas para pagar. As crianças são aqui crianças à brava, mas sabem, desde muito pequenas, onde estão as linhas vermelhas. Tentei arrumar o assunto, adiar talvez por uns anos.
Gandhi, para mim, tinha sido um homem pela não-violência, um líder espiritual. Tinha alguma ideia das greves de fome e das prisões durante o processo de independência da Índia. Gandhi tinha sido assim, vagamente para mim, até ver o filme. O filme não é o homem, mas o filme marcou-me. Gandhi foi um homem politicamente muito envolvido e combativo. Ele viveu determinado a conseguir a Justiça, a não exploração, a igualdade. Os direitos defendidos com firmeza, com dignidade e com desobediência. “Não lutaremos mas não sucumbiremos.” Pacificamente, sem violência, mas sem cooperação. A prática da resistência civil. Podiam prendê-lo, tirar-lhe tudo o que tinha, partir-lhe os ossos, mas não teriam a sua obediência. Terá chegado a dizer que acreditava que seria possível enfrentar Hitler com não violência, mas não sem muito sofrimento. Mas com a guerra não estava também a haver muito sofrimento?
Passou mais de um ano e eu continuo a pensar muito naquela forma de luta. Um mundo cheio de guerras, cheio de vítimas. E medo. Até medo das vítimas. Um mundo de exaltações febris, instantâneas e irracionais. Mais medo e mais ódio e mais morte. Nos nossos dias comuns também não faltam pessoas com vontade de agredir. Falta desobedecer. Não apenas resistir, desobedecer mesmo. A brutalidade deve ridicularizar-se na falta de resposta bruta.
Há alguma dúvida de que as guerras não servem nenhum povo? Há alguma dúvida de que as guerras não são políticas ou ideológicas? As guerras são negociatas aos mais altos níveis, para enriquecer um punhado de homens e mulheres de negócios. Porque aceitamos? Porque patrocinamos? Porque obedecemos?
E o negócio da saúde? E o negócio do ensino? E o negócio da Natureza? Podemos obedecer? Vamo-nos deixar agarrados aos ecrãs? Já dizia magoado o José Mário Branco “Entretém-te filho, entretém-te.”
Precisamos de inteligência. Precisamos de irreverência. A “Garota não” escreve: “Podem decretar o fim da arte/ E a gente faz uma canção sobre isso.”
Essa desobediência da não submissão, da resposta firme e nunca agressiva. Essa desobediência que se aprende com a arte e o respeito profundo por todas pessoas. Essa desobediência gostava muito de saber ensinar à minha filha.
*Inês Patrício é médica, vive em Berlim com o marido de olhos de mar e uma filha solar.
Fonte: https://setemargens.com/desobediencia/?utm_term=a%3F%3FNada+fizemos+para+que+o+mundo+nos+agrade%3F%3Faa%3F%3F&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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