Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
Elisabeth Roudinesco — Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo
Para biógrafa de Freud e Lacan, o novo fascismo recorre a desejos presentes no povo e a democracia não é defendida como deveria
O último livro da historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Sigmund Freud e Jacques Lacan, provocou reações fortes, sobretudo à esquerda. “O eu soberano: Ensaio sobre as derivas identitárias” (Zahar) identifica um fundo comum às pautas nacionalistas da extrema direita e às demandas sociais fundadas no gênero e na raça: uma paulatina expansão do individualismo que, para a autora, reduz o espaço para a atuação pública e as reivindicações sociais e políticas.
Os críticos acusaram o livro de recair em seu próprio tipo de identitarismo: aquele dos brancos, heterossexuais e europeus. O uso do termo “epidemia” para se referir à expansão das transições de sexo entre jovens foi um dos principais alvos. Também recaíram críticas sobre o que foi identificado como nostalgia de um universalismo que seria, na verdade, expressão do ponto de vista europeu sobre o mundo.
Em outubro, Roudinesco apresentou a palestra “Tecnologia, pulsão de morte e derivas identitárias” no evento Fronteiras do Pensamento. A apresentação retoma alguns dos principais temas do livro, acrescentando o papel de dispositivos técnicos contemporâneos na expansão do individualismo e do narcisismo. Nesta entrevista, a pensadora comenta as críticas que recebeu e esclarece algumas de suas posições.
No ano passado, Roudinesco e seu marido, o editor Olivier Bétourné, fundaram o Instituto de História e Luzes do Pensamento (IHLDP), que realiza encontros e colóquios sobre temas da atualidade. Segundo a intelectual, o instituto nasce de uma vontade de combate a tendências contemporâneas que manifestam um certo espírito oposto ao Iluminismo. A veia combativa de Roudinesco se manifesta também em inúmeras intervenções na imprensa, em que trata de temas contemporâneos como os de “O eu soberano”, além de denunciar obras e eventos que, embora universitários, revestem um cerne anti-intelectual.
Em janeiro, ocorreu na Sorbonne um seminário dedicado a bombardear o legado de importantes pensadores franceses da década de 1970, sobretudo Jacques Derrida, teórico da “desconstrução”. Organizado pelo filósofo Pierre-Henri Tavoillot, o evento teve a presença do então ministro da Educação da França, Jean-Michel Blanquer.
Em reação, Roudinesco publicou o artigo “As derivas não se combatem com a guerra à inteligência” no diário “Le Monde”. “Esse foi o encontro mais estúpido e reacionário que já vi”, comenta. “E aconteceu em um dos mais belos anfiteatros da Sorbonne. Foi inacreditável ver tanta ignorância. Um delírio.” Segundo a intelectual, o jornal ofereceu aos organizadores o espaço para que respondessem a seu artigo. “Como professores universitários, tinham a obrigação de responder. Mas não responderam. Afinal, o que eles teriam para dizer?”
Valor: “O eu soberano” suscitou muitos debates no Brasil, e suponho que não tenha sido diferente na França...
Elisabeth Roudinesco: Oh, là là! Fui alvo de todas as injúrias. Principalmente vindas da esquerda mais radical. O ponto que mais causou reações foi a questão das crianças transexuais, porque escrevi que está sendo tratada de um jeito errado. Usei a palavra “epidemia”, que talvez não fosse a mais adequada. Em todo caso, esses ataques pararam, porque a coisa ficou séria. Houve associações que começaram a me acusar de homofobia e sofri ameaças. Homofóbica, eu, depois do tanto que me manifestei pelo casamento de homossexuais na França na década de 1990! Em todo caso, isso já passou. Meu princípio é buscar sempre a nuance, não o insulto. Hoje, o que há de mais revolucionário é a nuance.
Valor: Mas não houve discussões aproveitáveis?
Roudinesco: Houve. O livro colocou o debate na praça pública. Fizemos um colóquio sobre a questão da transidentidade, com clínicos que cuidam de crianças. A transidentidade é uma questão real na nossa sociedade. Os casos de crianças que querem mudar de sexo se multiplicaram em várias partes do mundo. E houve excessos de mudança de sexo entre adolescentes. Por outro lado, esses jovens são muito atacados pela direita e também pelos psicólogos clínicos, que são tradicionalistas.
“O engajamento coletivo está muito difícil. Como resultado, o mundo inteiro está se voltando para posições identitárias, nacionalistas”
— Elisabeth Roudinesco
Valor: Esse é um reflexo da crise da psicanálise, sobre a qual a sra. escreveu?
Roudinesco: Sem dúvida. Na França, os psicanalistas têm boa parte da responsabilidade. A partir de 1997, quando criaram o mecanismo legal de união homoafetiva, e depois o casamento, 70% dos psicanalistas franceses eram contra. Eles injuriavam os homossexuais, com posições retrógradas e agressivas. Fui à televisão para apoiar a mudança da lei. Por isso achei engraçado quando me trataram como homofóbica. Hoje, o mundo da psicanálise na França se divide em dois extremos: os adeptos do queer e os adeptos da família tradicional, verdadeiramente reacionários. A psicanálise entrou em completo descrédito.
Valor: Voltando à transidentidade, o que se concluiu no colóquio?
Roudinesco: Comparando com o que ocorreu na época da união entre pessoas do mesmo sexo, estamos tratando de algo completamente diferente. O homossexual não precisa da medicina para viver sua vida. Não é preciso uma cirurgia, nem acompanhamento psiquiátrico. No caso do transgênero, existe a necessidade da cirurgia. Não é possível estar completamente desmedicalizado. É preciso um tratamento endocrinológico. E são operações muito intrusivas. Minha posição é que quando se é maior de idade, pode-se fazer o que se quiser. Mas e as crianças? A partir de que idade é possível dar consentimento? Sou a favor da regulamentação sobre os menores. Na França, atualmente, não se pode operar os jovens de menos de 18 anos. E também sou favorável à regulamentação dos tratamentos hormonais dos jovens abaixo de 15 anos. Essa é a idade da liberdade sexual oficialmente. Hoje, bloqueadores hormonais são dados a pessoas mais novas.
Valor: No fim de outubro, seu instituto realizou um debate sobre a diferença sexual...
Roudinesco: Ela ainda existe, essa diferença anatômica!
Valor: Discutiu-se tanto a diferença sexual quanto o gênero, buscando relacioná-los para evitar o binarismo biológico sem negar a biologia. Como é essa relação?
Roudinesco: Há um grande mal-estar na juventude, e ela se engaja fortemente nesses temas de gênero e sexo. Muitas vezes, vale dizer, em detrimento da política e do social. Muitos jovens se veem em um espaço intermediário entre os sexos. Isso, na verdade, é bem frequente na pré-adolescência. Sempre aconteceu. Eu, por exemplo, era uma menina que se vestia como menino. Havia muitas. Hoje, há uma tendência forte a identificar diretamente sexo e gênero, inclusive para quem se identifica de maneira diferente. O reconhecimento da diferença entre sexo e gênero permite que, por cima da base anatômica, seja qual for, em seguida uma pessoa construa qualquer coisa. Pode-se viver de múltiplas maneiras, vestindo-se de inúmeros jeitos. A questão da identidade não se coloca enquanto não houver intervenção da medicina.
Valor: Porque ela torna possível mudar o próprio corpo?
Roudinesco: Claro. Mas também, hoje, existe a tendência de retornar as questões psíquicas sobre os corpos. Recorremos muito ao corpo, inclusive para expressar um desconforto de identidade. Penso nas tatuagens: é incrível o número de jovens que fazem tatuagens hoje. Outro fenômeno contemporâneo é o gosto por ser operado, graças a progressos da cirurgia estética. Isso tem levado pessoas muito jovens a fazer plástica. Não é mais só uma questão de lidar com o envelhecimento. Hoje, respondemos aos problemas psíquicos através do corpo. Antes, dizia-se: estou somatizando! Ou seja, um problema psíquico se traduz como algo que ocorre no corpo. Hoje pensamos que o psíquico se expressa por meio do corpo. O corpo tem um lugar, claro. É inegável a relação entre o corpo e o psíquico. É claro que há progressos aí. Mas não se pode resolver tudo pela via cirúrgica.
Valor: Grande parte dos eventos realizados e dos textos publicados por seu instituto tem um tom combativo, denunciando movimentos obscurantistas e antidemocráticos. A iniciativa nasce de uma intenção combativa?
Roudinesco: Sem dúvida. O instituto existe para se contrapor a um espírito anti-iluminista que tem vicejado no mundo, além de outras divagações obscurantistas que marcam nosso tempo. Estamos em plena época da loucura.
Valor: Na conferência que a sra. realizou no Brasil, a sra. chega a falar de um mundo que está acabando. O que atravessamos é mais do que uma crise? É uma transição de época?
Roudinesco: Acredito que sim. As redes sociais, o individualismo, o narcisismo, tornam o engajamento coletivo muito difícil. Como resultado, o mundo inteiro está se voltando para posições identitárias, nacionalistas, xenófobas. É um processo lento, que, pela cronologia que coloquei em “O eu soberano”, começa com a queda do muro de Berlim. Mas o raciocínio vale para o mundo inteiro. Na Europa, o que se passa é catastrófico. E seja com Putin, seja no continente indiano, na China, em toda parte, as ditaduras estão comendo pelas beiradas. A democracia está muito fragilizada. Mais perigoso ainda é que algumas posições de esquerda que, no começo, eram positivas, acabam alimentando a extrema direita. Estamos bem no meio disso. Hoje, não me preocupo tanto com o risco nuclear, mas sim com a fragilidade da democracia, porque as pessoas na verdade não a defendem tanto quanto deveriam.
Valor: A página de seu instituto na internet se abre com a bandeira europeia e a ucraniana. Essa guerra é um símbolo da nossa época?
Roudinesco: Gosto muito do heroísmo, admiro os povos que lutam pela sobrevivência. Concordo com a política euro-americana de apoiar os ucranianos. As consequências, porém, são terríveis, sobretudo no campo econômico. Sem dúvida, esta guerra é um sinal do nosso tempo, sobretudo pela banalização do risco nuclear. É um tabu que parece ter caído. Vivemos em uma época em que todos os valores desenvolvidos nos últimos séculos são abalados. Eu não esperava que os povos se voltassem tanto para a direita, que a social-democracia fosse varrida desse jeito.
Valor: No discurso de vitória de Giorgia Meloni, nova premiê italiana, a identidade foi um tema central. O que esperar de seu governo?
Roudinesco: Ela fez uma lista de identidades como fundamento de sua política. Em todo caso, acho importante frisar que ela provavelmente não vai ter o papa ao seu lado. Um papa argentino, de esquerda, não creio que possa apoiar um governo desses. Além disso, acho que vai haver menos extremismo que em outros governos parecidos, formados por gente incompetente e estúpida. Pelas indicações de ministros, parece que não vai atacar a União Europeia, por exemplo. Com essas pessoas, é sempre um drama, porque nunca fazem o que dizem. Isso pode acabar sendo bom, porque o que dizem é péssimo. Mas é uma bagunça, uma cacofonia. Essas pessoas são capazes de tudo.
Valor: Quando surgiram nomes como Marine Le Pen, Donald Trump, muita gente pensava...
Roudinesco: ...que jamais chegariam ao poder!
Valor: Não só chegaram, como têm se mostrado resistentes. A que se deve essa resistência?
Roudinesco: É porque se trata de um cenário em que as classes populares abandonaram a esquerda. Que, por sua vez, abandonou a ideia de mudar o mundo, o horizonte comunista e até mesmo socialista. O que resta para o povo são essas posições de proteção a identidades nacionais. Esse novo fascismo é mais próximo de Mussolini do que do nazismo, apesar das comparações equivocadas. É um fascismo muito fundamental, que recorre a desejos presentes no povo, a territórios e mitologias. É o contrário do internacionalismo que caracterizava a esquerda. O fascismo italiano se baseava na superioridade dos brancos, é verdade, mas não no extermínio dos outros, como o nazismo. A ditadura italiana, que teve apoio empresarial e do Vaticano, se concentrava no anticomunismo, não na pureza racial.
Valor: E o atual? É esse caráter menos exterminador que garante sua sobrevivência?
Roudinesco: É uma ideologia mais diluída, mais presente na sociedade como um todo, embora atraia também os grupos neonazistas, que de fato existem. Se olharmos a extrema direita francesa, por exemplo, é um modelo perfeitamente fascista. E tiram muito de seu poder da capacidade de se aliar a forças religiosas, sejam os católicos na França, os ortodoxos na Rússia, ou protestantes em outros países. Vale lembrar que essas ditaduras que duraram tanto tempo na Europa, como Mussolini, Franco, Salazar, eram ditadores com grande apelo popular e que faziam políticas sociais.
“Fico impressionada que grande parte da população pobre vote em candidatos a ditadores, gente muito rica e que odeia os pobres – Elisabeth Roudinesco
Valor: Outra crítica a seu último livro se dirige à defesa do universalismo, que seria um princípio eurocêntrico. Em Besançon, seu instituto organizou um evento sobre esse tema, anunciando a necessidade de um “novo universalismo”. Como seria?
Roudinesco: Não faço parte dos que opõem o universalismo às diferenças. Para mim, o modelo mais interessante é o de Claude Lévi-Strauss: não se pode pensar o universal sem as diferenças das culturas, e não se pode pensar a diferença sem conceber um certo universal. É claro que sou universalista, mas há uma certa ingenuidade em querer negar as origens, assimilá-las completamente. O modelo francês da laicidade é interessante por esse motivo e deve ser defendido. Mas não pode ser aplicado em outros países. Nem no Brasil, nem nos Estados Unidos, onde há uma base religiosa, o presidente assume jurando sobre a Bíblia. Somos herdeiros da revolução e do Estado jacobino, mas querer estendê-lo para o resto do mundo não é bom. Na Inglaterra tem uma monarquia constitucional e assim por diante. Não sei como descrever o caso brasileiro, mas me interessa muito o fato de que a população é misturada, não tem a mesma divisão racial evidente dos Estados Unidos. Na Europa, algo assim seria o pesadelo da população branca: deixar de ser tão branca.
Valor: O problema de fundo é racial?
Roudinesco: Fico impressionada que grande parte da população pobre vote em candidatos a ditadores, gente muito rica e que odeia os pobres. Mas sabemos por que isso acontece: é o medo da mistura racial. É o ódio à imigração. Nos Estados Unidos, nas regiões mais profundas do país, esses votos expressam claramente o medo dos brancos de perder seu lugar para os negros. É o ódio da mistura. Quanto às esquerdas, o problema é que não se renovaram. A queda da União Soviética foi um baque terrível, porque não só o comunismo real implodiu, como reduziu o espaço para políticas social-democratas. Mas os movimentos populares vão voltar. Já estamos vendo algo acontecer. Há um excesso de desigualdade.
Valor: E o universalismo novo está emergindo?
Roudinesco: Tem que emergir. Não podemos nos sustentar mais em posições dogmáticas. Na França, isso se manifesta pela passagem da assimilação à integração. A verdadeira laicidade é também o direito de ser diferente. A geração do meu pai, que imigrou da Romênia em 1904, queria mudar de nome, afrancesar-se, e de jeito nenhum marcar suas origens romenas. Esse era o caso de todos os judeus romenos, que eram francófilos. Hoje, as populações imigrantes, que vêm mais do norte da África ou da África subsaariana, querem guardar suas origens e seus costumes, e não estou falando daqueles que rejeitam a França, estou falando dos que se integram, que são perfeitamente franceses. Querem guardar os rastros da origem, os nomes. As antigas gerações queriam, ao contrário, se livrar deles. Hoje, queremos tanto a origem quanto o país novo. Isso é integração, não assimilação.
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