Martha Medeiros*
Ainda procuro dar um nome a este sentimento novo que me atravessa. Parece outro tipo de parto: sem pai nem mãe. É um renascimento tardio e solitário
Quando a gente nasce, pai e mãe são nossos ídolos, lideram as paradas de sucesso dentro de casa. Avós e irmãos completam a banda. Só escutamos a família e por ela somos influenciados. Mais tarde, brincando na rua, indo ao colégio, a gente descobre a existência de outras pessoas – os primeiros amigos.
Tive sorte: antes do meu aniversário de 10 anos, já conhecia Caetano, Mutantes, Gil, Chico, Milton, Bethânia – e Gal, claro. Assim que seus discos eram lançados, aterrissavam na eletrola da sala. Que bom que meus pais não monopolizaram o sucesso que faziam com os filhos. Intuíram que aqueles desconhecidos também teriam muito a nos dizer.
Ainda nem tinha entrado na adolescência e eu já era estimulada a abrir a cabeça para diferentes jeitos de existir, para a pulsão da poesia, para as provocações naturais do pensamento – with a little help from The Beatles, que também frequentavam nosso pequeno apartamento no período. Cabiam diversas vozes, rimas, guitarras, violões. Cabia o mundo.
Entraram todos para a família. Ajudaram a me formatar e fizeram parte do que veio depois: a faculdade, os namorados, os livros – até chegar aqui.
Foi um choque perder Lennon e Harrison, lembro bem. Assim como Cazuza e Cassia Eller, que agreguei na fase adulta. Mas a morte de Gal teve um significado mais profundo. Já não sou jovem, agora também me aproximo da finitude, sem poder quantificar o tamanho do futuro em frente. Antes não pensava nisso, hoje penso. E me atordoo.
A turma da MPB entrou na minha vida muito cedo e cresceu comigo, éramos quase da mesma geração, eles ligeiramente avançados. Nesta atual e derradeira etapa da nossa existência, estou ainda perto da porta de entrada, enquanto eles mais perto da porta de saída – hipoteticamente, claro, mas é como o coração sente.
Queria poder agarrar a mão de cada um, deixar ninguém sair. Como a um pai, uma mãe, os faróis da nossa existência, nossas iluminações. Mas nem Deus consegue esse milagre.
Não chamo de dor a perda de uma cantora que não cheguei a conhecer fora do palco, e que teve uma trajetória tão rica que sua partida não soa trágica – tragédia é partir sem ter vivido. Não é dor, porque quem fez parte de mim, não se vai totalmente, até que eu vá também. Seguimos vivos uns nos outros.
Não é dor, então é o quê? Ainda procuro dar um nome a este sentimento novo que me atravessa. Parece outro tipo de parto: sem pai, nem mãe, nem faróis. É um renascimento tardio e solitário. Chegou o momento de aprender a viver em estado de orfandade. Contar com si própria e com o repertório acumulado durante a vida de antes, que começa a desaparecer lentamente. Pode ser bonito também, eu sei.
Não é dor. Acho que é espanto.
*Jornalista. Escritora
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