domingo, 20 de novembro de 2022

COP27 e o cinismo ocidental

Por Prabir Purkayastha, no Globetrotter, com tradução na Revista Opera

Poluidores históricos, EUA e Europa insistem em delegar ao Sul global o fardo da crise climática. Reativam usinas de carvão e baseiam transição energética na emissão de gases mais destrutivos que o CO2. Mas cobram de China e Índia o uso de energia limpa


A COP27 teve início em Sharm el-Sheikh, Egito. Apesar da guerra na Ucrânia e as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos terem roubado nossa atenção imediata da batalha contra o aquecimento global, ele segue sendo uma preocupação central de nossa época. Relatórios indicam que não só estamos falhando em atingir nossas metas de combate à mudança climática, como também estamos muito aquém de acertar em nossos alvos. Pior ainda, as potentes emissões de gases de efeito estufa de metano cresceram muito mais rapidamente, o que representa uma ameaça de mudança climática tão grande quanto o dióxido de carbono. Embora o metano dure menos tempo na atmosfera, tendo em vista um período de 100 anos, ele é um gás de efeito estufa mais potente que o dióxido de carbono.

O resultado é que é quase certo que falharemos em nossa meta de limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais. E se não agirmos logo, mesmo uma meta de 2 graus Celsius é difícil de ser alcançada. Neste ritmo, teremos um aumento de temperatura de 2,5 a 3 graus Celsius, enfrentando possibilidade de devastação de nossa civilização. O impacto será ainda maior nas regiões equatoriais e tropicais, onde a maior parte dos pobres do mundo vivem.

Nessa coluna, tratarei de duas questões. Uma é a mudança do carvão para o gás natural com combustível de transição, e outra é o desafio do armazenamento de eletricidade, sem o qual não poderemos fazer a transição para as energias renováveis.

Os países desenvolvidos – os EUA e os membros da União Europeia – apostam alto no gás natural, que é primariamente metano, como combustível de transição do carvão. Em Glasgow, na COP26, os países desenvolvidos tornaram o carvão uma questão central, retirando do foco as suas emissões totais de gases de efeito estufa e centrando as atenções no fato de China e Índia serem grandes usuárias de carvão. O pressuposto ao usar o gás natural como combustível de transição é que seu impacto de efeito estufa é apenas a metade do carvão. As emissões de metano também duram menos – cerca de 12 anos – na atmosfera, antes de se converterem em dióxido de carbono e água. O outro lado da moeda é que o metano é um gás de efeito estufa muito mais potente. Seus efeitos são 30 vezes maiores em um período de 100 anos do que uma quantidade equivalente de dióxido de carbono. Assim, uma quantidade muito menor de metano tem um impacto muito mais significativo para o aquecimento global do que o dióxido de carbono.

A má notícia em relação ao metano é que seu vazamento da infraestrutura de gás natural é muito maior, possivelmente até seis vezes mais alta, de acordo com uma pesquisa de março da Universidade de Stanford, do que os países desenvolvidos têm nos dito. O alto vazamento de metano da extração de gás natural não só anula quaisquer benefícios da transição para o gás natural como um combustível intermediário, como de fato piora o quadro de aquecimento global.

Há dois tipos de dados sobre o metano disponíveis atualmente. Um deles mede o real vazamento de metano da infraestrutura de gás natural com satélites e aviões, usando câmeras infravermelhas. A tecnologia para a medição de vazamentos de metano da infraestrutura de gás natural é simples e barata. Afinal, nós conseguimos detectar metano até em exoplanetas distantes de nosso sistema solar. Com certeza, salvar o Planeta da morte por aquecimento é uma prioridade muito maior! O outro tipo de dado é a medida de metano atmosférico, conduzida pela Organização Meteorológica Mundial (OMM).

A Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos EUA estima que 1,4% de todo gás natural produzido nos EUA vaza para a atmosfera. Mas o estudo da Universidade de Stanford, que usou câmeras e pequenos aviões que voam sobre a infraestrutura de gás natural, revelou que o número provavelmente é de 9,4% – mais de seis vezes maior do que a estimativa da EPA. Mesmo que os vazamentos de metano fossem de 2,5% da produção de gás natural, eles já anulariam todos os benefícios de fazer a transição do carvão para o gás natural. O gás natural “limpo” pode ser três ou quatro vezes pior que o carvão “sujo”. Ao menos nas mãos do capital!

A EPA não realiza nenhuma medida física dos vazamentos. Tudo o que ela usa para estimar as emissões de metano é uma fórmula que envolve uma série de fatores subjetivos, junto do número de fontes, extensão dos gasodutos, etc. Não nos esqueçamos do fato de que há muitas pessoas nos EUA que não acreditam ou escolhem ignorar a existência do aquecimento global. Eles gostariam de enfraquecer até mesmo a EPA, desmantelando todas as medidas possíveis para reduzir o aquecimento global.

O impacto dos vazamentos de metano pode ser visto em outros dados. A Organização Metereológica Mundial (OMM) reportou o maior aumento de “concentrações de metano em 2021 desde que as medidas sistemáticas começaram a ser feitas, há 40 anos”. Embora a OMM se mantenha em relativo silêncio em relação às razões para esse aumento, é difícil ignorar a relação entre a transição para o gás natural e a consequente subida de emissões de metano.

A tragédia em relação aos vazamentos de metano é que eles são facilmente verificáveis com a tecnologia atual, e não é muito caro consertá-los. Mas as companhias não têm incentivo algum para tomar esses pequenos passos, porque isso afetaria seus lucros atuais. O bem maior  – lucros ainda maiores, mas a longo prazo – não as interessa. É improvável que elas mudem seu comportamento, a menos que sejam forçadas por uma ação regulatória ou direta do Estado.

O cinismo dos países ricos – os EUA e os membros da UE – sobre o aquecimento global pode ser visto na sua condução em relação à guerra da Ucrânia. A União Europeia reativou suas plantas de produção a carvão, aumentando a parcela de carvão usada na sua produção de energia. A União Europeia ainda argumentou cinicamente que o desenvolvimento de infraestrutura de petróleo e gás na África é positivo, contanto que seja somente para suprir a Europa, e não a África. As nações africanas, de acordo com a UE, devem por sua vez usar somente energia limpa e renovável! E, é claro, tal infraestrutura de energia deve estar nas mãos de companhias europeias!

A chave para a transição para as energias renováveis – a única solução de longo prazo para o aquecimento global – é encontrarmos uma forma de armazenar a energia. Formas renováveis, diferentemente de combustíveis fósseis, não podem ser usadas de acordo com a nossa conveniência, já que os ventos, o sol e a água provêm um fluxo contínuo de energia. Apesar da água poder ser armazenada em grandes reservatórios, os ventos e o sol não podem, a não ser que sejam convertidos em energia química em baterias. Ou que sejam convertidos em hidrogênio e então armazenados em tanques ou por armazenamento natural em formações geológicas, como depósitos subterrâneos ou cavernas de sal.

Nos últimos anos, tem havido muita propaganda sobre baterias e carros elétricos. O que não se diz é que as baterias, com a tecnologia atual, têm uma densidade energética muito menor do que o petróleo e o carvão. A energia do petróleo ou do gás natural é 20-40 vezes maior do que a da mais eficiente bateria disponível hoje. Para os veículos elétricos, não se trata de um problema tão grande. Essa densidade só determina a frequência com a qual as baterias dos carros precisam ser recarregadas, e quanto tempo o carregamento levará. Implica somente em desenvolver uma infraestrutura de carregamento com um tempo de resposta rápido. Um problema muito maior é como armazenar energia no nível da rede de distribuição.

Armazenamento em nível de rede significa fornecer eletricidade às redes de distribuição de energia a partir de energia armazenada. Tem-se sugerido o uso de baterias de rede para essa tarefa. O que os que propõe isso perdem de vista é que as baterias de rede podem suprir energia para flutuações a pequeno prazo – da noite para o dia; em dias sem vento – mas não fornecer a demanda para flutuações de longo prazo ou sazonais. O que nos leva à questão da densidade energética no armazenamento: quanta energia uma bateria de um quilo de lítio é capaz de armazenar em comparação a um quilo de petróleo, gás natural ou carvão? A resposta, com a tecnologia atual, é de 20 a 40 vezes menos. O custo para construir um armazenamento tão gigantesco, capaz de atender as flutuações sazonais, seria simplesmente esgotar todos os nossos suprimentos de lítio (ou qualquer outro material para bateria).

Não abordarei o custo proibitivo de energia – seja elétrica ou fóssil – do transporte privado versus o custo para o transporte público e de massa, e por que deveríamos optar pelo último. Ao invés disso, focarei na questão maior: como armazenar energia renovável para mantermos nossa infraestrutura elétrica quando o vento ou o sol não estiverem disponíveis.

É possível que uma nova tecnologia solucione esse problema? Lembram-se do sonho de que a energia nuclear não só seria limpa, como também tão barata que sequer precisaria ser medida? Nós apostaremos o futuro de nossa civilização em tal possibilidade?

Se não vamos fazê-lo, temos que olhar às soluções existentes. Elas existem, mas usá-las significa procurar alternativas às baterias para solucionar nossos problemas de fornecimento intermitente de energia renovável. Isso implicaria redirecionar nossos projetos hidrelétricos existentes para que funcionassem como armazenamento em nível de rede, e desenvolver armazenamento de hidrogênio para uso em células de combustível. Nada de barragens ou reservatórios extras, como temem os opositores dos projetos hidrelétricos. E, claro, implicaria mais uso do transporte público em vez do transporte privado.

Todas essas soluções já existentes se traduzem em realizar mudanças em um nível social às quais os interesses corporativos se opõem – afinal, fazê-lo requeriria investimentos públicos visando o benefício social, não para os lucros privados. O capital privilegia os lucros de curto prazo ao invés de benefícios sociais de longo prazo. Lembram-se como as companhias petrolíferas fizeram as primeiras pesquisas que mostravam o impacto do aquecimento global pelas emissões de dióxido de carbono? Elas não só esconderam esses achados por décadas, como também lançaram uma campanha negando que o aquecimento global estivesse associado aos gases de efeito estufa. E financiaram negacionistas do aquecimento global.

A contradição que está no seio do aquecimento global é entre a ganância privada e as necessidades sociais. E quem financiará a transição: os pobres ou os ricos? A COP27 também se trata disso, não só de como parar o aquecimento global.

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