Reverter ‘sequestro’ da canarinho é difícil, mas paixão pela Copa resiste no Brasil, dizem analistas
Após eleições com forte tensão, as atenções
no Brasil se voltam à Copa do Mundo. Com a camisa da Seleção Brasileira
atrelada à política, há dúvidas sobre o entusiasmo da população com o
torneio. A Sputnik Brasil foi às ruas conferir a preparação da torcida e
ouviu pesquisadores para discutir a relação entre esporte e política.
Diversos pensadores já tentaram explicar a paixão brasileira pelo futebol. Nelson Rodrigues cunhou o termo “pátria de chuteiras” para sintetizar essa relação com o esporte. José Miguel Wisnik, em “Veneno Remédio”, colocou
o futebol na discussão sobre o que é o Brasil. Luiz Antônio Simas, em
“Maracanã, quando a cidade era terreiro”, descreveu o estádio como a materialização do sonho e do mito da
cordialidade brasileira. Já Hélio Santos usa a excelência da Seleção
como prova de que o país pode dar certo se abraçar a diversidade.
A inegável relação do país com o futebol está
intrinsecamente ligada à história de sucesso da Seleção Brasileira na
Copa do Mundo. As conquistas e o bom desempenho no esporte com times com
as caras e as cores do país ajudaram o Brasil a ser conhecido e admirado mundo afora.
Nos últimos anos, porém, a camisa da Seleção
Brasileira foi associada a eleitores de direita, mais recentemente com
apoiadores do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), que, em
outubro, perdeu as eleições presidenciais para o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT).
Para discutir a relação entre política,
futebol e comportamento, a Sputnik Brasil conversou com o historiador
Luiz Antônio Simas e o sociólogo Ronaldo Helal, professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, foi à rua
Pereira Nunes, logradouro carioca onde a tradição de pintar o asfalto e
pendurar bandeiras do Brasil para a Copa do Mundo nunca sai de moda.
Uso político da seleção e de seus símbolos já ocorreu o Brasil
Helal, que coordena o Laboratório de Estudos
em Mídia e Esporte (Leme), ressalta que historicamente a Seleção
Brasileira esteve atrelada ao projeto de nação no Brasil, mas essa
relação entrou em um processo de enfraquecimento a partir da década de
1980 devido a fatores como a globalização e a perda de identificação com
o time — cada vez mais composto por jogadores que atuam fora do país.
Segundo o pesquisador, com ou sem a polarização política, o
distanciamento em relação à Seleção já estava acontecendo.
“Houve também na década de 1970 uma tentativa de se apropriar da
imagem da seleção em uma tentativa de propaganda do regime militar — só
que não foi tão exitosa […]. De 2013 para cá, principalmente a partir de
2016, com o impeachment [da ex-presidente Dilma Roussef], a camisa da
seleção e o símbolo da pátria — a bandeira — começaram a ser usados por
grupos conservadores e, mais recentemente, por grupos de
extrema-direita”, recorda Helal em entrevista ao podcast Jabuticaba Sem
Caroço, da Sputnik Brasil.
Para o pesquisador, a Copa do Mundo pode ser
uma oportunidade de reverter esse atrelamento dos símbolos da Seleção
Brasileira e do país a grupos de extrema-direita. Helal afirma, no
entanto, que isso dependerá de vontade política.
“Acho que vai depender muito da
liderança do Lula e do [vice-presidente eleito, Geraldo] Alckmin de
pedirem às pessoas para que torçam e vistam a camisa da Seleção. Se isso
acontecer, acho que vai haver uma certa diminuição desse sequestro de
grupos de extrema-direita, de só eles poderem usar a camisa da Seleção”,
diz o pesquisador da UERJ.
Relação de efusão com a Copa pode ter ficado no passado
Questionado sobre a sobrevivência de
tradições brasileiras relacionadas à Copa do Mundo, como enfeitar as
ruas com as cores do país, o escritor Luiz Antônio Simas demonstra
pessimismo e aponta que a paixão pela Seleção Brasileira como era
exercida em mundiais anteriores não deve mais retornar.
“Quando a gente, por exemplo, na Copa
de 1982, na Copa de 1978, algumas Copas anteriores, você construía
sociabilidade em cima do ato de enfeitar a rua. Então era uma tradição
da cidade, mas que era uma tradição da cidade inteira. Inclusive, por
conta de uma certa disputa — de qual era a rua mais enfeitada. Havia uma
efusão ligada à Copa do Mundo que era muito intensa”, ressalta o
pesquisador em entrevista ao podcast Jabuticaba Sem Caroço, da Sputnik
Brasil.
O escritor ressalta que algumas ruas ainda
devem manter a tradição, mas que paixão generalizada já não é a mesma.
Entre os fatores para essa situação, Simas aponta o ineditismo de uma
Copa do Mundo ser realizada logo após eleições presidenciais acirradas e
também o “sequestro” da camisa da Seleção Brasileira pela
extrema-direita.
“A própria
Seleção Brasileira, ainda que a gente tenha carinho por muito
jogadores, hoje é uma Seleção formada basicamente por jogadores que
jogam fora do Brasil. Então aquela ligação mais íntima com jogadores que
você via todo fim de semana jogando no seu clube não existe. Acho até
que teremos movimentação — essa é minha expectativa. E acho até que as
eleições esfriaram um pouco o clima do pré-Copa. Vamos ver como vai ser
daqui para a frente”, avalia.
Simas acredita que a recuperação de símbolos
como a camisa da Seleção Brasileira precisa ser vista no longo prazo,
tendo em vista que o futebol tem uma relação intrínseca com a formação
histórica da identidade nacional no Brasil. O pesquisador salienta que a
própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) estaria preocupada com
a associação da camisa da Seleção com a “divisão do país”.
“Acho até que vamos ter tentativas de
ressignificar a camisa, mas é um processo que vai ser complicado.
Sobretudo porque estamos vivendo um clima pós-eleitoral tenso,
manifestações da extrema-direita pedindo intervenção militar usando,
mais uma vez, a camisa da Seleção Brasileira. Vai ser difícil a gente
conseguir ressignificar. A curto prazo, acho difícil”, afirma.
Grupo mantém viva a tradição de pintar ruas no Rio
Como apontam os
pesquisadores, até recentemente, a Copa do Mundo era um momento de
festa, uma espécie de carnaval a cada quatro anos que incluía enfeitar
e pintar ruas dos bairros no Brasil — uma memória
carregada por muitos brasileiros. Apesar de perder espaço nos últimos
anos, essa tradição ainda está presente e viva.
A Sputnik Brasil foi a uma rua em que essa
atividade se mantém há décadas através do esforço e da união de vizinhos
apaixonados pela Copa do Mundo e pelo próprio ato de ornamentar sua rua
em homenagem à Seleção Brasileira — um verde e amarelo que nos últimos
anos foi politizado como nunca.
Celso Mendes é um carioca de 44 anos, morador da Vila Isabel, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Há mais de 30 anos,
o empresário lidera um grupo de vizinhos para pintar e enfeitar a rua
Pereira Nunes de verde e amarelo. Para Mendes, futebol e política não se
misturam.
“A nossa tradição vem desde 1982. São
40 anos. Independente da política, ou não, a gente vai manter a
tradição”, afirma o organizador trajado com uma camiseta verde e amarela
da Galera da Pereira Nunes, grupo responsável pela ornamentação da rua.
“Passou gente aqui gritando o nome de um
candidato, gritando de outro. Para a gente é só futebol, é só Copa do
Mundo. Em política cada um tem seu voto, vai lá na urna, decide o seu.
Para a gente não influenciou em nada”, conta.
O professor Júlio Souza Reis Júnior, de 36 anos, que também faz parte da Galera da Pereira Nunes, lamenta a polarização política, mas ressalta que o foco dos torcedores é a Copa do Mundo.
“A verdade é que, infelizmente, nessas
eleições houve uma polarização muito grande entre dois candidatos, mas
esse não foi o foco da rua. O foco da rua foi fazer uma grande festa e
torcer para o nosso país, que é o Brasil. Independente de questões
políticas, o ideal que a gente fez aqui foi para enfeitar a rua em prol
do nosso hexacampeonato, que eu espero que aconteça”, afirma sorrindo.
A famosa ornamentação garante holofotes e atenção da mídia para a rua, que tem murais de ponta a ponta com homenagens que vão desde jogadores ícones da seleção, como Pelé e Garrincha, a figuras famosas entre fãs de futebol na Internet, como o influencer Casimiro.
Entre os entusiastas da pintura da rua, estão
também jovens que pretendem manter a tradição local. É o caso do
estudante Bruno Moreira Nobre de Almeida, de 18 anos. “Se eu estou aqui
animado para a Copa do Mundo é por conta da ornamentação da rua”,
afirma.
O jovem conta que chegou a ter uma discussão sobre política quando
divulgou em grupo de faculdade um concurso no qual a Pereira Nunes
concorre para ser a rua mais bem enfeitada do Brasil para a Copa do
Mundo. Segundo ele, houve questionamentos relacionando a pintura da rua
com política.
“Eu falei, olha só, a gente não está apoiando o Brasil politicamente,
a gente está contra… a gente não está nem ligando para opinião
política, o que importa é unir as pessoas. O que importa é a gente estar
juntos e unidos, sabe?”, conta o estudante, que cresceu vendo a rua ser
enfeitada em outros mundiais e já está em sua segunda Copa como
organizador da ornamentação. “Estou aqui ajudando na Copa desde que eu
nasci, praticamente”.
Celso Mendes, o membro mais velho da Galera
da Pereira Nunes, conta que, desde 1990, quando era criança, acompanha o
esforço para enfeitar rua, e organiza a tradição desde 1994. “Eu vi que esse elo ia se quebrar, de tradição, e comecei a administrar — e administro até hoje”, explica.
Mendes admite que o grupo mantém a tradição de pintar a rua também para vencer concursos, mas que o esforço busca ainda “unir o bairro” e fazer com que “as crianças não percam a essência de brincar na rua”.
“Eu sou
apaixonado por isso, deixo de trabalhar dois, três meses, me organizo
financeiramente para que a gente possa estar aqui na rua e fazer esse
trabalho lindo. O mundo todo vem aqui, vem conhecer nosso trabalho. Tem
coisa melhor que o mundo reconhecer seu trabalho? Se o morador já
reconhece, já está orgulhoso, imagina o mundo vir aqui reconhecer isso”,
conclui.
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