21 Out 2022
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Durante anos leccionei a cadeira de Filosofia Moderna. Com a liberdade que então nos era concedida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, podia orientá-la à minha maneira, desde que nela fossem estudados os filósofos mais importantes do século XVII, a época que me cabia abordar. Assim, houve um ano em que trabalhei o conceito de Deus em diferentes pensadores. Constavam do meu programa Descartes e um Deus como garantia de verdade pois a sua bondade infinita não permite o erro desde que orientemos correctamente os nossos raciocínios; Espinosa e o Deus Natureza, uma totalidade impessoal que se expressa em “modos”, ou seja em tudo quanto existe; Hobbes, um precursor do ateísmo sistemático, nas suas teses de que é absurdo falar de Deus, dado que não podemos conceber o infinito; Pascal que distingue o Deus dos filósofos do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob; Leibniz e o Deus relojoeiro, criador do melhor dos mundos possíveis; Locke que ao falar-nos das limitações das nossas faculdades cognitivas sustenta a possibilidade de termos um conhecimento demonstrativo e certo da existência de Deus. Mas exceptuando Pascal, nenhuma destas concepções satisfaz a nossa necessidade de um diálogo amoroso com a transcendência, aliás porque o objectivo destes filósofos é integrar a divindade na explicação do mundo, dando-lhe um papel mais ou menos preponderante, conforme as crenças (ou descrenças) de cada um. Não se privilegia nestes pensadores um Deus a quem rezamos, mas sim, porque o terreno em que habitam é a filosofia, um Deus conceptual, que nos ajude a compreender o Universo.
Presentemente integro um grupo de trabalho luso-brasileiro – Ecocultura e ecofeminismo – em que professores e professoras de teologia e de filosofia se propõem preparar um volume para a colecção Teologia da Casa Comum. E uma das tarefas que nos coube este ano foi a análise do livro de Ivone Gebara Teologia Ecofeminista. Ensaio para repensar o Conhecimento e a Religião.[1] A obra é atravessada pelo desejo de que a Terra seja um lugar de redenção. Nos seus diferentes capítulos perpassa a denúncia de uma teologia pensada por homens, com a sua consequência lógica de valorização de princípios e critérios masculinos. Interessou-me particularmente o último capítulo cujo título é uma interrogação “Um Deus diferente?” A partir desta questão traça-se um conceito de Deus que atende à nossa existência situada e às interrogações que levantamos. A espiritualidade antropocêntrica dominante na teologia cristã é substituída pela imersão no próprio mistério da vida pois trata-se de um Deus mistério, no qual existimos e somos. A ética que aí se defende é fundada no amor à Terra e no amor ao próximo. Há que lutar em prol dos mais débeis, ou seja, em prol das mulheres, da natureza e do ecossistema. Não tem sentido referir Deus como Pai.
Por muito interessante e inovadora que seja esta perspectiva, nomeadamente pela desmitificação das projecções masculinas dominantes na teologia cristã, não nos parece que nela se encontre um Deus a quem se reze, ou seja, alguém com quem se possa partilhar alegrias e tristezas, preocupações e dúvidas.
Na conjuntura de guerra que actualmente vivemos é particularmente chocante verificar como a religião continua a ser instrumentalizada em prol de opções políticas. As imagens que frequentemente vemos do Patriarca Cirilo abençoando os exércitos russos e apelando à sua coragem, constituem um insulto ao Deus misericordioso que a todos ama. E recordo uma figura que muito admiro – Etty Hillesum – pelo modo inovador como nos ensinou a rezar. [2]
Enquanto judia holandesa sob a ocupação nazi, Etty trabalhou em Westerbork, um Campo de passagem onde estavam internados provisoriamente os que iriam seguir para Auschwitz. Aí desenvolveu uma espiritualidade própria, conseguindo ver Deus onde ele parecia estar mais afastado. Aí aprendeu a rezar em sítios insólitos conseguindo meditar, contemplar e deixar-se possuir pelo sagrado, mesmo quando se dedicava a tarefas comezinhas de limpar as latrinas do Campo. E assim foi percebendo que a relação com Deus é das coisa mais íntimas que podemos experimentar, “quase mais íntimas do que as de teor sexual.” (Diário, p. 137). Aos terríveis sofrimentos que presenciou no Campo de Westerbork Etty contrapôs a plenitude, a harmonia consigo mesma e com a natureza, a paz adveniente de um despojamento total, uma paz que a levou a ser capaz de manter acesa a esperança, numa situação que parecia totalmente negá-la.
Etty usou a oração como um muro de defesa que nos torna inexpugnáveis. Esgotada a esperança de uma alteração das condições de vida, rodeada por pessoas que aos poucos iam desaparecendo, levadas para campos de trabalho, ela tomou consciência de um Deus diferente, um Deus frágil, a precisar de ajuda: “Se Deus não me ajudar, nesse caso hei-de eu ajudar Deus” (Diário, p. 245) e “Vou ajudar-te Deus, a não me abandonares, apesar de eu não garantir nada com antecedência” (Diário pp. 251-2). Para ela a criação estava incompleta e os homens deveriam colaborar com Deus para a completar. Westerbork foi o último patamar da viagem que empreendeu ao fundo de si mesma. Foi também o lugar onde encontrou serenidade, onde se pacificou interiormente, onde quase podemos dizer que se sentiu feliz.
Aprendamos com Etty a rezar a Deus, nestes tempos de guerra em que Ele parece estar ausente.
[1] Ivone Gebara, Teologia Ecofeminista. Ensaio para repensar o Conhecimento e a Religião, S. Paulo, Olhod’água, 1997.
[2] Veja-se de Etty Hillesum as traduções portuguesas do seu Diário, (Lisboa, Assírio e Alvim , 2008) e das suas Cartas, 1941-1943 (Lisboa, Assírio e Alvim, 2009).
*Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática (aposentada) de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.
Fonte: https://setemargens.com/aprender-a-rezar-com-etty-hillesumm/
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