Matthew Williams, professor de Criminologia na Universidade de Cardiff, é um dos maiores especialistas em discurso e crimes de ódio, em extremismo online e no cibercrime. Autor do livro A Ciência do Ódio, lançado recentemente em Portugal (Editora Contraponto), dirige, no Reino Unido, o HateLab, um programa que monitoriza e analisa o impacto de acontecimentos políticos e sociais neste tipo de crimes. Williams é um dos especialistas convidados a fazer uma palestra na VISÃO Fest, no próximo dia 22.
Se se pudesse fazer uma dissecação forense do ódio, o que se encontraria lá dentro?
Ao
tentar explicar o ódio, devemos primeiro considerar o precursor menor –
o preconceito. Do ponto de vista científico, é geralmente aceite que o
preconceito se refere a um conjunto interno de processos de pensamento
(estereótipos, atitudes, opiniões, emoções, etc.), desenvolvido por meio
de aprendizagens (por exemplo, cultura, média, amigos, família, etc.)
que predispõem uma pessoa ou a favorecer ou a desfavorecer outra por
causa de um grupo a que pertence. O preconceito pode ser positivo ou
negativo – eu trato essa pessoa com carinho e compaixão, porque é de um
certo grupo; ou eu trato essa pessoa com hostilidade e indiferença,
porque é de um certo grupo de que eu não gosto. Isso pode ser um viés
consciente ou inconsciente, também conhecido como preconceito implícito.
A maioria de nós nem está ciente dos preconceitos que temos (bons ou
maus), e no meu livro mostro que a Ciência ajuda a trazê-los à tona.
Devido ao processo civilizatório e aos principais avanços associados,
como os direitos civis, os movimentos de mulheres e do LGBTQ, tornou-se
inaceitável expressar o preconceito. Portanto, rotineiramente,
reprimimos os preconceitos. Mas, quando confrontados com forças de
justificação, como acontecimentos desencadeantes que destacam uma
diferença de dentro do grupo e fora do grupo, os preconceitos
libertar-se.
Os preconceitos são alimentados por uma sensação de ameaça?
Os
preconceitos podem tornar-se mais arraigados quando as pessoas que
mantêm estereótipos negativos se sentem, de algum modo, ameaçadas. Essa
perceção de ameaça pode assumir duas formas: ameaça económica e ameaça
simbólica. Quando alguém percebe uma ameaça económica de um grupo
externo, sente que os seus recursos escassos estão a ser-lhe retirados. O
exemplo mais típico disso é o que acontece com os imigrantes. Algumas
pessoas têm a perceção de que os imigrantes roubam os empregos, escolas,
casas e consultas médicas, tornando a situação do “grupo interno” pior.
Claro que muitas vezes essa perceção é apenas isso, uma perceção, e a
realidade é bem diferente. Essas perceções também podem ser aumentadas
por figuras públicas nefastas, que têm algo a beneficiar ao provocarem o
medo e a divisão.
Mas como os preconceitos se transformam em ódio?
Nada
do que mencionei até agora constituiria ódio. Podemos distinguir, de
várias maneiras, o ódio do preconceito. Para odiar alguém, é preciso
mais do que a adoção de estereótipos negativos e a perceção de ameaça.
No livro, descrevo o que é necessário sob a forma de “acelerantes”.
Estes podem incluir sentimentos extremos de perda pessoal ou
comunitária, que são facilmente atribuídos a um grupo externo (por
exemplo: migrantes que se mudam para uma área e ocupam ruas, serviços,
etc.); momentos divisivos, como eleições políticas, ataques terroristas e
processos judiciais; a presença de grupos extremistas que recrutam e
inculcam, nas vulneráveis ideologias, divisórias; e a internet com os
seus algoritmos que polarizam o debate. Quando combinados, esses
aceleradores podem fazer com que o preconceito se transforme em ódio em
determinados indivíduos.
Onde entra a desumanização?
Outra distinção
importante é que, além de o grupo externo ser percebido como uma ameaça,
ele também se torna moralmente incompatível. O abismo moral que se abre
permite a possibilidade de desumanização – o grupo externo passa a ser
visto como sub-humano. A violência odiosa geralmente exige que esse
processo ocorra. Por norma, temos dificuldade em usar a violência contra
outros humanos, pois a nossa empatia, culpa e vergonha atrapalham. É
mais fácil se olharmos os alvos como sendo menos humanos – vermes,
baratas, parasitas. Eles não são apenas de um universo moral alienígena;
eles são imaginados como uma espécie diferente. A desumanização,
portanto, permite que o grupo externo seja tratado com indiferença e
desprezo. Outra distinção importante encontra-se no nível de
comprometimento. Detentores de um preconceito menor e detentores de um
preconceito mais forte não agem de forma consistente – eles odeiam em part-time.
Tendem a ser ativados pelos tais acontecimentos-gatilho, como eleições,
ataques terroristas e processos judiciais. Já as pessoas que mantêm
atitudes odiosas “a tempo inteiro” têm um senso de missão que as
impulsiona e que constitui uma parte fundamental da sua identidade.
E, claro, o ódio é alimentado mais rápido e mais intensamente pelas redes sociais…
O
desenvolvimento das redes sociais foi originalmente influenciado pela
ideologia tecnoutópica californiana. Há a ideia de que, quanto mais se
une as pessoas, mais compreensão intercultural existe e menos
intolerância sobrevive. Essa ideia tem como premissa a tese do contrato
positivo em Psicologia Social. Mas estas grandes techs não conseguiram
garantir que as principais condições de contrato positivo fossem
incorporadas no design das suas plataformas. E também subestimaram o
provável uso indevido das plataformas por atores nefastos. Como
resultado, assistimos ao surgimento de bolhas de filtro online,
aumentando a polarização, o que resulta em mais contrato negativo do que
positivo e cria condições para estereótipos, intolerância e ódio.
Quanto é que os algoritmos privilegiam os sentimentos maus e o discurso de ódio?
Os
algoritmos aprendem com o comportamento do utilizador e, portanto,
influenciam as nossas ações coletivas. Isso significa que os nossos
preconceitos são incorporados em pedaços de código que influenciam o que
vemos online, refletindo-os de maneiras muitas vezes amplificadas. O
consenso emergente do campo da Ciência de Dados é que os algoritmos
estão a ajudar na polarização da exposição de informações e, portanto,
no debate e na ação online. Uma investigação de 2017, do The Wall Street Journal e
de um ex-funcionário do YouTube que trabalhou no seu algoritmo,
confirmou que o site devolvia rotineiramente fontes de extrema-direita e
de extrema-esquerda em resposta às principais consultas de pesquisa.
E assim se formam as bolhas…
As
fontes de informação são amplificadas nas redes de utilizadores com
ideias semelhantes, onde são amplamente incontestadas devido aos
algoritmos de classificação que filtram quaisquer postagens
desafiadoras. As bolhas de filtro são aceleradores resilientes de
preconceito, reforçando e ampliando pontos de vista extremos, em ambos
os lados do espetro. Pesquisas mostram que, mesmo que os utilizadores de
internet estejam dispostos a ouvir as opiniões daqueles que não
compartilham as mesmas ideias, essa mente aberta não é suficiente para
estourar a bolha do filtro. Podemos estar dispostos a ouvir, mas não a
mudar de ideias. Depois ainda há os bots, contas automatizadas que são programadas para retweetar e
postar conteúdo, por vários motivos. As contas falsas são
semiautomatizadas, o que significa que são rotineiramente controladas
por um humano ou grupo de humanos. Embora nem todos os bots e
contas falsas sejam problemáticos, muitos foram criados por razões mais
subversivas, como influenciar a escolha do eleitor no período anterior
às eleições e espalhar conteúdo divisivo após iniciativas nacionais.
Do seu estudo, consegue avaliar o impacto do ódio online?
Pesquisas
descobriram que as vítimas vivenciam o trauma num padrão semelhante à
resposta das vítimas de crimes físicos. Em alguns dos casos mais
extremos, os efeitos de curto e de longo prazo do discurso de ódio são
semelhantes em forma aos efeitos de roubo, violência doméstica e
agressão. A razão para os danos extremos do discurso de ódio é
resultante do direcionamento da identidade central de uma pessoa.
Vilipendiar ou desumanizar uma pessoa por causa de uma parte fundamental
da sua identidade pode gerar mudanças emocionais, atitudinais e
comportamentais negativas. O impacto é mais profundo se a vítima já
estiver vulnerável, por exemplo a sofrer de depressão, ansiedade ou sem
uma rede de apoio, e se o contexto em que o discurso de ódio é proferido
for propício, como acontece nos casos em que existe uma cultura de
medo, repressão ou intimidação. Impactos de curto prazo, que duram
alguns dias, podem incluir sentimentos de choque, raiva, isolamento,
ressentimento, constrangimento e vergonha. Impactos de longo prazo, que
duram meses ou anos, podem incluir baixa autoestima, desenvolvimento de
uma atitude defensiva e preconceitos contra o grupo do orador de ódio,
ocultação de identidade e maior consciência da diferença.
O discurso de ódio pode ser realmente poderoso.
O
discurso de ódio online claramente tem o potencial de causar mais danos
do que alguns atos físicos, devido a vários fatores únicos. O anonimato
oferecido pela internet significa que os ofensores provavelmente
produzirão mais discursos de ódio, cujo caráter é mais grave devido à
falta de inibição. O alcance temporal e geográfico da internet permitiu
que o ódio se tornasse um fenómeno, 24 horas por dia, 7 dias por semana.
Para muitos, sobretudo os jovens, desligar o computador ou o telemóvel
não é uma opção, mesmo que sejam alvos de ódio. O discurso de ódio
online tem, então, o poder insidioso de entrar no tradicional porto
seguro do lar, gerando um ciclo de vitimização difícil de quebrar.
E há uma conexão clara entre o discurso de ódio e a extrema-direita?
Vejo
os crimes de ódio como um processo. Frequentemente, as vítimas de ódio
são alvo de uma campanha de abuso por parte dos mesmos perpetradores, às
vezes por longos períodos de tempo. Essas campanhas podem ocorrer nas
ruas e online. Em alguns casos, podem começar online e depois migrar
para as ruas; em outros, podem começar no pátio da escola e depois
migrar para o online. Posts nas redes sociais de políticos de
direita que visam grupos minoritários causaram um aumento do ódio nas
ruas. Por exemplo: cientistas descobriram que posts contra
refugiados na página do Facebook da extrema-direita Alternative für
Deutschland (AfD) desencadearam crimes violentos offline contra
imigrantes na Alemanha. Os mesmos cientistas também encontraram uma
forte associação estatística entre os tweets do Presidente
Donald Trump sobre o Islão e o ódio antimuçulmano nos condados dos EUA.
No Reino Unido, a minha equipa do HateLab encontrou uma ligação
semelhante entre o ódio online e offline em Londres. Correlacionamos o
discurso de ódio antimuçulmano e antinegro do Twitter com crimes de ódio
agravados racial e religiosamente nas ruas. Esse estudo incluiu também o
ódio de utilizadores comuns de media social. A descoberta foi surpreendente. Percebemos que tweets de
ódio sobre um tema tendem a prenunciar crimes de ódio nas ruas. Como
não vimos se a pessoa que twittou saiu depois para cometer um crime de
ódio, não encontramos uma relação causal direta, mas a associação pode
apontar para níveis crescentes de tensão racial e religiosa coletiva,
que primeiro irrompe online e depois migra para as ruas, se não for
abordada.
O que podem as sociedades fazer para reduzir o ódio?
Temos
de aprender a reconhecer os alarmes falsos, quando o nosso mecanismo de
deteção de ameaças é acionado, e devemos questionar os nossos
pré-julgamentos em relação aos que são diferentes de nós. Não devemos
esquivar-nos de contactar com outras pessoas diferentes, temos de nos
pôr no lugar dos outros, não podemos permitir que momentos divisivos
levem a melhor. E é importante rebentar com as nossas bolhas de filtro e
tornarmo-nos, todos, socorristas de incidentes de ódio: quando
assistimos ao ódio, devemos denunciá-lo, garantindo a segurança pessoal e
coletiva.
Fonte: https://visao.sapo.pt/ideias/2022-10-21-matthew-williams-o-discurso-de-odio-online-tem-o-potencial-de-causar-mais-danos-do-que-alguns-atos-fisicos/
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