Fifa proibiu manifestações dos atletas e colocou mordaça sobre direitos fundamentais; uso político do esporte não pode ser privilégio da entidade
Das fortes suspeitas de corrupção às violações dos direitos humanos, a organização da Copa do Mundo do Qatar tem sido dominada por críticas e indignação. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as acusações de hipocrisia: o Qatar estaria sendo alvo de uma exigência e escrutínio que não se aplicou no passado, do Mundial da Rússia às Olimpíadas de Pequim.
Para os autores deste texto, críticos desses outros eventos e que há muito advogam a necessidade de profundas reformas na governança esportiva, o problema não são as críticas de hoje, mas o silêncio do passado. O que falta são mais críticas e, sobretudo, a transformação dessa indignação numa força reformista da organização esportiva global.
Foi por isso que, com outros autores, defendemos sobre o mundial do Qatar:
1º – Não esperamos (nem exigimos) que a Fifa (ao contrário do que por vezes dá a entender…) seja capaz de mudar o mundo. Não lhe pedimos que mude regimes políticos, mas exigimos que garanta que esse Mundial seja organizado de acordo com os valores e princípios que a própria Fifa proclama;
2º – Não defendemos boicotes esportivos ao Mundial nem a suspensão das relações diplomáticas com o Qatar. Mas também não queremos ver os nossos chefes de governo e de Estado a afiançar o uso desses grandes eventos esportivos para reforçar o poder de regimes autoritários. Por alguns dias, os líderes desses regimes procuram ganhar uma chancela de legitimidade, entregam medalhas e sorriem para o mundo. Gostaríamos que os nossos líderes democráticos não contribuíssem para isso;
3 – Apelamos a que atletas e federações nacionais usassem essa oportunidade para exprimir a sua solidariedade com aqueles cujos direitos o Mundial violou, dos trabalhadores àqueles discriminados em função do gênero ou da orientação sexual.
Os primeiros dias mostraram que o sistema continua vivo, mas também que alguns atletas e seleções tomaram consciência de que ele se encontra esgotado.
A Fifa começou por nos demonstrar a sua habitual alienação do mundo: no discurso surreal de seu presidente, Gianni Infantino, no lançamento do Mundial (comparando a sua experiência de vida àquela dos que são discriminados em razão da raça, gênero ou orientação sexual) ou ao ceder, à última hora, ao pedido das autoridades supremas do Qatar de proibição de bebidas alcoólicas, desde que não fosse aplicada aos convidados da Fifa.
Ao folclore seguiu-se a arrogância. A Fifa proibiu o uso da braçadeira com as cores do arco-íris com que algumas equipes tencionavam demonstrar apoio à diversidade. Ao proibir, não por motivos esportivos, mas pelo significado que tinha essa braçadeira, a Fifa colocou uma mordaça sobre os direitos fundamentais, proibindo os atletas de exprimirem o seu apoio ao princípio da não discriminação com base na orientação sexual que está inscrito no Artigo 22º do próprio Código de Ética da Fifa. Para a Fifa, apenas ela e os organizadores têm direito a usar politicamente o esporte. Um recado de que o monopólio do uso político da bola está nas mãos dos dirigentes do futebol e dos políticos cúmplices destes. Para os demais, a lei da Fifa impõe o silêncio.
Mas a atitude de algumas, poucas, seleções revela sinais de que algo pode estar mudando. Num gesto poderoso, os jogadores da Alemanha têm chance de entrar para a história dos mundiais. Ao cobrirem as suas bocas no momento de fazer a foto oficial da estreia, eles expuseram perante o mundo a mordaça da Fifa. A isto se junta o anúncio, pela Federação alemã, de que tenciona recorrer legalmente da proibição da Fifa, tendo o apoio, igualmente, da Federação dinamarquesa.
Isto não deve ser desvalorizado num mundo onde o poder é tão absoluto e cartelizado que qualquer dissidência arrisca forte punição. Mas é também por isso que atitudes como essas são extraordinariamente raras e que, ao mesmo tempo que essas duas federações exprimiam a sua divergência, 207 das 211 Federações da Fifa exprimiam o seu apoio à atual liderança.
Entre essas 207 entidades nacionais, existirão outras que têm consciência da necessidade de mudar. Apenas têm um receio maior de defender a mudança. Isto nos diz que tal mudança só ocorrerá com pressão externa. Não é por acaso que a federação alemã anunciou a contestação judicial da decisão da Fifa após o abandono, em protesto por essa decisão, de um dos seus maiores patrocinadores e a ameaça dos outros fazerem o mesmo.
Eis o que fazer com toda a indignação gerada por este mundial: impor às nossas federações que se aliem às entidades que querem mudanças. Pedir aos nossos atletas que se libertem da mordaça. Exigir de nossos líderes que reformem o esporte em vez de o usarem politicamente.
É professor adjunto e ex-diretor da EUI School of Transnational Governance. Ele também é presidente do Conselho Executivo do European Digital Media Observatory (EDMO). Maduro ainda presidiu o Comitê de Governança da Fifa.
É jornalista e escritor. Cobriu quatro Copas do Mundo e suas premiadas reportagens sobre escândalos de corrupção levaram à abertura de investigações formais tanto no Brasil quanto na Espanha contra dirigentes do futebol. Publicou sete livros, três dos quais foram finalistas do Jabuti.
É professor do programa Jean Monnet de Direito da União Europeia e uma das principais vozes sobre a democratização da União Europeia.
Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/qatar-do-mundial-da-vergonha-ao-mundial-da-mudanca/
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