Rubem Alves*
O lixeiro bateu à minha porta para me desejar uma "feliz Páscoa", na esperança de que minha resposta seria uma nota de dez reais. Aí, só de maldade, eu disse: "Lhe dou se você me disser o que é a Páscoa". Ele não hesitou: "Páscoa, doutor, é aquele dia quando a gente come ovos de chocolate..." Dei-lhe os dez reais. Todo mundo sabe que Páscoa é dia de comer ovos de chocolate.
Se eu dissesse para o lixeiro que Páscoa é dia de poesia ele não entenderia. A Adélia Prado diz que a poesia a salvará. É verdade. Poesia salvará, o Verbo salva. Há palavras que ficam guardadas na cabeça, sala de visitas. O corpo nada sabe sobre elas. A palavra poética é outra coisa: é uma palavra que, quando ouvida, se apossa do corpo. Vira carne e sangue, feito na eucaristia. O corpo fica diferente: ama, ri, chora, realiza atos heróicos ou loucos.
A poesia se faz com metáforas. As metáforas são mentirosas. O carteiro, amigo do Neruda, disse: "Sou um barco batido pelas ondas". Mentira. Ele era um canteiro. Não era um barco batido pelas ondas. Nenhuma pessoa, jamais, foi um barco batido pelas ondas. No entanto qualquer pessoa sabe o que o carteiro queria dizer. Sabe, porque todos nós nos sentimos, por vezes, como barcos batido pelas ondas.
A poesia é a linguagem das coisas que não podem ser ditas. O poeta diz a sua própria experiência. Mas esta fala, nascida dos sentimentos dele, individuais, tem um poder de reverberação. Ao bater em nós - como o repicar de um sino, ao longe - o corpo estremece emocionalmente. Esse estremecer é a prova de que o poeta, dizendo o dele, diz o de todos.
A Páscoa é um poema. Metáfora. Fala sobre o nosso destino, diante da Morte. Há uma lei da ciência, a 2ª lei da termodinâmica, que diz que o destino do universo é a morte. Vai acontecer com ele o que acontece com uma vela acesa. No fim dos tempos todas as estrelas se apagarão e o universo morrerá. Isso me dá uma grande tristeza. Para dizer a verdade, não me importo muito com a minha eternidade. Mas pensar que o universo vai morrer, isso é muito triste. Adeus barcos, gaivotas, árvores, pássaros, cachorros, crianças, música, amizade, comida, amor: tudo se transformará em nada, eternamente. A morte é o fim. Pois a metáfora da Ressurreição é uma afirmação louca de que a verdade é o contrário: a morte se transformará em vida. Essa afirmação poética está contida na metáfora de um homem que, havendo descido à sepultura, voltou a viver. A semente é enterrada. Se continuar como sempre foi, morrerá. Mas se morrer, brotará como árvore. Todo túmulo é um canteiro.
O poema da Ressurreição é um canto que afirma que não a nossa alma mas o nosso corpo está destinado à eternidade. Essa é a razão por que, no Credo Apostólico não se diz: "Creio na imortalidade da alma" mas "Creio na ressurreição da carne". Mas como o corpo-carne não sobrevive nos lugares sem barca e sem gaivotas onde vagueiam as almas de um outro mundo, o poema da Ressurreição exige uma outra afirmação: "Creio na eternidade dos Jardins". "O homem tem um destino de felicidade", diz Bachelard. "O universo deve reencontrar o Paraíso."
Ovos de Páscoa não fazem pensar poesia. O poema da Ressurreição nos obriga a virar poetas. A metáfora da Páscoa nos questiona sobre o que estamos fazendo com a nossa própria vida. Versos de Whitman:
"Quem anda duzentas jardas
sem vontade
anda seguindo o próprio funeral
vestindo sua própria mortalha".
Há muitos mortos com a aparência de vivos. A estória da Ressurreição é um destino para nos livrarmos da mortalha. Por detrás dos espaços infinitos e do silêncio das estrelas que horrorizava Pascal, há um Rosto que nos olha tranquilamente e nos desafia a sair das sepulturas e a viver.
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* Escritor. Teólogo. Educador.
Fonte: Correio Popular online, 24/04/2011
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