sábado, 23 de abril de 2011

Pessach

Bernardo Sorj*
Cada ano festejamos Pessach porque a liberdade, para os indivíduos e para a sociedade, é sempre uma travessia, nunca um ponto de chegada, e ela só é possível porque se alimenta do exemplo e das lutas das gerações passadas.
Pessach é um momento de reflexão sobre o que nos faz escravos, permitindo que a opressão se instale no nosso interior e nas nossas relações. Por isto, festejar a liberdade exige refletir sobre a servidão, sobre o Faraó que cada um leva dentro de si:
• O Faraó que só percebe a si mesmo.
• O Faraó que deseja que os outros o obedeçam.
• O Faraó que não aceita que cada pessoa seja diferente.
• O Faraó que julga antes de compreender.
• O Faraó que divide tudo em certo e errado.
• O Faraó que fala para não ouvir.
• O Faraó que teme ideias diferentes das suas.
• O Faraó que ri dos outros sem ser capaz de rir de si mesmo.
• O Faraó que confunde solidez com rigidez.
Pessach nos lembra de que o poder material, econômico ou político não deve ser confundido com o poder de ser internamente livre. Porque a liberdade não se compra nem se impõe, só pode ser construída por cada um e na convivência, inspirando-se em exemplos, mas seguindo caminhos que são sempre singulares. Por isso:
• Só a liberdade nos leva a valorizar perguntas que questionam nossas certezas e a duvidar de respostas que confirmam nossas crenças.
• Só a liberdade nos permite amar nossos seres queridos sem querer transformá-los em espelhos de nós mesmos.
• Só a liberdade nos permite levar a vida a sério, sem nunca deixar de brincar.
• Só a liberdade nos permite aprender coisas diferentes que questionam nossas crenças.
• Só a liberdade nos permite entender nossas mudanças e das pessoas que nos circundam.
• Só a liberdade nos ensina que a vida nunca se reduz ou pode ser contida em leis e conceitos aparentemente rigorosos.
• Só a liberdade nos dá o sentido da ironia e do humor.
• Só a liberdade nos permite entender que toda fronteira usada para classificar os outros é precária e que nunca deve ser transformada numa forma de desclassificar.
• Só a liberdade permite que a tradição seja uma fonte de sabedoria e não uma camisa de força.
A afirmação da liberdade é um caminho que exige rompimentos e distanciamentos de um mundo conhecido e aparentemente seguro. Mas nada pode eliminar a angustia nem as incertezas. Ou nos refugiamos na repetição mecânica e em crenças cegas que sufocam a curiosidade, fogem do desconhecido e temem o que está fora de nosso controle, ou as transformamos numa energia que nos impele a descobrimentos e que nos faz crescer, transformando a vida num processo de aprendizagem permanente.
Só podemos lutar contra a servidão se enfrentamos o opressor e o oprimido que cada um de nos carrega. Porque a escravidão individual é produzida por traumas que nos deixam inseguros e por medos que nos paralisam e nos transformam em pessoas rígidas e oprimidas:
• Um oprimido que se esconde dele mesmo procurando ser igual ao resto.
• Um oprimido que transforma, por insegurança, o amor em possessão.
• Um oprimido que odeia o que não controla e o que não se ajusta à sua vontade.
• Um oprimido que foge da mudança, no lugar de se enriquecer com ela.
• Um oprimido que teme o futuro e a passagem do tempo no lugar de vivê-lo intensamente.
• Um oprimido que inferioriza os outros para se sentir superior.
• Um oprimido que se refugia em grupos e comunidades em torno das quais cria muralhas que desumanizam os que se encontram fora.
A liberdade pessoal só pode ser plenamente realizada em comunidades que permitem a livre expressão de cada indivíduo. Devemos, portanto, lutar contra toda forma de opressão política e social. Porque o autoritarismo se alimenta do ódio, estigmatiza quem discorda, transforma o opositor em inimigo e os indivíduos em membros de manadas. Lembrando sempre que não há comunidade onde não existe justiça social, pois a pobreza e a miséria geram excluídos.
Porque aspiramos a ser livres, mas nunca nos desprenderemos totalmente dos desejos de opressão, lembramos as grandezas, nem por isso destituídas por vezes de fraquezas, de nossos antepassados. A todos eles, e a todas as pessoas justas de todos os povos e culturas, que fizeram o possível para que hoje possamos brindar à vida e à liberdade:
Shehechyanu, ve´quimanau ve’higuyanu lazman haze.
Que vivemos, que existimos, que chegamos a este momento.
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*Bernardo Sorj Iudcovsky (26 de setembro de 1948, Montevideo, Uruguai) é um sociólogo brasileiro, professor titular de Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática.
Autor: Bernardo Sorj (http://www.bernardosorj.org/)

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