domingo, 3 de abril de 2011

São muitos, os céus

Rubem Alves*
O céu estava enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por medo de ficar molhadas. Lembrei-me de Prometeu: foi ele quem roubou dos deuses o fogo - por dó dos mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por ele, o fogo não estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho, vermelho e aconchegante. No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao cheiro de fumaça. Comida melhor que sopa não existe. Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto da vida não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha. Seria sopa. Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia do fogo, caldeirão, água e qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a estória da sopa de pedra.
O fogo é um poder bruxo. Tem o poder de irrealizar o real: os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Dizia sempre para os meus clientes que, em vez do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferia estar sentado com eles diante de um fogão aceso. É diante do fogo que a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.
"- Antigamente eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um dia só dia da minha infância. Hoje não faço isso. Tenho medo de que ele me atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus anos futuros, pois não sei quantos estão ainda à minha espera..." Assim falou a Maria Alice com voz mansa , saudade pura. O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.
"- Quando eu era menino, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas, os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés frios..."
"... a mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: 'Vou quintal apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós' - e virava a taramela para abrir a porta da cozinha. O pai dizia sempre a mesma coisa, todo dia: - 'Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo...' Mas a mãe nem ligava. Com as canecas quentes de chá na mão - como era bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo" - a gente pedia ao pai pra contar estórias. Ele contava. Eram sempre as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele tivesse contando pela primeira vez. vinha sempre o assombro, o medo, os arrepios na espinha."
Aí ele parou e começo a divagar. Lembrou-se de um tio.
"- Naquele tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve gente que quis alugar a sala - ele receberia um bom dinheirinho por ela. Recusou. E se explicou: - Não alugo, não. É dessa sala que eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse, ficaria triste quando a chuva viesse...' É, as pessoas eram diferentes..."
Houve um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação teológica.
"- Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquielo que a memória amou..."
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*Escritor. Teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 03/04/2011
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